Lira, Bolsonaro, Mussolini e a separação de poderes
Bolsonaro sabe que encher o parlamento de aliados do Centrão serve aos seus propósitos. Atentos, calculadora às mãos, Lira e o Partido Progressistas fazem as suas contas. Tudo somado, é a democracia que amarga o prejuízo
O poder freia o poder, sentencia Montesquieu: “tudo estaria perdido se o mesmo homem exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as relações públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares”.
Em seu modelo de divisão das funções do Estado, competiria ao legislativo criar as leis. O executivo as cumpriria. E caberia aos juízes a resolução dos conflitos a propósito de sua aplicação. Tal fórmula se encontra no Espírito das Leis, publicado pelo iluminista francês em 1748.
Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos da América, James Madison afirmaria, no fim do século XVIII, que “a acumulação dos poderes legislativo, executivo e judiciário nas mesmas mãos, seja por efeito de conquista ou de eleição, constitui necessariamente a tirania”.
E a manutenção do regime de separação de poderes exige, segundo Madison, que seus ocupantes tenham “a menor influência possível na nomeação dos depositários dos outros poderes”. O político norte-americano ressalta, porém, que, nos governos republicanos, “o poder legislativo há de necessariamente predominar” – algo que poderia ser um pouco minimizado com a atribuição do poder de veto parcial ao executivo, cuja “fraqueza” seria, assim, compensada.
Pedindo desculpas a Madison – “com o devido respeito…” –, Adam Przeworski nota que “os freios e contrapesos não funcionam com eficácia quando diferentes poderes do governo são controlados pelo mesmo partido”. Caso isso ocorra, alerta o cientista político polonês, regimes autoritários podem, sob roupagem constitucional, seguindo à risca os ditames da lei, enfraquecer democracias liberais. Coordenada por líderes eleitos pelo voto popular, essa subversão sub-reptícia e nada ostensiva caminha a passos lentos. Jair Bolsonaro não tem, é verdade, um partido. A sua Aliança pelo Brasil nunca saiu do papel. Enfrentando dificuldades para ingressar em uma legenda sobre a qual possa ter um controle absoluto – sua recente tentativa de filiação ao Patriotas caiu por terra diante de rachas no interior da agremiação –, ele vinha flertando, até poucas semanas atrás, com o Progressistas, o partido do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, eleito para a função com o providencial apoio do Palácio do Planalto.
É justamente na Câmara que, às custas de orçamentos secretos concedidos a Lira e a seus colegas do Centrão, Bolsonaro tem conseguido emplacar, a toque de caixa, alguns de seus destrutivos projetos. Os chefes do Executivo e da Câmara atuam de olho, é claro, em seus próprios interesses. Uma mão lava a outra. Sem Bolsonaro, Lira e seu séquito correriam o risco de perder a chave do cofre. Sem Lira e seus aliados, Bolsonaro poderia ser acossado por um processo de impeachment.
Rodrigo Pacheco, do Democratas, também chegou ao comando do Senado com o beneplácito de Bolsonaro. Assim, porém, que viu seu nome ser especulado para concorrer à presidência da República nas eleições de 2022 pelo Partido Social Democrático, ele passou a manter uma distância segura do antigo capitão do Exército. Não à toa, o Senado vem barrando, sob o seu comando, alguns dos projetos de uma Câmara de ímpeto claramente governista e fazendo frente a iniciativas do próprio Palácio do Planalto – como ocorreu com a rejeição monocrática da medida provisória que alterava o Marco Civil da Internet.
Em suas origens, o Estado de direito testemunhou o domínio do legislativo sobre o executivo. Fazia sentido: em ascensão, os burgueses se batiam, então, contra os combalidos monarcas europeus. Aos poucos, com a consolidação do poder político da burguesia, o parlamento perderia o protagonismo. Quando, inclusive, as massas passaram a, pelo voto, eleger seus próprios parlamentares, o legislativo se tornou uma ameaça em potencial àqueles que davam as cartas. Otto von Bismarck, o chanceler conservador que governou a Alemanha com mão de ferro na segunda metade do século XIX, sugeria que, para governar, seria melhor ignorar o parlamento.
Décadas mais tarde, em 09 de junho de 1923, Benito Mussolini declararia, na tribuna do Senado italiano, que os fascistas não pretendiam abolir o parlamento, mas “melhorá-lo, aperfeiçoá-lo, corrigi-lo, fazer dele uma coisa séria, se for possível, uma coisa solene”. Ele faria, contudo, logo depois, uma ressalva: “Mas o governo deve ser rebocado pelo parlamento? O governo deve se submeter ao domínio do parlamento? O governo deve ser abúlico ou acéfalo frente ao parlamento? Não posso aceitar a teoria da abulia ou da acefalia do governo diante do parlamento”.
Cerca de trinta dias depois de falar aos senadores italianos, Mussolini discursaria para os deputados. Ele voltou ao tema e repetiu que não aspirava ao fim do parlamento – antes de tudo porque os fascistas “não sabiam com que coisa o substituiria”. O fascismo, anunciou, é “eleicionista”: é por meio das eleições que os fascistas conquistam seus mandatos. E eles não desejam, acrescentou, o fim do parlamento, mas apenas preencher o hiato existente entre ele e o país.
Bolsonaro é um aspirante a autocrata – desses que sonham com o fim do legislativo. Mas ele certamente sabe que, caso seu desejo não se realize, encher o parlamento de aliados do Centrão também pode servir aos seus propósitos. Atentos, calculadora às mãos, Lira e o Progressistas fazem as suas contas. Tudo somado, é a democracia que amarga o prejuízo.
Marcel Mangili Laurindo é doutor em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em sociologia política pela mesma instituição e defensor público de Santa Catarina em Florianópolis.