Lei da (in) segurança nacional
A Lei de Segurança Nacional há de ser revogada, a fim de que os direitos trazidos na Constituição Federal vigente sejam respeitos, mas isso não tem valia, se a nova legislação trouxer nas entrelinhas um direito penal de autor ou o odioso empreendedorismo moral para subjugar o inimigo político
O código penal nazista dizia ser crime ferir o “são sentimento do povo alemão”. Sem dúvida, um paradoxo entre sentimento, sanidade, arbitrariedade, moralismo, populismo e um falacioso discurso oficial para angariar aliados. Ferir “o são sentimento do povo alemão” se resumia a criminalizar quem não seguia os ditames e regras do nazismo.
Essa mistura antidemocrática é muito comum em países autoritários e ditatoriais, os quais promovem uma combinação explosiva entre vaidades, posições políticas, religião, moral e direito.
Nesse contexto, o Direito Penal cai como uma luva, pois atua como fator de controle social do “inimigo”, fazendo perpetuar um status quo definido e fomentado pela classe que detém o poder econômico, cultural, político e social.
Não é nenhuma novidade que, no processo de criminalização, o poder define quem define, ou seja, o poder de definição está nas mãos de quem possui as prerrogativas do exercício legislativo ou executivo de determinada época. Na luta por espaço, quem ganha define.
Define quem é o criminoso da vez, ou seja, o inimigo a ser combatido e, muitas vezes, para solidificar o discurso oficial usa o termo “guerra”, já que na guerra vale tudo. Guerra contra as drogas, guerra contra os comunistas, guerra contra os adversários políticos, guerra contra os menores infratores, guerra contra o crime, guerra….
E nessa “guerra”, o processo de criminalização primária (feito pelo legislador) reflete o possível sujeito passivo do crime, o qual é confirmado e etiquetado (rotulação) na criminalização secundária (feita pela polícia, Ministério Público e Poder Judiciário).
Rotulado e etiquetado como inimigo, como os nazistas faziam nas fronteiras ao definir pela frenologia quem era ou não ariano, o “definido” como criminoso pelo poder vigente é excluído ou alijado provisoriamente do sistema, ou seja, “para de incomodar o poder”.
Portanto, o Direito Penal é utilizado culturalmente para um empreendedorismo moral e o criminoso é aquele que desvia desta moralidade ou pensa diferente do mass media.
E o que tudo isso tem a ver com a lei de segurança nacional? A resposta é simples. A famigerada Lei 7.170, de 14 de dezembro de 1983, editada em pleno período ditatorial no Brasil é um exemplo de processo de criminalização política, social e moral, com o fim de “abater” o inimigo político.
Prevendo tipos penais abertos, permite ao intérprete e ao aplicador da lei direcioná-la seletivamente, isto é, para aquele que pensa diferente, buscando uma criminalização ideológica e política, em uma verdadeira “caça às bruxas”, como faziam os inquisidores.
Crime como o do artigo 23 de incitar a subversão da ordem política ou a luta com violência entre classes sociais denota um direito penal de autor, na medida em que a pena busca punir não um fato praticado por alguém, mas as características desse alguém, seu modo de ser, agir e pensar, numa espécie de modulação moral, política e cultural.
Paradoxalmente, a própria lei de segurança nacional traz em seu artigo 17º o crime de “tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”. Ora, que Estado de Direito tolera tipos penais abertos nos quais posso enquadrar qualquer conduta criminosa? Que segurança jurídica traz uma previsão tão aberta, vaga e imprecisa?
O discurso oficial de que existe lei prevendo crime não é suficiente. Formalidade não se confunde com substancialidade. A legalidade estrita que deve atingir os tipos penais vem do espírito democrático e do equilíbrio de forças entre o direito de punir do Estado em cotejo com o direito de liberdade do cidadão.
Logo, não basta a edição de uma lei, é preciso que ela preencha certos requisitos para respeitar o Estado de Direito e a democracia em sua substância. A lei precisa ser formal e substancialmente adequada para que o Estado possa dar a resposta correta ao fato.
Em observância ao princípio limitador do poder punitivo estatal, crime tem que ter previsão taxativa, estrita, certa e escrita, ou seja, não se cria crime por analogia, por posição política, por métodos interpretativo vagos, ou ao alvedrio de vontade do governante do momento.
Portanto, a intolerância que permeia o debate raso, rasteiro, por diversas vezes preconceituoso e inconsequente do Brasil hoje, não pode reverberar no mau uso do direito penal, que seleciona a camada mais pobre da população.
Direito Penal e autoritarismo é uma mistura perigosa, moralista e antidemocrática.
Tentando corrigir a supracitada Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83), a Câmara dos Deputados aprovou, no dia 04 de maio de 2021, um texto base que a revoga e coloca os crimes nela previstos dentro de um título, criado para tal finalidade, do código penal. O Projeto de Lei 6764/02 contém incongruências e tipos abertos ao prever expressões como facciosismo político, facciosismo religioso, atos contra a ordem constitucional e o estado democrático. Todavia, ainda há tempo para correções no texto, já que o devido processo legislativo não foi encerrado.
De toda forma, a insegurança jurídica que vivemos no país não pode ser corroborada e incentivada pelo legislativo exigindo uma mudança de postura e paradigma para que não usemos o Direito Penal como instrumento de controle político dos adversários do momento.
A Lei de Segurança Nacional há de ser revogada, a fim de que os direitos trazidos na Constituição Federal vigente sejam respeitos, mas isso não tem valia, se a nova legislação trouxer nas entrelinhas um direito penal de autor ou o odioso empreendedorismo moral para subjugar o inimigo político.
A voracidade do poder tende a se expandir em tempos difíceis e uma das nossas gratas garantias contra isso é a legislação penal legalmente editada e com respeito aos direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Constitucional. Do contrário, continuaremos formalmente garantidos, mas substancialmente perseguidos.
Grégore Moreira de Moura é procurador federal da AGU. Mestre em Ciências Penais e doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor da PUC-MG. Autor dos livros “Direito Constitucional Fraterno”, “Do Princípio da Coculpabilidade” e em coautoria o livro “Criminologia da Não-cidade” todos da Editora D’Plácido. Conselheiro Seccional da OAB-MG, ex-diretor Nacional da Escola da AGU.