Luta de classes e a dinâmica das representações políticas no Brasil
Toda a narrativa construída desde o impeachment consistia em isolar no PT a essência da corrupção econômico-moral de nossa sociedade. A continuidade do PT no segundo turno era forte o suficiente para precipitar boa parte dos grupos de classe média para os braços do fascismo
Quais as razões deste protagonismo da extrema direita no cenário eleitoral brasileiro? Existem mais coisas entre o céu e a terra do que pregam as campanhas eleitorais. A crise que ora vivemos foi a confluência de muitos fatores a começar pelo governo anterior. O desenvolvimento econômico e a política de conciliação de classes realizada pelo Partido dos Trabalhadores, em boa medida, deveu-se aos oito anos de aumento continuado dos preços das commodities[1]. Esta “poupança externa” era o substrato necessário à criação de “global players” nacionais, gigantes empresas surgidas da estrutura produtiva brasileira que se internacionalizavam, bem como às políticas de contenção da miséria e pobreza no país. A estratégia petista consistia em uma obviedade. Os trabalhadores querem trabalhar, os patrões querem lucrar. O momento histórico sinalizava o interesse dos grandes capitais internacionais nos BRICS que tornaria possível um ciclo de crescimento econômico. O que não esperavam os administradores do capital de então era que este “pacto social” se resumiria ao bom andamento dos negócios.
A crise de 2008 mostrou o teto do desenvolvimento pautado pelo aumento do preço das commodities e os anos subsequentes foram de uma arrogante confiança, digna de “travessia no deserto”, das políticas keynesianas. O PAC, apresentado como obra da então ministra da casa civil, Dilma Rousseff, envolvia o investimento em infraestrutura para “desatar os nós econômicos do país”, obras de valorização fundiária, tais como o Minha Casa Minha Vida, e obras de investimento na extração e refino da Petrobrás, bem como o fortalecimento dos complexos agroindustriais. As políticas de isenção de impostos, para facilitar a “dura” vida do empresariado, funcionavam na mesma chave de confiança e, de fato, em 2011, o Brasil realizava sua mais alta taxa de crescimento dos últimos 30 anos.
Porém, a estrela brilha mais justamente quando começa a morrer. A crise econômica pegou em cheio a estrutura produtiva no Brasil desde 2012-13. Se em 2011 o país cresceu mais de 7%, logo começou a cair e, em 2014, o PIB é negativo. A crise econômica se expressou politicamente em 2013. Crise nas ruas e no parlamento e a eleição de 2014 era o prolongamento da terra arrasada. Ainda do ponto de vista da crise, os grandes capitais internacionais souberam aproveitar muito bem (se é que não estavam envolvidos) o cenário construído pela moralizadora lava-jato. A Petrobrás (venda em massa de ativos) e boa parte da petroquímica (Brasken); a construção civil (Odebrecht, OAS, Camargo Correa, etc); empresas vinculadas ao agronegócio (JBS) foram atacadas de frente e venderam seus ativos a preço de banana para pagar dívidas que se acumulavam e conter as fugas de investimento.
