Legado negativo de Baku ficará para a COP30, no Brasil
Sem financiamento adequado, os cortes de emissões de carbono necessários não serão possíveis, o não cumprimento desse compromisso implicará em impactos climáticos em todo planeta
A COP29 terminou mal e demonstrou as dificuldades diplomáticas de nosso mundo para enfrentar os perigos das mudanças climáticas. Dos US$ 1,3 trilhão anuais necessários para estancar o desastre climático que se aproxima, apenas US$ 300 bilhões foram prometidos. O não cumprimento desse compromisso implicará impactos climáticos severos em todo o mundo.
O jogo de empurra entre países ricos e países em desenvolvimento é o principal motivo que gera a incompetência concorrente, uma vez que a solução da crise é de responsabilidade de todos e afetará a todos, especialmente os mais pobres. Mas não resta dúvida de que os que estão sofrendo o impacto das mudanças climáticas em grande parte não emitiram o carbono que as causou.
O resultado é não é o suficiente para manter os objetivos do Acordo de Paris de limitar o aquecimento do planeta em 1,5°C. O sentimento foi de consternação entre especialistas climáticos e representantes de países vulneráveis.
Chandni Raina, representante da Índia, afirmou que o processo havia sido “encenado” e chamou o acordo de “nada mais do que uma ilusão de ótica”. Juan Carlos Monterrey, enviado especial do Panamá para o evento, disse que “este processo foi caótico, mal administrado e um fracasso completo em termos de entrega da ambição necessária.” Ao coro dos descontentes juntou-se o próprio secretário-geral da ONU, Antonio Guterrez, que taxou o resultado de pouco ambicioso. Negociações climáticas da COP29 chegam a um acordo sobre dinheiro, mas somente depois de uma briga – The New York Times
Sem financiamento adequado, os cortes de emissões de carbono necessários não serão possíveis. O que resultou em uma decepção e irritação dos países que precisam de melhorias, com os países ricos.
Os alertas vêm de décadas e deram origem as cúpulas climáticas globais (COPs) estabelecidas na Conferência Rio 92. Nicholas Stern, economista climático, escreveu em 2006 sobre a economia da mudança climática, advertindo: “Os países ricos devem reconhecer que é de seu interesse vital, bem como uma questão de justiça, dados os graves impactos causados por seus altos níveis de emissões atuais e passadas, investir em ação climática em mercados emergentes e países em desenvolvimento”.
Stern explica: “A maior parte do crescimento da infraestrutura e do consumo de energia projetado para ocorrer na próxima década será nos mercados emergentes e nos países em desenvolvimento e, se eles dependerem de combustíveis fósseis e emissões, o mundo não será capaz de evitar mudanças climáticas perigosas, prejudicando e destruindo bilhões de vidas e meios de subsistência em países ricos e pobres.”
Num cenário futuro, se o investimento necessário para a transformação for estimado por especialistas em US$ 1,3 trilhão anuais, o aporte de US$300 bilhões teoricamente só poderá sanear por volta de 25% do problema.
Para um resultado mínimo, o valor de US$600 bilhões era considerado pelos países pobres como capaz de promover as mudanças mais essenciais. Mas na ausência do aporte necessário para a transformação, reafirma-se o cenário pessimista de aumento de 3,5ºC a 4ºC da temperatura em 2100, como já adota preventivamente a França em seus planos de adaptação, seguindo a métrica mais negativa possível estimada pelo IPCC. Neste cenário, o corte de emissões equivalente ao investimento aprovado, de US$300 bilhões, poderia atenuar apenas 0,5ºC, uma vez que já estamos atingindo 1,5ºC de aquecimento.
Um exemplo de investimentos necessários para evitar fortes impactos para a humanidade também são os recursos destinados a conter a desertificação.
Atualmente, um mau exemplo será a não contribuição dos Estados Unidos para esses fundos. O governo Biden tinha como meta financiar US$3 bilhões em adaptação climática internacionalmente a cada ano, com foco especial na segurança hídrica – e explicitamente enquadrou isso como uma ferramenta para “abordar os principais impulsionadores da migração”. É improvável que esses planos continuem na próxima presidência de Trump.
Se Trump prosseguir com os planos de deportar imigrantes, fechar a imigração, cortar gastos para conter a desertificação – e ainda prosseguir com a matriz fóssil que aquece o planeta, colocará gasolina nos efeitos da bomba da desertificação mexicana, que já provoca intensos efeitos migratórios para o solo norte-americano.
É notório o imediatismo e a estupidez da sovinice climática. É pouco inteligente, agrava a situação atual de bilhões de pessoas e aponta para o desastre de médio prazo. Nos últimos 10 anos, cerca de 200 milhões de pessoas foram deslocadas de seu território em função de desastres climáticos.
