O governo Boric: do movimento estudantil a La Moneda
Boric se depara com um desafio inédito no Chile: consolidar um projeto transformador que estabeleça as bases para superação do modelo neoliberal
O triunfo no Chile do esquerdista Gabriel Boric contra o representante da extrema direita pinochetista José Antonio Kast é, sem dúvidas, o acontecimento político mais importante da região em 2020. O sucesso ou o fracasso do futuro governo terá grande efeito na capacidade da esquerda latino-americana de projetar um ciclo político renovador.
Tendo como meta a conformação de um governo eco-feminista que se inspira no socialismo democrático de Salvador Allende, o futuro governo Boric se depara com um desafio inédito no Chile: consolidar um projeto transformador que estabeleça as bases para superação do modelo neoliberal. Para isso, sem dúvidas, a relação com os movimentos sociais será fundamental. Aliás, o ciclo político atual está intimamente ligado ao ciclo de mobilizações dos últimos 10 anos no país andino e do qual o próprio Gabriel Boric é resultado.
Chile: de laboratório do neoliberalismo a caldeira de lutas
Desde a década de 1990, o Chile foi colocado como o paradigma, para os países emergentes, de um desenvolvimento que combinava abertura econômica com estabilidade democrática. Porém, a via chilena do neoliberalismo foi subitamente desacreditada por uma série de mobilizações sociais que encontrou no “estallido social” de outubro de 2019 sua expressão mais aguda. O ciclo de mobilizações recentes revelou ao mundo a pior face do modelo chileno: altos níveis de desigualdade, precariedade da vida, endividamento e separação entre demandas sociais e institucionalidade política.
Como foi possível a passagem do país modelo do neoliberalismo ao momento de questionamento atual? As mobilizações de secundaristas em 2006 e de universitários em 2011 são um marco para compreender essa virada. Precisamente, o novo presidente de Chile, o mais jovem de sua histórica e o mais votado (em termos absolutos), construiu sua trajetória política nessas rebeliões educacionais como liderança da Federação de Estudantes da Universidade do Chile (2012). Dois dos seus mais estreitos colaboradores e aliados políticos no seu futuro governo, a comunista Camila Vallejo e o fundador de partido Revolução Democrática, Giorgio Jackson, foram as principais lideranças de 2011. Todos eles se mobilizaram contra a mercantilização da educação durante o primeiro mandato de Sebastián Piñera. Dez anos depois da “primavera chilena”, é o próprio Piñera quem terá que entregar o comando do país a esse grupo de lideranças.
O triunfo de Boric mostra que a relação entre ciclos de mobilização e ciclos políticos eleitorais é mais sinuosa do que se esperaria. Ainda que as mobilizações estudantis tenham tido efeitos políticos imediatos: criou-se a bancada estudantil na Câmara dos deputados, com Boric, Jackson e Vallejo, e a demanda por mudanças tenha pavimentado a chegada pela segunda vez de Bachelet com um projeto mais reformista; também a insatisfação com as reformas desse governo e o retorno de Piñera ao poder levaram apressadamente a acreditar que o “efeito 2011” tinha acabado.
Longe disso, as mobilizações estudantis abriram um questionamento à mercantilização dos direitos sociais herdada da ditadura e as lógicas meritocráticas que supostamente operavam na educação. Paralelamente, una série de mobilizações de moradores de “zonas de sacrifício” evidenciaram os limites ambientais do extrativismo chileno: o ponto de partida foram as passeatas contra o mega projeto elétrico Hidroaysén na Patagônia em 2011. O movimento “No más AFPs”, contra o sistema de previdência baseado na capitalização individual, mostrou que um dos pilares do modelo chileno – seja pela sua contribuição à financeirização da economia chilena seja por como foi exportado como um exemplo a ser seguido pelo mundo – tinha uma forte erosão na sua base de legitimidade, por entregar aposentadorias que são um passaporte à pobreza. O maio feminista de 2018 marcou a irrupção numa magnitude inédita do até hoje influente movimento, injetando fortes doses de desnaturalização e questionamento ao modelo e, sobretudo, empoderando politicamente as mulheres que foram determinantes para inclinar a balança eleitoral contra Kast, cuja agenda promovia um retrocesso de todas as pautas feministas. Além do mais, o movimento Mapuche se mobilizou permanente pela recuperação das suas terras ancestrais e por maiores graus de autonomia. Todas estas mobilizações foram acumulando pressão sobre o sistema político para finalmente escapar de maneira vulcânica no 18 de outubro de 2019, combinando esses descontentes numa força inorgânica, mas avassaladora.
