Líbano partido, plano de Israel
Como Telavive e Washington trabalham para minar o pluralismo religioso do Líbano, impor o poder da Falange direitista e estimular, se preciso, uma guerra civil. Por que é possível evitar este cenário trágicoGeorges Corm
Desde seu nascimento como “Estado judeu”, para retomar o título do livro de Theodoro Herzl, fundador do movimento sionista em 1897, Israel chocou-se com a sobrevivência milenar do pluralismo religioso no Oriente Médio — principalmente entre os cristãos ortodoxos e os muçulmanos sunitas, drusos, xiitas ou alauitas. Na Palestina, Síria, Líbano e Egito, as diversas comunidades religiosas vivem entrelaçadas [1] entre si, inclusive os judeus. Um Estado exclusivamente judeu criado neste meio multifacetado só poderia chocar-se com uma feroz resistência.
Os primeiros a se assustarem do lado árabe, já no início do século 19, foram os cristãos da Palestina, do Líbano e da Síria. Eles sentiram a ameaça que pairava sobre seus destinos com o surgimento de um Estado fundado sobre o monopólio de uma comunidade surgida de um fluxo demográfico externo: os judeus askenazi, que fugiam das perseguições na Rússia e na Europa Oriental. Aos olhos das comunidades cristãs orientais, o empreendimento sionista apoiado pelas potências coloniais européias era semelhante às cruzadas. Por isso, colocaria em perigo as boas relações seculares entre cristãos e muçulmanos do Oriente Médio. Por outro lado, este fato poderia levar algumas comunidades cristãs locais a reivindicar os mesmos direitos que os judeus de ultramar em um Estado comunitário cristão.
Os colonos judeus, antes mesmo da criação do Estado de Israel, consideraram, por vezes, as minorias cristãs do Oriente Médio como possíveis aliados. No entanto, suas esperanças foram desfeitas: os cristãos do Grande Líbano, estabelecido pelo mandato da França em 1919, permaneceram em sua maioria insensíveis. Ao pregar um retorno às origens fenícias do país, o poeta libanês de língua francesa Charles Corm não buscava copiar a ideologia sionista. Apenas queria dar um fundamento ao moderno nacionalismo libanês, que transcendesse as rupturas entre cristãos e muçulmanos. Nesta mesma época, o nacionalismo egípcio invocava também as raízes faraônicas e o nacionalismo iraquiano exaltava o glorioso patrimônio babilônico.
Desestabilização diante do Estado judeu
Michel Chiha, um outro libanês francófono e francófilo, jornalista brilhante com profunda influência política, alertou incessantemente os libaneses contra a desestabilização que o Estado de Israel provocaria em todo Oriente Médio. Ele provocou uma sensibilidade hostil ao mostrar que o Líbano polarizaria seu pluralismo comunitário ao fazer a antítese do exclusivismo comunitário israelita. Sem dúvida nenhuma, quem mais sensibilizou os libaneses para o seu difícil destino frente a partir da emergência do Estado de Israel foi o padre maronita Youakim Mubarak, que consagrou sua abundante obra ao diálogo islâmico-cristão e à posição central do Líbano e da Palestina neste diálogo [2].
Portanto, não se deve estranhar em ver o exército libanês combater na guerra de 1948 ao lado dos outros exércitos árabes para tentar impedir a criação do Estado de Israel. Em 1949, fora assinado um acordo de armistício entre Israel e o Líbano. Sabiamente, o exército libanês se absteve de participar da guerra de junho de 1967, durante a qual Israel ocupou o Sinai egípcio, as Colinas de Golã sírias, Jerusalém oriental, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza palestina. Portanto, o Líbano não conseguiu escapar das tensões cada vez mais graves que esta guerra criou no Oriente Médio. Pior: seu sistema de liberdades democráticas e sua múltipla sensibilidade política transformaram-no numa caixa de ressonância das graves tensões criadas em todo mundo árabe após a vitória israelense em 1967.
Por outro lado, a sociedade palestina foi profundamente transtornarda pela amplitude da derrota dos países árabes e pela ocupação de todo seu território. Isso permitiu a consolidação dos movimentos armados, que passaram a fazer recrutamento nos campos de refugiados na Jordânia e no Líbano, que acolheram o maior percentual de palestinos em relação ao tamanho de suas populações. Expulsos da Jordânia em 1969 pela repressão do exército jordaniano (“Setembro Negro”), os movimentos de resistência palestinos expandem sua implantação no Líbano, de onde conduzem freqüentemente operações de guerrilha contra Israel a partir da fronteira. Daí a política de represálias maciças do exército israelense contra os países que os abrigam. Foi assim que no Líbano, em dezembro de 1968, um comando israelense aerotransportado destruiu toda a frota aérea civil libanesa, o que provocou profundas mudanças políticas no país e uma paralisia cada vez mais evidente do governo.