O cobertor curto da economia virou um desastre nas disputas de propina no congresso. O PSDB estava de olho desde 2014 no impeachment (fato reconhecido por Tarso Jereissati e verificado nas chamadas “pautas bomba” que deveriam ser barradas por Eduardo Cunha) e o momento de crise econômica no país oferecia ótimas possibilidades de compra para os capitais internacionais. Os “ases” da privatização, organizados na “ala direita” da socialdemocracia, o PSDB, vislumbraram neste período um projeto econômico a ser realizado. Serra, por exemplo, saiu correndo para conversar com a Shell sobre o plano de mudança do contrato de exploração do pré-sal, o famigerado PL 4.567, em favor das companhias internacionais. Para que isso ocorresse era necessário aprofundar a desestabilização. A lava-jato virou a febre que prometia derrubar o “esquema”. Instaurou-se com isso um pânico (até certo ponto real) entre os próprios parlamentares com relação à cadeia (não só dos eventos!) e, em março de 2015, após a CPI da Petrobrás descobrir existência de contas bancárias no exterior não declaradas, Eduardo Cunha vira alvo de um processo para cassar sua presidência na câmara. A tentativa de barganha Cunha-Dilma foi o estopim dos desacertos que estamos vivendo. Poucos dias depois de ter tentado o salvo-conduto, negociando os três votos do PT na comissão de ética do processo de cassação – justamente para que ele enquanto presidente da câmara não aceitasse os pedidos de impeachment – o PT anunciou que votaria pela continuidade do processo. A retaliação não tardou a vir e o pedido de impeachment elaborado por Miguel Reale, Hélio Bicudo e a bizarra figura de Janaína Paschoal é aprovado e antecipado por Cunha, com a Solidariedade de Paulinho (o tal da Força Sindical).
Neste momento o plano, entre os parlamentares, virou um “salve-se quem puder”. Plano esboçado (ao menos dito) por Romero Jucá: há que se estancar a sangria. Um acordo nacional, com o supremo, com tudo. Isto para salvar os seus do incêndio da crise.
Por detrás de todo este conflito de interesse havia, dentre outros, o objetivo de desestabilizar o poder executivo e acelerar o processo de abertura econômica para os interesses da concentração e centralização do grande capital internacional[2], além de reconcentrar também os mercados abertos pelos “global players” tupiniquins, escanteando-os. A política parlamentar fez então sua horrenda aparição pública espremida entre a necessidade de atender ao grande capital e salvar a própria pele, (“pela família, digo sim!”). Os meios de comunicação, capachos dos interesses do grande capital, estimularam ad nauseam o espetáculo.
E como este espetáculo foi visto pelas classes sociais no país?
Do ponto de visto popular, confirmou-se algo que estava presente do nosso lado, mas latente. Nossa democracia, parida como foi pela ditadura, acabou por se confundir em demasia com o regime de exceção. A estrutura democrática era de fato uma guerra aberta e permanente contra os pobres. Uma estrutura orientada para e pela acumulação de capital. E é bem conveniente à democracia do capital as atividades empresariais da ilegalidade. Não à toa o crescimento da violência nas periferias também foi permanente e acentuado, reflexo das altas taxas acumulação das indústrias do tráfico, das armas e das prisões. A crise urbana, ao longo dos anos 90 e 2000, também se acentuou. O longo ciclo de lutas dos anos 80 e a enfim chegada liberdade democrática cultivaram a promessa de um viver bem a partir da nova república, promessa que alcançou seu apogeu nos governos petistas. Era o máximo que podíamos ter sem que as coisas se transformassem. Esse “máximo”, que não era muito, bateu no teto. Até o fato de “não ser muito” explica em partes o descontentamento popular. O desdobrar da “caça à corrupção” e a estratégia de desgastar o governo do PT encontraram um flanco neste descontentamento. A promessa nunca vinda se transformou em apatia e, por fim, em descrédito popular. Uma vez que o surto do desenvolvimento econômico não resolvia os problemas que pareciam se acumular para os trabalhadores, a defesa de um governo “democrático e popular” foi dinamitada pelo espetáculo moralizador da lava-jato, pelos casos de corrupção envolvendo o governo e sua base aliada, apresentados como principais e exclusivos responsáveis pela crise atual. O “politicismo” serve bem à política do capital.
