Maradona e o nacional popular latino-americano
Maradona não é só a história heroica de um homem, mas o símbolo de uma coletividade cultural, uma metáfora de um sujeito coletivo
Contam que já no auge da fama, o escritor argentino Jorge Luis Borges foi proferir uma palestra em Buenos Aires e não havia quase ninguém. Os organizadores desculparam-se com ele e revelaram o real motivo: naquele momento Maradona estava em campo. Borges teria retrucado: “Mas quem é Maradona?”, ao que lhe respondem tratar-se de um jogador de futebol muito popular. Já idoso, Borges conclui: “Também a estupidez é popular”.
O episódio poderia ser uma encenação de uma disputa entre o saber do povo e a erudição dos altos costumes. Nada mais simbólico do que um literato, representando uma função quase nobiliárquica contemporânea, menosprezar um ídolo de massas que se fez com os pés; e não com as mãos. É como se ele dissesse: prestem reverência à cultura que eu represento, não a desse plebeu.
Na política, isso não é só uma metáfora, mas uma constante: para a maioria dos formadores de opinião da classe média, importa o quão próximos estamos da Europa, ou dos EUA. Os valores estão invariavelmente refletidos naquilo que o velho continente apresenta como solução para os seus problemas e qualquer peculiaridade que destoe de lá tende a estar errada. A bússola inconsciente da autoconsiderada “inteligência” latino-americana sempre esteve muito voltada para o Norte.
E se enganam se acham que me refiro somente à direita tradicional. Falo aqui especificamente da esquerda; ou de parte de uma esquerda que busca uma página, uma referência, um sinal de que está no caminho certo de um progresso; de uma esquerda que cultua – ou objetifica – o candomblé, mas que no fundo é tão-somente algo que se aceita em matéria de proteção patrimonial, de exotismo ou de culpa: jamais fundacional de uma visão de mundo.
Para grande parte daqueles que militam num marxismo racionalista ou num progressismo democrático liberal, as referências nunca são buscadas de dentro, mas de fora da América Latina. A crença na evolução, na ciência do homem branco e na democracia mítica de Atenas são inabaláveis. Por isso, é tão difícil dialogar com um crente, não o religioso, mas o cientificista: a certeza de que precisamos ser aquilo que fomos predestinados a ser por um misticismo europeu de democracia é sagrada.
A questão é que se trata de uma profecia auto-cumprida: jamais poderemos transcender politicamente ao papel que desempenhamos se aceitarmos as regras e as condições do jogo que nos impuseram há séculos. Não há democracia possível, nem revolução, que se construa no continente latino-americano partindo de um princípio definidor fora de nossas fronteiras e convívios.
A ideia de Paulo Freire, da educação que parte do entorno dos alunos, do saber que se constrói a partir da terra e das mãos, do que se toca e se sente, e não daquilo que se projeta como ideal, é a mais próxima da construção dessa política. Mas grande parte da nossa esquerda segue insistindo no contrário: numa consciência de classe que precisa ser lapidada (logo a busca eterna de um modelo pré-definido) ou numa concepção almejada de democracia liberal que parece só haver nos nórdicos ou alemães.
Isso não quer dizer, no entanto, que seja possível negar a tradição europeia. Não é necessário fingir que podemos transcender a quinhentos anos de história de afetação carnal e intelectual de uma colonização violentíssima, que dura até hoje. Somos frutos também disso; e é real.
Mas é verdade também que precisamos tornar essa influência consciente. Como num processo terapêutico, perceber nossas demandas internas é o primeiro passo para lidar com elas. Assim, da mesma forma que é necessário desvendar as entranhas do racismo, do sexismo, do capacitismo, entre tantas outros, é preciso também passar pelo processo inevitável da denúncia de um eurocentrismo. Não é só pela questão moral e reparadora, mas porque a denúncia não só denuncia, mas também anuncia. E isso é o que a faz existir, faz ter nome e, a partir de então, podemos dialogar e entender do que se trata.
Partindo do mesmo princípio, assim como devemos pensar que a formulação acadêmica é essencialmente machista e racista por consequência de séculos da onipresença de autores homens cis e brancos, por que não questionar que a base teórica de análise formada em nossas universidades latino-americanas seja centrada na sociedade europeia ocidental?
Deslocar o olhar, o exercício de familiarizar o estranho e estranhar o familiar – como na máxima da antropologia acadêmica – serve para analisar de outro ângulo não só as respostas aos problemas, mas fundamentalmente as perguntas que fazemos para chegar neles. Quando ouvimos Ailton Krenak alertar para a relação ancestral com a terra da perspectiva cosmogônica e política; quando entendemos o “populismo” não como uma doença tropical a partir das análises de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe; ou quando somos atravessados pelo feminismo afro latino-americano de Lélia Gonzales, não é somente um tempero regional que é adicionado ao prato principal, como uma cena mexicana de filtro amarelo num filme de Hollywood. Trata-se de reinterpretar a sociedade por outro ponto de vista: o de dentro/nosso.
Isso não significa, no entanto, uma relação binária entre Europa e Américas. Estamos no meio disso porque, como já atentamos, somos resultado desse processo de colonização. Por isso, Maradona não é só a história heroica de um homem, mas o símbolo de uma coletividade cultural, uma metáfora de um sujeito coletivo.