O principal efeito político dessa explosão foi gerar as condições para a mudança constitucional. Diferente das democratizações dos outros países da região, a chilena teve como traço o fato de não realizar uma Assembleia Constituinte que refundasse a institucionalidade política depois da ditadura, ainda que a Constituição feita durante o regime de Pinochet tenha sido fortemente programática e limitadora da vontade popular. Assim, a democracia chilena ficou condicionada constitucionalmente: mantendo um Estado subsidiário, a privatização dos direitos sociais e, ao mesmo tempo, impossibilitada de realizar grandes reformas pelos princípios contra-majoritários e pré-estabelecidos na lei fundamental.
Tentativas de reformas sociais prévias fracassam, como durante o segundo governo Bachelet, porque eram consideradas inconstitucionais pelo Tribunal ad-hoc. Por isso, apesar de não haver uma única demanda aglutinadora durante as mobilizações de 2019, parecia claro que não existiria saída institucional possível à crise sem uma nova Constituição. Embora o acordo pela Paz e pela Nova Constituição assinado em 15 de novembro de 2019 pelo próprio Gabriel Boric, à revelia de seu partido, fora fortemente questionado pelos grupos mobilizados e principalmente pelo Partido Comunista, a realização do plebiscito constitucional abriu um ciclo de vitórias eleitorais para os setores transformadores, permitindo uma forte presença de representantes dos movimentos sociais na Convenção Constitucional que hoje redige a nova Carta Magna.

O estallido social e a vitória de Gabriel Boric
Até que ponto o triunfo eleitoral da coligação de Gabriel Boric, Apruebo Dignidad, que reúne a Frente Ampla, formada por partidos derivados das mobilizações estudantis de 2011, e o centenário Partido Comunista, é produto do Estallido Social? O próprio Boric tem reconhecido que o futuro governo provem dos movimentos sociais, notadamente o estudantil. Também é claro que sem o Estallido seria inimaginável a chegada na La Moneda desta nova geração política, porém a relação com o Estallido é mais ambivalente do que se poderia pensar inicialmente.
A própria primária de Apruebo Dignidad realizada em julho de 2021 entre a antiga liderança estudantil de 2011 e Daniel Jadue, o prefeito comunista então favorito nas pesquisas nacionais para ser eleito Presidente, pareceram uma disputa entre um Boric que procurava encarnar o espírito de entendimento do Acordo pela Paz de 15 de novembro versus um Daniel Jadue que transmitia o tom mais contencioso do 18 de outubro. Com tudo, seria errado qualificar o resultado dessa primaria como uma derrota da revolta popular de outubro de 2019. Em boa medida, porque um dos principais efeitos políticos do estallido foi estabelecer um consenso social sobre a necessidade de mudanças estruturais. Excluindo José Antonio Kast, todas as candidaturas, incluindo a da direita democrática, procuraram de alguma maneira se apresentar como alternativa de mudança. Nesse marco, Gabriel Boric conseguiu se afirmar durante a campanha como a pessoa mais capacitada para gerar os entendimentos políticos e sociais necessários para viabilizar as transformações exigidas pela cidadania nas ruas e nas urnas.
Isto mesmo apesar de uma parte importante do eleitorado parecer se distanciar do simbolismo e da estética do Estallido Social. Aliás, o desgaste das mobilizações, a experiência da Pandemia, as consequências da crise econômica que a acompanhou e a crise migratória no norte do país provocaram uma certa saturação de incertezas em parte dos eleitores, que começaram a se seduzir pelo discurso de ordem do candidato da extrema direita José Antonio Kast.
Apesar das graves violações aos direitos humanos cometidas pelo governo Piñera durante as mobilizações de 2019-2020, Kast prometeu ordem dando mais atribuições às polícias e explorou a xenofobia e o autoritarismo, assegurando mão firme contra a delinquência, a baderna e a migração ilegal. Parecia ilógico que despois das massivas mobilizações contra o governo Piñera, um candidato de extrema direita fosse em primeiro lugar para o segundo turno. Mas, a demanda por certezas era tão forte como a demanda por mudanças na sociedade chilena. E Kast conseguiu não apenas oferecer segurança durante o primeiro turno como se distanciar fortemente do governo Piñera, a quem criticou pela sua fraqueza e falta de convicção.