As classes médias e médios empresários sempre mantiveram um “fascismo de baixa intensidade” dentro de si, ao menos “em média”. A sina de “odiar/escapar d/os de baixo” e “querer/nunca ser como os de cima” inclina esta fração a terrível lógica de sempre se disporem a “perder os anéis desde que não lhes arranquem os dedos”. E, obviamente, constroem seus próprios e pequenos espaços de acumulação pisando sobre as cabeças dos que estão imediatamente abaixo. No sentido produtivo são os “generais” do capital, são os patrões dos pequenos, ou mesmo médios, comércios; dos serviços das mais variadas ordens; pequenas e médias empresas; funcionários de alto comando administrativo do estado; burocratas das mais variadas colorações em posições de mando relativo. A necessidade de controle, ordem, disciplina forçada e indiferente (desde que vistas de dentro de seus condomínios) é sua marca permanente, ora mais clara, ora mais latente. “Em média” essa fração não tem escrúpulos em apoiar os projetos mais degenerados para manter a cadeia hierárquica mesmo que afundando nas suas devidas distâncias. É deste modo, em certa medida “no front”, que eles jogam na consciência comum.
O descontentamento popular – entendendo-o como amálgama desigual destas duas classes acima – começou a buscar um “antissistema”. No início era a “revolta” da “quinta série B” contra o “politicamente correto”, que era também a percepção de uma vida imposta que nos obriga a ser tolerantes com muitas das coisas que nos oprimem em nome de um “politicamente correto”, expressão do cinismo presente no “apogeu” da democracia do capital. O ignóbil candidato a messias, nos seus infames anos de parlamentar, sempre se apresentou como o espontâneo da imbecilidade. Do não pensado e da violência gratuita. Esse caráter infantil é importante, expressou algo de autêntico em um sistema “morto”. Somou-se a isto a aparência de uma resposta enérgica de uma autoridade violenta em favor de uma ordem em abstrato. William Reich em sua análise sobre a Alemanha da década de 30 nos mostra que a crise econômica gera uma frustração popular com a realidade social estabelecida. Nos mostra também que o culto a personalidade autoritária se encaixa nessa frustração. A “esquerda”, na perspectiva popular, estava demasiadamente confundida com a ordem estabelecida. A pecha de quadrilha era a última peça que faltava. Incapaz de expressar a rebeldia, a figura nanica e execrável do asno picareta, espontâneo em sua imbecilidade, cresceu. Pareceu ser algo autêntico em um sistema morto.
Por fim, juntou-se a fome com a vontade de comer e “os cordeiros vão voluntariamente ao abate”.
As possibilidades de representação do interesse dos grandes capitais são, em boa medida, o resultado da correlação de forças do país. A crise instaurada, que contava com o apoio inicial dos representantes indeléveis do grande capital (PSDB), dava sinais que iria engolir seus entusiastas. A insatisfação popular não tinha muito para onde desaguar e o movimento crescente de votos brancos e nulos, até a presente eleição, demonstram isso.
É dentro deste cenário que a possibilidade de uma candidatura de extrema-direita se apresenta como uma resposta ao estado de coisas para uma pequena parcela de pequenos burgueses e de trabalhadores. Os grupos neoconservadores que surgiram desde as manifestações de 2013 (em boa medida em resposta ao protagonismo “à esquerda” das manifestações de rua em junho) jogaram fortemente. Eles encontraram na figura tragicômica do “Bozoasno” um apoio, ainda que distante, para a reintrodução do conservadorismo liberal como a mais nova novidade política, como resposta “radical” ao estado de coisas. Por fim, as afinidades eletivas fizeram seu percurso ratificando a legitimidade de tal candidatura.
Com o crescimento e estabelecimento “popular” dessas organizações neoconservadoras, em boa medida fortalecidas pelas mídias tradicionais e pelas mídias “alternativas”, a figura do execrável vestiu as roupas de candidato “antissistema” figurando, logo de saída, em segundo lugar nas pesquisas. O eixo “norteador” da resposta à crise política era tornar o PT o grande responsável por toda corrupção “nunca antes vista na história desse país”. Impossível desfazer o que foi feito. A prisão de Lula se transformou em questão de vida ou morte para o novo arranjo que ainda estamos vendo ser tecido.