Não faltaram exemplos da gravidade da situação para motivar os negociadores na COP29: janeiro de 2024 foi o mês mais quente já registrado; em fevereiro 37 milhões de pessoas ficaram sem comida na África devido à seca; em março os oceanos atingiram a marca recorde de 21,07 ºC, destruindo corais que nutrem a vida no oceano; em abril o sul e sudeste da Ásia fecharam as escolas em função das ondas de calor; em maio o trabalho ao ar livre ficou impossível na Índia devido à alta temperatura; em junho, com a seca, o Pantanal brasileiro foi varrido por incêndios; em julho o furacão Beryl atingiu duramente o Caribe; em agosto o Mediterrâneo sofreu ondas de calor que fizeram as azeitonas murcharem nas plantações e os incêndios devastaram a região de Atenas; em setembro a Nigéria e o Chade foram atingidos por inundações que deslocaram centenas de milhares de pessoas e destruíram a agricultura local; em outubro, Valência na Espanha foi devastada pela maior inundação já registrada; agora, em novembro, a região de Nova York foi devastada por incêndios florestais.
O resultado decepcionante da COP29 já era esperado por aqueles que faziam a leitura da conjuntura, mas a esperança é a última que morre. O que explica essa falta de governança?
Em primeiro lugar, o lobby para a continuidade dos negócios de sempre, a matriz do petróleo. Enche os bolsos de grandes empresas e os cofres de petroestados, como Azerbaijão e Emirados Árabes, que sediaram as duas últimas conferências climáticas. Também alimenta a oposição a matrizes energéticas limpas, como faz habitualmente a Arábia Saudita, que na COP29, chegou a tentar promover alterações no texto da conferência sem consulta.
O embate é claro. A ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, antes da revelação da tentativa de alteração do texto, disse: “Estamos no meio de um jogo de poder geopolítico de alguns estados de combustíveis fósseis. Não permitiremos que os mais vulneráveis, especialmente os pequenos estados insulares, sejam roubados pelos poucos ricos emissores de combustíveis fósseis que têm o apoio, infelizmente, neste momento do presidente (da COP29).”
Pelo menos cinco casos de obstrução são registrados por dia nos relatos das negociações pelo Earth Negotiations Bulletin, um serviço de relatórios com acesso especial às salas de negociação da COPs. “Os negociadores sauditas não estão apenas se opondo ao texto proposto para o acordo COP29 relacionado à redução das emissões de carbono, mas também a propostas de adaptação, um registro de compromissos climáticos nacionais e muito mais”.
Ativistas pedem uma reforma em critérios e formato das conferências climáticas. De Al Gore a Ban-Ki-Mon, a grita nos bastidores é geral em defesa de melhor escolha da ONU para países-sede, livres dos conflitos de interesse dos combustíveis fósseis.
De quebra, sobra a cizânia provocada com regras da ONU de 1992, sobre países ricos considerados desenvolvidos e outras nações consideradas em desenvolvimento. Os países do grupo em desenvolvimento estão sendo “convidados” a fornecer ajuda financeira, mas não há expectativa positiva. Assim, a China, um dos maiores poluidores ainda em “desenvolvimento”, receberia subsídios e estaria isenta de contribuição.
Um dos pontos nevrálgicos é a incapacidade de muitos países enfrentarem as adaptações climáticas necessárias por estarem afundados em dívidas. O lançamento do relatório da ONU intitulado “Um Mundo de Dívidas” nos dá a dimensão do problema: “Metade do nosso mundo está afundando em um desastre de desenvolvimento, alimentado por uma crise de dívida esmagadora. Cerca de 3,3 bilhões de pessoas – quase metade da humanidade – vivem em países que gastam mais em pagamentos de juros da dívida do que em educação ou saúde. E, no entanto, como a maioria dessas dívidas insustentáveis está concentrada em países pobres, elas não são consideradas um risco sistêmico para o sistema financeiro global”.
O relatório da ONU afirma que não considerar o risco sistêmico é uma miragem, uma vez que 3,3 bilhões de pessoas estão sofrendo as consequências.
Alguns dos países mais pobres do mundo não têm espaço fiscal para investimentos essenciais nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ou na transição para energia renovável. Em 2022, a dívida pública global atingiu um recorde de US$ 92 trilhões. Por exemplo, os países africanos pagam quatro vezes mais por empréstimos do que os Estados Unidos e oito vezes mais do que os países europeus mais ricos.
Ainda segundo o relatório, “o Fundo Monetário Internacional (FMI) diz que 36 países estão na chamada ‘linha da dívida’ – ou em alto risco de sobre-endividamento. Outros 16 estão pagando taxas de juros insustentáveis a credores privados. Um total de 52 países – quase 40% do mundo em desenvolvimento – estão com sérios problemas de dívida”.
A crise climática vem aprofundando essas dívidas. Por exemplo, o Paquistão é um dos países mais carregados de dívida externa. Deve cerca de US$ 100 bilhões para instituições financeiras como o FMI e o Banco Mundial. Os desastres agravados pelas mudanças climáticas provocaram inundações que totalizaram US$ 30 bilhões em perdas. Já não consegue pagar suas dívidas e mais eventos extremos poderão agravar ainda mais a situação.
Por fim, há falta de multilateralismo colaborativo. A insegurança global trazida pelo cenário de guerras faz com que as nações não abram mão de suas velhas matrizes energéticas, nem de seu PIB recheado de carbono. Sentam-se à mesa de negociações com posições fechadas em função de posturas geopolíticas domésticas.
O gigantesco legado negativo de Baku, no Azerbaijão, está agora jogado no colo do Brasil, que sediará a conferência COP30 em Belém do Pará.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)