A partir de 1973, o grande campo de batalha de Israel
A partir da guerra árabe-israelense de 1973, o Líbano torna-se o único campo de batalha no confronto com Israel. As frentes sírias e egípcias estão completamente neutralizadas [3]. Assim abre-se o caminho que conduzirá ao conflito de 1975. Muitos partidos palestinos propõem uma futura Palestina laica e democrática que integre judeus, cristãos e muçulmanos em pé de igualdade. O Líbano mergulha na violência [4].
Este conflito conduz ao estabelecimento de uma coalizão dos partidos libaneses laicos, sob a égide do Movimento Nacional, solidário aos grupos palestinos armados. Ela é constituída de diversas facções de tendência nasseriana largamente implantadas na comunidade sunita; o Partido Comunista; o Partido Popular sírio e o Partido Socialista de Kamal Joumblatt, pai de Walid Joumblatt. Do outro lado, o Partido Falangista, sob a influência do ex-ministro das relações exteriores Charles Malik, muito próximo dos Estados Unidos, começa a se armar e pretende agrupar todos os cristãos sob o emblema de uma Frente Libanesa. Este último alardeia que pretende libertar o Líbano da influência revolucionária palestina, sustentada pela União Soviética e pelos países árabes ditos “radicais”.
Para Israel, esta conjuntura libanesa alimentada por sua política de represálias, repõe na ordem do dia um velho objetivo estratégico do início dos anos 1950: fazer emergir no Líbano um Estado cristão aliado ao Estado judeu e justificar a legitimidade de sua presença no Oriente-Próximo [5]. Ao invadir o sul do Líbano até o Rio Litani em 1978, seu exército, segundo um velho plano de David Ben Gurion, constitui uma milícia com egressos desordeiros do exército libanês, comandados por um oficial cristão dissidente. Esta milícia proclama, em abril de 1979, um Estado do “Líbano Livre” sobre 800 km² que o exército israelense ocupará até o ano 2000, infringindo a resolução 425 do Conselho de Segurança da ONU.
Da Falange de direita ao surgimento do Hezbollah
Ao mesmo tempo, apesar de o exército sírio ter entrado no Líbano na Primavera de 1976, para impedir o avanço das tropas de coalizão dos movimentos palestinos [6], e do movimento nacional contra as praças-fortes da Frente Libanesa, os partidos que compõem esta última estabelecem relações com Israel, com o beneplácito de Washington. Progressivamente, estabelece-se uma estratégia comum para impor uma mudança política total no Líbano: o Partido Falangista, aproveitando-se de uma nova invasão israelense, tomaria o poder e faria um acordo de paz com Israel sob o patrocínio estadunidense. Os movimentos armados palestinos seriam erradicados. Esta estratégia concretiza-se por ocasião da invasão de 1982, durante a qual o general israelense Ariel Sharon assalta Beirute de junho até o final de agosto, e em seguida instala um poder falangista com o aval ocidental, da Arábia Saudita e do Egito.
O Parlamento Libanês elege um presidente da república falangista (Bechir Gemayel) durante a agressão e após o assassinato de seu irmão Amin. O novo poder, sob pressão norte-americana, assina um tratado de paz desigual com Israel em 1983. Ao mesmo tempo, 200 mil cristãos da zona do Chuf ? região montanhosa ao sudeste de Beirute ? são expulsos a força. O exército israelense havia encorajado as milícias cristãs e drusas a se matarem uma a outra antes de se retirarem desta zona. As organizações dos partidos laicos libaneses, pilares da resistência à ocupação desde 1978, foram desarmadas e perseguidas pelos falangistas com o apoio da Força Multinacional de Paz enviada ao Líbano, em agosto de 1982, para ajudar na evacuação dos combatentes palestinos e proteger as populações civis ? com os resultados que conhecemos em Sabra e Chatila… Estão aí as condições para criar o Partido de Deus, o Hezbollah, que recruta ativamente na comunidade xiita, encorajada pela revolução religiosa iraniana e sua mobilização tenaz para acabar com a ocupação israelense ao sul.
Por não ter sido um satélite dos Estados Unidos e de Israel, o Líbano afunda numa espiral de desintegração da comunidade. Em 1990-1991, para recompensar a adesão da Síria à coalizão anti-iraquiana, os ocidentais permitem que este país controle o Líbano. O país transforma-se em um condomínio saudita-sírio, quando Rafik Hariri, homem de confiança do rei da Arábia Saudita, é conduzido ao posto de primeiro-ministro. Ele ocupara este papel sem interrupção de 1992 a 1998 e de 2000 a 2004, levando o país a uma onda sem precedentes de especulações fiscais e financeiras. O Líbano herda, em conseqüência, uma dívida de 40 bilhões de dólares. No entanto, um séqüito de próximos, cortesãos, príncipes árabes, oficiais sírios, bancos locais e fundos de investimentos se enriquece além de toda imaginação.
