Marcela Dantés: ‘Me parece que caminhamos a passos bem rápidos para esse lugar, onde nada sobra, só o vento’
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique, autora mineira fala sobre tramas e subtextos do seu novo romance Vento Vazio
Em algum momento de 2020, quando o clube da editora Patuá enviou aos seus assinantes um exemplar de Nem sinal de asas, tive meu primeiro contato com a literatura de Marcela Dantés. Naquela época, a autora mineira já havia sido semifinalista do Prêmio Oceanos com o livro de contos Sobre pessoas normais (2016), também publicado pela Patuá.
Lembro de ler Nem sinal de asas em uma tarde. Quando acabei a leitura, andei de um lado para o outro no apartamento – um ritual que executo sempre que fico muito impactado com uma obra literária, como se tentasse (quase sempre em vão) absorver e organizar as sensações proporcionadas pelo texto.
Desde então, tenho feito isso com todos os outros livros publicados pela escritora. Mas o maior passeio pelo apartamento veio nos últimos meses, com a leitura de Vento Vazio, romance publicado em 2024 pela Companhia das Letras.
Marcela Dantés – que sempre teve um trabalho muito atento e delicado com a linguagem – levou isso a um novo nível em sua obra mais recente, ao contar a história de moradores do vilarejo Quina da Capivara, a partir da perspectiva de diversos narradores.
Além do espaço físico, todos compartilham reações provocadas pelos ventos que passam pelas usinas Eolioelétrica ali instaladas. “Assim que decidi escrever sobre este vento que enlouquece, me dei conta que era a oportunidade e também o cenário ideal para essa conjunção. A Quina da Capivara, o Vento Vazio, aquelas casas no fim do mundo, são uma história, mas também muitas”, conta a escritora em entrevista ao Le Monde Diplomatique.
Vento Vazio também aborda temas como o envelhecimento, o machismo e o embrutecimento – sempre com palavras certeiras, ritmo envolvente e características que permitem que leitores e leitoras identifiquem as vozes de cada personagem pertencente à trama. “Já aceitei que os temas que me obcecam são a loucura e a solidão. Entendi que enquanto autora eu fico procurando caminhos para trabalhar sempre com essas questões, seja em um vilarejo que se agita, em um apartamento imenso e vazio, em um avião”, ressaltou a autora.

Confira a entrevista na íntegra:
Assim como em suas obras anteriores, você trabalha muito bem a linguagem em seu novo romance, Vento Vazio. Um bom exemplo está na forma com que seus personagens falam. Cada um tem seu ritmo, seu vocabulário e seus vícios de linguagem. Quais são os principais desafios para encontrar a voz adequada para cada personagem? Essas características são planejadas antes ou depois de pensar sobre a história em si?
Para mim, literatura é linguagem. Contar uma história passa, necessariamente, por pensar o discurso do ou dos narradores, e isso muitas vezes importa mais que os próprios acontecimentos da narrativa. Vento Vazio é um pouco isso: um trabalho minucioso de construção de vozes diferentes, mas que orbitam o mesmo espaço e, por isso, carregam traços em comum. E é justamente este o maior desafio, encontrar estas vozes, suas nuances, suas marcas e garantir que elas sejam interessantes, convincentes, envolventes, viciantes.
O processo se alimenta e acontece ao mesmo tempo, a narrativa vai se desenrolando à medida que esses discursos ganham corpo e começam a fazer sentido.
Aliás, a obra tem diversos narradores. Quando e como percebeu que ela exigia mais de um narrador?
Eu já vinha com vontade de trabalhar narradores múltiplos em uma obra, pelo desafio, mas também pelo resultado, que costuma me encantar. Assim que decidi escrever sobre este vento que enlouquece, me dei conta que era a oportunidade e também o cenário ideal para essa conjunção. A Quina da Capivara, o Vento Vazio, aquelas casas no fim do mundo, são uma história, mas também muitas. Cada um daqueles moradores vivencia essa experiência de uma forma distinta e tem muito a contar. Confesso, inclusive, que alguns personagens que aparecem, mas não narram a história, como a Teodora, poderiam também render uma outra versão do livro.
O vento é muito importante para o livro, ao provocar variados sentimentos e sensações nos personagens, como medo, angústia e desconfiança. Como surgiu a ideia de colocar esse elemento como algo tão essencial à trama?