No início da eleição ainda que fosse imaginável, não era visível o tamanho do desgaste do PSDB. A rápida organização do “centrão” em torno da campanha do Santo ladrão de merenda mostrou a expectativa de uma “suave” transição à política de reformas para o capital, análogas as que foram realizadas por Macri na Argentina. Porém, a rejeição popular, cultivada pelo espetáculo midiático, à “corrupção” e ao atual estado de coisas em crise, engoliu também o PSDB. Sem candidatos à direita e tendo a prisão do Lula como questão de vida ou morte para o novo arranjo, paulatinamente os grupos de pequenos empresários e as classes médias que tradicionalmente apoiavam o PSDB migraram para o “Bozo”. Conforme as eleições confirmaram a tendência de ser esta excrescência o principal candidato popular “à direita” esses apoios foram se manifestando. O problema central é que este não é um candidato hegemônico e nem poderia sê-lo representando, mesmo que estupidamente, uma “quebra de sistema”. Todas as pesquisas demonstravam problemas no segundo turno. Para piorar, a influência do PT era forte o suficiente para assegurar uma vaga no segundo turno para qualquer “poste” indicado por Lula.
Toda a narrativa construída desde o impeachment consistia em isolar no PT a essência da corrupção econômico-moral de nossa sociedade. A continuidade do PT no segundo turno era forte o suficiente para precipitar boa parte dos grupos de classe média para os braços do fascismo. Conforme este processo se agudizou, frações dos empresariados médios, do setor de serviços e do agronegócio foram se adequando. Por fim, o mercado financeiro sinaliza que topa o Brancaleone com as variações “positivas” do dólar baixo e da bolsa em alta. “Criemos mais um atentado e saímos da crise!”.
Os movimentos das últimas semanas, de apoio das igrejas, de campanhas no WhatsApp, de entrevistas na Record, de manifestações públicas de empresários coagindo funcionários ao voto, de juizéco cabo-eleitoral, etc., demonstram a afinidade com a melhor possibilidade para o Bonaparte do momento, que seria ganhar no primeiro turno. O grande capital, que, ao menos no início da corrida eleitoral, havia mostrado certa resistência à esta candidatura, deve ter calculado que, dado o cenário de crescimento dos conflitos na América Latina, especialmente na Argentina, México e Venezuela, era melhor redefinir os limites para o autoritarismo burguês. Na Argentina, Macri, que cumpriu fidedignamente a agenda de reformas para o capital, devastando os direitos e a própria classe trabalhadora, encontra forte resistência popular e o esperado novo ciclo de crescimento econômico tarda a aparecer, se é que virá! A Venezuela, com seu governo não tão alinhado aos interesses do grande capital internacional, mesmo com o recrudescimento da crise econômica, parece conseguir estabilizar-se neste período em que o preço do barril de petróleo voltou a crescer, dificultando o controle externo sobre a economia do país. Dentro deste cenário os rumos que a sociedade brasileira tomará são decisivos para os demais países e o recrudescimento do autoritarismo, mesmo com seu verniz fascista, parece melhor ao grande capital para enfrentar o novo ciclo de lutas que se abre. Apesar de todo esse esforço ainda existe alguma resistência e as cartas não foram todas viradas. Mas, independente do resultado das eleições, sob qual base se sustentará o novo governo?
Rodrigo Lima é doutorando em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba
[1] O que ficou conhecido na literatura econômica como “boom das commodities”. A gênese deste processo está relacionada à crise da bolsa de Nasdaq, nos EUA. Os principais capitais que buscavam rotas alternativas de valorização encontraram nas commodities uma ótima oportunidade de acumulação.
[2] O caso da Petrobrás é emblemático. Os anos de 2015, 2016 e 2017 foram de aberta pilhagem dos ativos da empresa e favorecimento dos contratos de exploração do Pré-Sal para as gigantes do mercado internacional.