Após 2004, a desestabilização vem de Washington
Adotada pelo conselho de Segurança da ONU em setembro de 2004, a resolução 1559 recoloca em questão o frágil estatuto do Líbano. Após a invasão do Iraque e segundo seu projeto do “Novo Oriente Médio”, os Estados Unidos recusam-se a deixar o País dos Cedros na órbita do eixo sírio-iraniano. O Hezbollah seria, segundo Washington, simples manifestação do poder de Teerã. Por isso, procura-se erradicá-lo. A resolução condena toda renovação do mandato do presidente libanês Emile Lahud (considerado o principal apoio desta organização, considerada “terrorista” pelos Estados Unidos). Ela exige a retirada das tropas sírias, a mobilização do exército libanês no sul do Líbano e o desarmamento de todas as milícias ? entenda-se o Hezbollah (qualificado de “resistência” no Líbano e em todo mundo árabe) e também todas as organizações palestinas ainda presentes.
Com uma falta de visão pouco comum, a diplomacia francesa tomou a iniciativa desta resolução, certamente para se reconciliar com os Estados Unidos após o desentendimento sobre o Iraque. Mas, ao mesmo tempo ela mergulhava o Líbano na pior desestabilização e o remetia à situação de 1975 a 1990: um espaço de confronto entre todas as forças antagônicas do Oriente Médio. Os planos para reocupar o sul do Líbano foram então colocados em andamento. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos e a França, após o assassinato de Rafik Hariri, trabalham ativamente para fazer surgir no Líbano um poder local favorável às teses norte-americanas, cimentadas em torno da família Hariri e de Jumblatt.
O Conselho de Segurança utiliza-se do assassinato do ex-primeiro-ministro, ao adotar uma série impressionante de resoluções relativas à constituição de uma comissão internacional de inquérito, de um tribunal internacional e da reafirmação de que o governo libanês tem de aplicar a resolução 1559. Esta agitação na instância suprema das Nações Unidas contrasta estranhamente com sua passividade quando, em julho de 2006, Israel toma como refém o conjunto do povo libanês, destrói regiões inteiras, onde ele assassina centenas de habitantes e condena dezenas de milhares de pessoas ao êxodo…
Realmente, o Líbano incomoda muito Israel e a “comunidade internacional”, que apóia ou permite covardemente que esta agressão sem norma se perpetue de modo semelhante à que se exerce com o que resta da Palestina. A dupla Estados Unidos-Israel não teve melhor sucesso em 2006 do que com a “cirurgia” realizada em 1982 que colocou o Líbano em agonia durante vários anos, assim como a Palestina de hoje.
Razões para manter esperanças
Será que a “guerra das civilizações”, quadro teórico da doutrina de guerra contra o “terrorismo” e o “fascismo islâmico”, apregoado pela administração norte-americana desde 1992 não arrisca mergulhar novamente o Líbano em uma guerra intestina sangrenta entre suas comunidades? A vocação libanesa de terra-símbolo do pluralismo religioso, que tanto contraria os israelenses, poderá resistir a este novo ataque violento? É certamente reconfortante ver que a maioria dos cristãos do Líbano, ao contrário de seu estado de espírito em 1975, reencontra seu patrimônio intelectual e político evocado acima.
Ex-general comandante do exército libanês que tentou em vão expulsar a Síria do Líbano em 1989-1990, o general Michel Aun é atualmente a figura mais popular da comunidade cristã. Filho dos subúrbios de Beirute, declara-se solidário à nova infelicidade que se abate sobre o país, e mais duramente sobre a comunidade xiita, cujas zonas de residência estão arrasadas. Ergue uma barreira contra esta nova divisão comunitária, que a violência sem controle da ação israelense se esforça em provocar. Tal disputa interna constituiria o melhor trunfo do Estado judeu e de seus aliados de Washington para tentar novamente, como em 1982, quebrar esta nação “rebelde” e transformá-la em satélite.
Será que as sirenes da propaganda do “choque de civilizações” e o cansaço de todo um país que, desde 1975 agüenta sozinho, com os palestinos, o peso da máquina de guerra israelense, conseguirão a longo prazo alquebrar a admirável resistência da sociedade civil libanesa, com todos os infortúnios que ela enfrenta? Será que as várias lacunas e os não-ditos da resolução 1701 do Conselho de Segurança não serão usados para permitir a Israel e aos Estados Unidos ditar sua vontade ao governo libanês, e se imiscuir nos assuntos internos, como sempre fizeram desde a adoção da resolução 1559?
Muitos libaneses desejam ver seu país neutro diante do conflito entre os israelenses e os palestinos, apartado de suas relações com a Síria, tornando-se assim um Monte Carlo para ricos emires do petróleo do Oriente-Médio, como fora prometido por George Bush. Mas este velho sonho pusilânime não permitirá ao Líbano enfrentar os desafios históricos que lhe são lançados. Além disso, o espectro da guerra civil, à qual os Estados Unidos empurram o Iraque, a pretexto de uma suposta “democratização”, assombra agora todos