A imperfeição de um anti-herói contrasta com a meritocracia que o neoliberalismo e conservadorismo estavam sedentoa para lhe carimbar, e não pôde. Porque ele perverte o relato do cidadão de bem, se assume como personagem político e mantém a contradição necessária para ser de carne e osso, produto de seu tempo e de sua classe, mas não a projeção de um ideal. O eterno número 10 da seleção argentina não é o povo prestes a fazer uma revolução comunista, apesar da tatuagem do Che Guevara no braço, mas alguém profundamente atravessado por um sentimento anti-imperialista, que identifica o grande capital – representado pela velha oligarquia de Buenos Aires desde os tempos de Bartolomé Mitre – como o grande inimigo da pátria.
Neste sentido, o peronismo encarnado por Maradona representa o povo naquilo que Laclau chama de plebe, que é a consciência coletiva de sentir-se lutando contra um bloco de poder, não o povo no sentido de populus: a totalidade indiscriminada de um país.
O particular e o geral
O que une os movimentos populares latino-americanos desde o início do século XXI é sobretudo uma agenda em comum. A experiência dos governos Lula, Kirchner, Chávez, Evo, Mujica e Lugo chancelou o sucesso dessa articulação, refletida no fortalecimento do Mercosul e na criação da Unasur.
Ouça o episódio #34 do podcast Guilhotina com o historiador Fábio Luís Barbosa dos Santos sobre a onda progressista na América Latina
O campo nacional popular latino-americano passa necessariamente por uma integração regional para que seja vitorioso e perene. A diferença de Boric para Piñera, por exemplo, é que o primeiro reconhece as demandas de seus vizinhos argentinos quando reclamam, por exemplo, do óbvio: que as Malvinas pertencem ao território de um país que está a poucas milhas e não faz parte de uma nação da qual dista 14 mil quilômetros. Essa possibilidade só existe na lógica da colonização europeia. Fora disso, é inexplicável.
Na América Central e do Sul, a “autodeterminação dos povos”, princípio de exportação inglês[1], ainda não chegou nem para as Ilhas Cayman, nem para outros doze territórios em todo o planeta sob sua posse. Chegou, sim, o eufemismo: chamam-nos de departamentos ultramarinos ingleses e não do que eles realmente são: colônias.
A narrativa neoliberal não faz muito diferente ao defender que países latino-americanos adotem um modelo político e econômico que vá beneficiar, ao fim e ao cabo, o norte global. Nunca esteve nos planos do receituário neoliberal, por exemplo, a criação de uma moeda única sul-americana, como vem sendo estudada por alguns economistas da região. Para a manutenção do status quo e do papel regional latino-americano em uma posição eternamente subalterna, é muito importante que o dólar seja a moeda mais forte e monopólio das reservas cambiais internacionais.
E isso não é uma proposta menor: é simplesmente impossível que qualquer país da nossa região possa negociar uma autonomia, ou sequer uma dependência menos selvagem, em relação ao binômio EUA-Europa Ocidental se não for através da cooperação mútua nas esferas econômica, territorial, financeira, cultural etc.
Entre o marxismo e o nacional popular
Gramsci dizia que as sociedades atrasadas “econômica, política e espiritualmente”, como a italiana, preferiam o baralho ao esporte. Sua hipótese era a de que a presença de um árbitro transformava a partida num cumprimento controlado de ações, baseadas numa lei e, portanto, suscitava a “tolerância em face da oposição”. Dizia ele: “o baralho produz os senhores que põem pela porta afora o operário que, na discussão livre, ousou contradizer suas opiniões”. [2] Essa interpretação é bastante interessante porque, contraditoriamente, décadas mais tarde o futebol viria a se popularizar como um dos principais esportes regionais na América Latina e na própria Itália.
Interessa-nos pensar, na analogia do texto de Gramsci, o quanto podemos subverter a ordem imposta como no jogo de baralho. Não há, no entanto, só a implicação da dinâmica ou das regras do jogo (de baralho ou de futebol) como metáfora da sociedade que se pretenda analisar. Pensando neste sentido, estaríamos partindo somente do jogo para se entender a sociedade. É necessário fazer o exercício inverso: entender qual a representatividade que aquele jogo tem dentro da sociedade em que se vive o tempo presente.
Claro que Gramsci não poderia prever o que sucederia décadas à frente, mas, no caso do Brasil e da Argentina, assim como em grande parte dos países latino-americanos, o futebol não é o atestado de um “individualismo”. Ao contrário: é justamente a formação de um sujeito coletivo a partir de um imaginário popular. É também no futebol, assim como em tantas outras manifestações culturais, que o povo se forma a partir da celebração de algo em comum, que se entende tacitamente como nacional, portanto, hegemônico.
Desta forma, a política que também se pretende hegemônica, se não dialoga com as potências e contradições da cultura popular latino-americana, tende a ser a projeção de um ideal. Um ideal rançoso e eternamente preso a uma ação inexequível porque dista um século e um Atlântico do presente. Estará fadada, portanto, a ser sempre uma política elitista que vê com o mesmo desdém que Borges enxergou Maradona.
Victor Moreto é historiador pela Unirio e doutorando em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires – Argentina.
[1] Em 1941, Reino Unido e Estados Unidos aprovaram a Carta do Atlântico que continha, dentre outros postulados, o “princípio da autodeterminação dos povos”, que viria a ser a base para os países libertos no pós-guerra.
[2] GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. (Organização, introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2004, v. 1, p. 209.