Porém, Boric foi hábil na hora de transmitir que a única maneira de recuperar a estabilidade perdida era mediante a realização de reformas transformadoras. Não fazer as mudanças só produziria instabilidade, ainda mais com ameaça de Kast de encabeçar a partir do palácio presidencial a campanha de rejeição da nova Constituição. Assim, se Boric conseguiu encarnar a ideia de mudança, Kast, com sua trajetória pinochetista e com o forte apoio do governo Piñera no segundo turno, não logrou evitar ser associado ao retrocesso. Kast ia na direção contrária do que a sociedade vinha demandando e representava uma ameaça real para as pautas dos movimentos sociais, particularmente para o movimento feminista e de dissidências sexuais. Desse modo, se por um lado, Boric conseguia ativar um sentimento mobilizador de esperança, por outro, complementarmente, Kast provocava um senso de responsabilidade entre setores menos politizados e naqueles mais politizados que historicamente têm rejeitado a participação eleitoral. Todos esses fatores influíram para que mais de um milhão de novos eleitores, particularmente mulheres jovens, inclinassem o resultado a favor do candidato de esquerda.
Os movimentos sociais no futuro governo
O que se pode esperar da relação dos movimentos sociais com o governo Boric? Para responder essa pergunta primeiro precisamos considerar que o novo governo assumirá num cenário político adverso. Sem maioria no Congresso, com a pandemia ativa, com uma crise econômica e migratória fortes; o governo Boric deverá gerir com muito cuidado as expectativas que geraram sua eleição. Além do mais, na primeira parte de seu governo continuará com as restrições da Constituição de Pinochet ainda vigentes e deverá concentrar energias em aprovar a nova lei fundamental e implementar uma agenda legislativa para que ela seja operativa.
Os primeiros sinais do gabinete apontam para a ampliação da base de governo à antiga Concertação de partidos de centro-esquerda. É claro que sem apoio desses partidos não teria sido possível o triunfo de Boric e que a governabilidade futura seria mais precária, porém a reabilitação dos partidos que comandaram a democratização e que fortaleceram as lógicas neoliberais do modelo provocam ceticismo entre setores de esquerda. Sem dúvidas, o governo Boric precisará da antiga centro-esquerda para poder governar, mas isso não será suficiente para implementar os elementos mais relevantes do seu programa: reforma tributária, da previdência e da saúde. Embora a direita esteja em crise, ela irá se rearticular para promover a rejeição da nova Constituição e para tentar bloquear as iniciativas governamentais.
Nesse sentido, os movimentos sociais podem ser o fiel da balança para que o projeto transformador do novo governo consiga se realizar. Porém, o equilíbrio será instável. Uma parte da sociedade chilena, mesmo tendo apoiado as mobilizações em 2019-2020, espera que este momento seja de construção e não de manifestação. Só que sem o impulso das ruas é mais difícil que o futuro governo seja bem sucedido no seu esforço renovador. Por outro lado, embora a sociedade chilena tem ganhado em historicidade, ou seja, em capacidade de autoconstrução conflitiva, essa força dos movimentos sociais não tem se estabilizado em formas mais orgânicas que permitam predizer como se comportarão.
A relação entre os movimentos sociais e o novo governo terá tensões e contradições, mas ambos são dependentes mutuamente: o governo Boric necessitará da pressão dos movimentos sociais como um fator para dinamizar o avanço do seu programa e os movimentos sociais requerem do sucesso das reformas propostas durante a eleição para que suas demandas por fim se expressem institucionalmente. Para que essa relação chegue a ser simbiótica será preciso construir um cenário de confiança e dar os sinais que garantam que é a mudança o selo do novo governo. No entanto, este cenário complicado poderia ser uma oportunidade para que a sociedade chilena construa uma nova forma de relação entre movimentos sociais e Estado, deixando para trás dinâmicas que limitaram o potencial democrático do ciclo progressista anterior: subordinação à liderança presidencial, cancelamento das críticas e das diferenças e redução do pluralismo.
Tão altas são as expectativas quanto as restrições do futuro governo Boric. Sem dúvidas, para o seu sucesso será fundamental a presença da sociedade mobilizada que fez possível este momento político. Hoje o Chile volta a ser um laboratório da mudança social.
Alexis Cortés é professor do departamento de Sociologia da Universidad Alberto Hurtado em Santiago do Chile, é doutor em Sociologia pelo IESP-UERJ, mestre na mesma disciplina pelo IUPERJ. É autor de Chile, fin del mito: estallido, pandemia y ruptura constituyente, Ril Editores (no prelo).