Mais uma vítima do genocídio da população negra no Rio de Janeiro
Nos últimos anos foram identificadas, só na região metropolitana do Rio de Janeiro, 14 mulheres grávidas baleadas, sendo que sete morreram e oito bebês não resistiram
Na última terça-feira, dia 08 de junho de 2021, no Complexo do Lins, na zona norte do Rio de Janeiro, morre vítima de “bala achada”, Kathlen de Oliveira Romeu. Mais uma jovem negra atingida brutalmente pela violência armada. E ela não foi sozinha: tinha descoberto recentemente sua gravidez. Mataram uma mãe e seu bebê!
Não é nenhuma novidade a naturalização do extermínio da população negra brasileira, inclusive temos retratado sobre o tema aqui no Le Monde Diplomatique Brasil desde março do presente ano. Lemos e ouvimos notícias diariamente relatando sobre o aniquilamento aceitável e, praticamente, institucionalizado pelo Estado brasileiro. Em uma sociedade sustentada pelo pacto narcísico da branquitude podemos sinalizar que o existir pessoa negra é de fato sinônimo de morte, ou seja, simbolicamente representamos tudo aquilo que deve ser eliminado, expurgado e destruído. Ou caetaneando… “és o avesso, do avesso, do avesso”[1].
De acordo com a Plataforma Fogo Cruzado a maternidade também tem sido alvo da violência armada, o que não é algo novo e nem muito menos recente, porém pouco destacado e sem visibilidade alguma. Nos últimos anos foram identificadas, só na região metropolitana do Rio de Janeiro, 14 mulheres grávidas baleadas, sendo que sete morreram e oito bebês não resistiram. Conforme consta nos dados, a “bala perdida” é apenas um dos motivos da morte dessas mães, o que demanda maior atenção para outras formas de violência que estão silenciadas.

Não paramos por aí. A mortalidade materna negra cresce com a pandemia. Segundo o Boletim Observatório Covid-19 – Semanas Epidemiológicas 21 e 22 (2021, p. 14), “entre os 1.204 óbitos registrados em 2020 e 2021, cerca de 56,2% ocorreram em mulheres pardas e pretas, com risco de morte quase duas vezes maior do que o das mulheres brancas”. O que significa a materialização da banalização das vidas negras, já que o direito a maternagem não pode ser experienciado por qualquer mulher[2], pois nem todas não vistas como mulheres, conforme retrata bell hooks em seu livro E eu não sou uma mulher: mulheres negras e feminismo.[3]
Lélia Gonzalez no texto Racismo e Sexismo na Cultura brasileira[4] problematiza o lugar social destinado para as mulheres negras. Além da mulata e da trabalhadora doméstica, a autora aponta para a noção de mãe preta. Para Gonzalez (1984), essa é a mãe que vai ninar e maternar as crianças brancas, não sendo-lhe permitido construir sua família e muito menos gestar, parir e cuidar de sua prole. Resta-lhe apenas servir e maternar as crianças do outro, reafirmando a mãe preta como folclore dos brancos.

Choramos novamente por nossos mortos, porém não nos calamos e nem ficamos paralisados. É tragédia atrás de tragédia e permanecemos resistindo desde o sequestro massivo de África. Nos recriamos na diáspora para permanecermos (re)existindo. Até quando? Não sabemos. Até quando continuará a perpetuação do pacto narcísico da branquitude? Não sabemos? Só sei que é tempo de um “novo quilombo de Zumbi”.
Vá em paz, mamãe Kathlen de Oliveira Romeu.
Rachel Gouveia Passos é assistente social, professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense, autora e organizadora de algumas obras sobre saúde mental e as relações de gênero, raça e classe.
[1] PASSOS, R.G. “Narciso acha feio o que não é espelho”. Boletim 79, CRESS 12ª, edição 79, maio, 2021. Disponível em: http://cress-sc.org.br/wp-content/uploads/2021/05/Boletim-79-%E2%80%9CNarciso-acha-feio-o-que-n%C3%A3o-%C3%A9-espelho%E2%80%9D-Rachel-Gouveia-Passos.pdf
[2] PASSOS, R.G. “O lixo vai falar, e numa boa!”. Revista Katalysis, Florianópolis, v.24, n. 2, p. 301-309, maio/ago. 2021.
[3] BELL HOOKS. E eu não sou uma mulher: Mulheres negras e feminismo. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2019.
[4] GONZALEZ, L. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, p. 223-244, 1984.