Lições de uma campanha
Silvio Caccia Bava
Esta campanha eleitoral que acaba de se encerrar com a vitória de Dilma Rousseff traz algumas características que merecem reflexão. Quero destacar dois aspectos.
O primeiro é a influência na política brasileira “do mercado”, isto é, das grandes corporações. É avassaladora. E nunca foi tão forte. Não se trata de um fenômeno brasileiro isolado; isso está acontecendo em todo o mundo, mas aqui, nesta eleição, teve um papel extraordinariamente importante.
Nunca é demais lembrar que o Brasil ainda é dos países mais desiguais do planeta, onde mais de 60% da riqueza produzida fica com o 1% mais rico da população na forma de juros, lucros, aluguéis e renda da terra, segundo o IBGE.
Essa influência do poder econômico nas eleições pode ser vista de diferentes ângulos, a começar pelo financiamento das campanhas eleitorais. Hoje quase ninguém se elege sem contar com apoio financeiro importante de empresas. Estas eleições se tornaram proporcionalmente as mais caras do mundo, comparáveis apenas às dos Estados Unidos, que, no entanto, têm um padrão de vida muito superior ao nosso.
Até 1997, no Brasil, as empresas eram proibidas de financiar campanhas eleitorais. A onda neoliberal mudou esse cenário. E chegamos a uma situação, em 2010, em que algumas poucas empresas, cerca de dezesseis, financiaram campanhas de 45% da bancada eleita de deputados federais. O compromisso desses deputados, nesses casos, é com o eleitor que o elegeu ou com a empresa que o financiou? Difícil combinar essa equação, porque o cidadão quer uma vida melhor e a empresa deseja maximizar o lucro. Não é esse o caso da falta de água em São Paulo, onde a Sabesp deixou de investir o que era preciso? Em Paris, este ano, depois de décadas de gestão privada das águas públicas, a Prefeitura retomou das empresas concessionárias a gestão dessas águas e passou a administrar diretamente esse serviço. Seu argumento é que a gestão de políticas públicas por empresas privadas é incompatível com o interesse público.
A influência do mercado ajudou também a moldar um Congresso Nacional mais conservador nestas eleições. E um dos efeitos dessa mudança é que a pluralidade dos interesses políticos presentes na sociedade não alcança expressão num Congresso dominado pelo poder econômico, com novos e fortalecidos atores, como a bancada do agronegócio. Aumenta a distância entre as expectativas e demandas sociais e as instituições políticas que, na democracia, deveriam ser capazes, mas não são, de processar os conflitos, promover negociações, estabelecer novos pactos sociais. Esse descompasso entre a incapacidade de as instituições políticas processarem as demandas sociais e a pressão das ruas pode trazer de volta as grandes manifestações. E, desta vez, se tomarmos em conta a falta de água, elas podem assumir formas violentas e mesmo de convulsão social.
A pressão das ruas ganhou novas formas ao promover na primeira semana de setembro passado uma consulta popular sobre a realização de uma Constituinte independente para a promoção da reforma política. Um amplo conjunto de entidades da sociedade civil organizou a consulta em nível nacional e obteve 7.754.436 votos – 97% a favor da proposta. É uma manifestação da maior importância. Os que votaram são mais numerosos que a população do Uruguai, do Paraguai e de muitos outros países. Mas você leu sobre isso nos jornais? Teve alguma informação pela televisão?
E aqui quero considerar um segundo aspecto desta eleição. Também precisa ser levado em conta o papel da mídia impressa e eletrônica, um oligopólio em mãos de poucas das mais ricas famílias do país, que em sua atuação apresentam sua versão dos fatos como se ela fosse a realidade. São concessões públicas usadas para defender interesses privados e políticas que geram concentração da riqueza e, por consequência, exclusão social.
De uma perspectiva democrática, não se trata de impor censura ou qualquer forma de controle sobre conteúdos. Trata-se de garantir a expressão da pluralidade das visões sobre a realidade. A riqueza cultural de uma sociedade está em sua diversidade. No plano da política, isso se expressa por meio do debate público, do confronto de ideias, do exercício democrático da escolha. Para informar os cidadãos e com eles debater a realidade são necessários múltiplos meios de comunicação, expressão da variada gama de opiniões presentes na sociedade. Cabe ao Estado formular uma política que desarme os oligopólios existentes e democratize essas concessões públicas, e, ao mesmo tempo, apoie e fortaleça as iniciativas de criação de jornais, revistas, TVs, rádios, rádios comunitárias, redes sociais etc.
Tanto o poder econômico quanto o poder do oligopólio da mídia têm grande influência política, mas não controlam tudo. Prova disso é que Dilma se reelegeu. Existem propostas e mesmo avanços concretos, que estão bloqueados no momento, mas podem se tornar conquistas. Por iniciativa da OAB e de outras entidades da sociedade civil foi questionada no Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade do financiamento de campanhas eleitorais por empresas. Já há maioria de votos para proibir esse tipo de financiamento, mas o ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo e paralisou o julgamento. Se isso não tivesse ocorrido, a proibição de financiamento eleitoral por empresas poderia já ter valido para esta eleição.
Como se vê, há várias frentes de oportunidades abertas pela mobilização social para impulsionar processos de democratização do país. Talvez a mais importante seja a reforma do sistema político – não apenas eleitoral, mas uma reforma que democratize o poder e assegure o controle social dos eleitos. A questão crucial é que esse Congresso Nacional conservador não vai fazer essas reformas. Ele nunca vai limitar seus poderes ou democratizá-los. A menos que esteja sob pressão das ruas.
Silvio Caccia Bava é Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.