Acho que não podia ser diferente: surgiu da realidade. Existe, em várias regiões do mundo, a crença de que os ventos podem afetar o estado físico e psicológico das pessoas. Ventos que enlouquecem, que causam enxaqueca, ventos que já foram considerados atenuantes para crimes cometidos. Eu fiquei fascinada com essas histórias e pensei que era um prato cheio para a literatura. Tudo pode acontecer em noite de Vento Vazio, mas a verdade é que é cômodo colocar todas essas sensações na conta do vento, como os moradores da Quina da Capivara fazem, mas talvez não seja exatamente isso que tenha acontecido por lá, né?
Sua relação com o vento mudou desde que escreveu o livro?
Com certeza. Sempre gostei do vento, coisa que aprendi com a minha mãe, mas agora fico mais atenta às histórias que ele pode me contar.
O escritor Ignácio de Loyola Brandão tem um romance chamado Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento. O que esse título lhe diz sobre o Brasil de hoje?
Ignácio de Loyola Brandão sempre teve um olhar muito apurado para a nossa sociedade, para o nosso país. Me parece que caminhamos a passos bem rápidos para esse lugar, onde nada sobra, só o vento. Talvez seja uma visão pessimista, mas, convenhamos, o cenário não ajuda. Quem sabe do vento tiraremos aquilo que precisamos, enquanto comunidade, para tentarmos outra vez, sem cometer os mesmos erros e atrocidades uns com os outros?
Embora se passe em um local pequeno e com poucos moradores, Vento vazio é marcado pelo movimento. Inclusive, a própria personagem Alma diz “Eu adoro isso, esse agito, um lugar tão pequeno que nunca, nunca fica monótono”. Essa realidade é bem diferente daquela vivenciada por Anja, a reclusa protagonista do seu primeiro romance, Nem sinal de asas. Como foi para você abordar universos tão diferentes entre si, mas, ao mesmo tempo, tão próximos no que se refere à delicadeza e à profundidade?
Já aceitei que os temas que me obcecam são a loucura e a solidão. Entendi que enquanto autora eu fico procurando caminhos para trabalhar sempre com essas questões, seja em um vilarejo que se agita, em um apartamento imenso e vazio, em um avião. Acho que a maior parte das minhas tramas acontecem no interior da cabeça das minhas personagens e assim, os temas vão ganhando novas configurações. E isso é o bonito da literatura, explorar nossas obsessões, investigar ao máximo aquilo que te revira as entranhas e sempre encontrar novas formas para isso.Para o seu processo de criação, o movimento também é algo necessário? Ou a monotonia pode ser uma aliada do escritor/da escritora?
Enquanto escrevo eu não costumo muito ver o mundo lá fora, então acaba sendo indiferente se é um terremoto ou a calmaria. Eu passo muito tempo pensando e planejando um livro e este é o momento de atenção plena, tudo à minha volta me interessa, sobretudo as pessoas e suas conversas. Mas uma vez que o arquivo está aberto, é um mergulho profundo na escrita e em tudo que ela me pede – e costuma ser muita coisa.
Seus dois primeiros livros, ambos indicados a importantes prêmios literários, foram publicados por uma editora independente, a Patuá. Como enxerga o atual momento das editoras e dos autores/autoras independentes no Brasil?
É difícil falar de Brasil como uma unidade, quando o assunto é literatura. Sinto que caminhamos e avançamos muito e já saímos de um espaço que foi a realidade por muito tempo: apenas homens brancos publicados por grandes editoras eram lidos. As editoras independentes como a Patuá (por quem tenho imensa gratidão e admiração) são essenciais para que novas vozes, novas perspectivas se façam presentes. Mas ainda temos muito o que evoluir, sinto que estamos restritos ao eixo Rio/São Paulo, a um tipo de narrativa às vezes pasteurizada, e há ainda uma resistência para o que foge disso.
Ser um autor de literatura no Brasil é um grande desafio. Ser independente, ser mulher, ser negra, estar fora do centro geográfico da literatura, propor temas que fogem do mainstream, tudo isso é ainda mais difícil e são imensuráveis os desafios que muita gente muito boa tem que passar para chegar ao leitor. Por isso acho necessário o esforço diário para se quebrar essas barreiras e se descobrir essas preciosidades. Porque elas existem.
Qual foi o melhor conselho que você já recebeu no meio literário? E o pior?
O melhor, sem dúvida, foi: confia no seu leitor. Ele vai te acompanhar. Em outras palavras: você não é tão genial assim que vai escrever alguma coisa que ninguém vai entender.
E o pior foi: não publica esse livro agora, o mercado não está bom. Ainda bem que eu não segui.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá), Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e De repente nenhum som (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.