Mais mudanças?
Sem confrontar minimamente o grande capital não haverá orçamento para as demandas de Junho. Sem isso, a nova classe trabalhadora pode se inclinar para o discurso de mercado da oposição. Mas, se mudar, o PT vai abalar os alicerces do pacto social rentista que o sustentou politicamente até aquiLincoln Secco
As Jornadas de Junho de 2013 inauguraram um novo ciclo político no Brasil. É verdade que os políticos profissionais e mesmo os partidos de esquerda, assustados, não ousaram criticar abertamente os protestos. O PT, em especial, tentou virar as costas e, nos bastidores, desqualificá-los como um efêmero movimento de direita, enquanto o PSDB tentou endurecer a repressão policial, como de hábito.
Como um enigma, Junho esteve à espera de sua apropriação pelas forças políticas. Em si mesmo, ele continha tanto temas da direita quanto práticas esquecidas da esquerda. Que a candidata Marina Silva, uma ex-petista e ex-ecologista, tenha aparecido como a expressão distorcida de Junho foi apenas um resultado da impossibilidade de uma esquerda presa à ordem compreender as novas gerações de militantes.
Quando Marina Silva, inebriada pelos ventos do destino, assumiu a candidatura à Presidência e derrubou o PSDB de um dos polos da disputa eleitoral, rapidamente os analistas se prenderam às oscilações semanais de opção de voto nos setores de dois a cinco salários mínimos. Seriam pessoas “mal-agradecidas” que, tendo subido com Lula, agora imitavam o comportamento eleitoral da classe média tradicional. No entanto, esse era um dos segmentos de Junho que, tendo emergido em ocupações precárias de trabalho, passaram a demandar serviços públicos de qualidade.
Diante disso, a campanha do PT fez uma inflexão à esquerda. A ideologia atual do partido consiste na moderação progressiva como condição sine qua nonpara governar até o limiar do conservadorismo. Mas, diante da incorporação distorcida de seu discurso pelo adversário, os dirigentes petistas se lembraram do passado e se radicalizaram para ganhar as eleições.
A incorporação dos novos trabalhadores ao consumo é derivada do crescimento econômico. Como o governo rejeita sacudir o mundo político com receio de que os fundamentos de sua política econômica se abalem e haja desconfiança dos capitalistas e alta da inflação, ele acredita que basta incorporar sempre mais pessoas ao consumo.
Desde Junho
O que Junho nos disse? É importante incorporar. Se o governo, porém, quer canalizar os conflitos, ele precisa aumentar também a cidadania social, cultural e política. Essa opção exigiria exatamente sacudir o mundo político oficial. Eis o beco sem saída.
Em termos de orçamento público, isso é ainda mais evidente. As reclamações por melhoria da infraestrutura pública para o desenvolvimento capitalista já foram captadas pelas ruas de outra forma. As pessoas querem também melhorias que deem conforto à convivência entre velhos e novos consumidores.
Quando Lula disse que as manifestações por mobilidade urbana ocorriam porque os pobres agora tinham automóveis, ele acertou. Mas não tirou as devidas conclusões. Se todos ficarem encurralados em congestionamentos, até os pobres vão reclamar. Entretanto, a manutenção da política econômica que privilegia o setor rentista da sociedade não permite que o governo faça pesados investimentos exatamente na mobilidade urbana.
O caminho da radicalização dentro da ordem implicaria extensão da cidadania social e da cidadania política (substituição das polícias atuais, reformas do Judiciário, da mídia e da política etc.). Seria uma aposta arriscada em busca de um apoio social de uma nova geração que saiu às ruas e em confronto com parte das classes dominantes. A democracia racionada seria superada.
É bastante improvável, embora não impossível, que isso ocorra. O PT teria de se dirigir à nova classe trabalhadora e fomentaria a luta de classes dentro de níveis “toleráveis”. O obstáculo a isso é a necessidade de um partido de governo manter uma distância segura da radicalização popular.
O novo ciclo político aberto em junho de 2013 no Brasil não é uma peculiaridade nacional. Desde a crise de 2008 o mundo oficial da política foi abalado em vários países. Na Espanha, os indignados desmoralizaram o governo “socialista” e, em seguida, a direita voltou ao poder.
Na América Latina, a esquerda governista enfrentou desde golpes de Estado (Honduras e Paraguai) até mobilizações intensas como na Argentina e, particularmente, na Venezuela. Certamente, teremos pela frente um governo muito mais acuado por protestos na rua e na grande imprensa. Ele será pressionado a fazer um ajuste fiscal e atender às demandas conservadoras.
Quando Lula estava à beira do precipício em fins de 2005, a grande imprensa trouxe para si mesma a tarefa de exercer a oposição no país. Doravante, o oposicionismo das empresas monopolistas de comunicação vai aumentar assustadoramente porque as eleições derrotaram pela quarta vez o partido de direita mais organizado que elas tinham, o PSDB.
O pacto social rentista
Sem confrontar minimamente o grande capital não haverá orçamento para as demandas de Junho. Sem isso, a nova classe trabalhadora pode se inclinar para o discurso de mercado da oposição. Mas se mudar, o PT vai abalar os alicerces do pacto social rentista que o sustentou politicamente até aqui.
O PT optou inicialmente por reformas sociais que não confrontassem o grande capital financeiro. Assim, uma política de visível inclusão social e recuperação do salário mínimo conviveu com a especulação e altas taxas de juros. A tradução social disso foi uma aproximação espacial entre a nova classe trabalhadora e a velha classe média, para desconforto desta, o que explica em boa medida que a classe média tradicional tenha reforçado seu papel como base social do capital financeiro.
Esse pacto pode estar em vias de se quebrar porque a nova classe trabalhadora se dividiu entre PT e PSDB nestas eleições e um setor mimetizou o comportamento da classe média que prefere os piores e mais caros serviços privados do mundo a um Estado ineficiente que considera aparelhado e corrompido pelo PT.
Em seu primeiro discurso, Dilma começou por cumprimentar Lula e os políticos que enchiam o palanque de papagaios de pirata de partidos de direita, a começar por seu fantasmagórico vice Michel Temer. Depois, ela se voltou novamente a Lula, “o militante número 1”, talvez numa alusão ao papel que ele e a militância petista tiveram na reta final. Ali ela se declarou pronta a liderar a reforma política com uma consulta popular e se declarou consciente do poder e dos limites que uma presidenta possui. Mas não tocou no controle social da mídia em nenhum momento, embora em transmissão ao vivo pela Rede Globo ela tenha sido interrompida por audíveis gritos de uma velha palavra de ordem: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Todos no palanque estavam visivelmente constrangidos e muito mais os comentaristas da Rede Globo em seguida.
Esse é um exemplo do contencioso da ideologia lulista. No final do segundo turno, o PT foi mais uma vez vítima de uma capa injuriosa da revista Veja, mas não se sabe se irá confrontar os monopólios midiáticos.
Agora talvez o partido não tenha escolha. A polarização das últimas eleições e o ressurgimento de uma militância voluntária antipetista com forte apoio social indicam que sua vida não será fácil. Aos movimentos sociais sobra a tarefa de pressionar o governo por “mais mudanças”, afinal foi com esse lema que Dilma foi reeleita.
Lincoln Secco é Professor de História Contemporanêa na Universidade de São Paulo e autor do livro História do PT (Ateliê Editorial, Cotia-SP, 2011).