Marxismo de pés no chão
“Nas situações de pretensa normalidade democrática, as classes exploradas podem até não ter a percepção dessa violência. Mas ainda assim ela existe, pois sem o exercício do poder coercitivo não existiria o Estado burguês.” Não é exatamente isso que vemos nos acontecimentos de Rio de janeiro, São Paulo e Porto Alegre?Jorge Barcellos
“Uma das mais brilhantes penas do marxismo-leninismo na América Latina”: assim se referia a Secretaria da Segurança Pública do Serviço de Informações do Dops de São Paulo à Jacob Gorender na pasta de referência 52-Z-O-9148. São ao todo nove folhas sob o título Relatório de Informação Reservada (arquivado) em que o autor de O escravismo colonial (1978) é qualificado como “profundo erudito em Ciências Internacionais e em Política Internacional”. Os investigadores do Deops/SP estavam cobertos de razão. Criado em 1924 com a função de controle político-social e repressão a crimes políticos, o Deops/SP fazia anotações sobre Gorender desde 12 de junho de 1959 e seus documentos serviram de base para a expedição do seu mandado de prisão em 13 de outubro de 1964, emitido pelo Dr. José Tinoco Barreto, juiz auditor da 2ª Auditoria da 2ª Região Militar. Nesse período, Gorender escrevia pequenos artigos na revista Estudos Sociais, abordando temas que iam da caracterização das correntes de interpretação sociológica no Brasil à espoliação do povo brasileiro pelas finanças internacionais. Seu último artigo às vésperas de ser preso foi intitulado “Direções da luta pela democracia em nosso tempo” e sua prisão foi determinada pelo fato de seu nome estar citado junto às cadernetas apreendidas na residência do líder comunista Luis Carlos Prestes. Em 21 de maio de 1966, o Deops/SP tomou conhecimento do decreto do general Castelo Branco que suspendeu por dez anos os direitos políticos de 59 dirigentes do PCB e em 6 de junho de 1966 condena Gorender a cinco anos, como incurso nos artigos 9 e 7 da Lei 1802/53, da 2ª Auditoria da 2ª Região Militar. O que levou Gorender, um homem frágil e franzino, ser considerado uma ameaça pelo regime, a ponto de ser preso em 21 de janeiro de 1970 por agentes do Dops na casa do médico Ayton Miranda Sipahi e levado para o presídio Tiradentes?
Mário Maestri resumiu em estudo célebre a trajetória de Gorender. Nascido em 20 de janeiro de 1923, em Salvador, filho de Nathan Gorender, judeu ucraniano socialista que trabalhava como vendedor à prestação, Gorender fez seus estudos primários na Escola Israelita Brasileira de 1933 a 1940 e o ginásio e o preparatório no Ginásio da Bahia, escola pública de prestígio da elite baiana. Em 1942 matriculou-se em Direito em Salvador e inicia a militância na União dos Estudantes da Bahia, cooptado por Márcio Alves, que buscava a rearticulação do PCB no estado. Nesse período trabalha como foca nos ´jornais O Imparcial e O Estado da Bahia e em 1943 alista-se no Serviço Militar, partindo para São Paulo e Rio de Janeiro, onde recebe treinamento militar. Vai ao front de batalha na Itália, onde acompanha os ataques a monte Castelo e, na cidade italiana de Pistoia, frequenta a sede do Partido Comunista. Volta ao Brasil, ingressa no diário comunista A Classe Operária e em 1953 organiza no PCB os “Cursos Stalin” para formação de militantes comunistas. É dessa época seu convívio com uma geração que inclui Carlos Marighella, João Amazonas e Pedro Pomar. Em 1955, vai a Moscou para integrar a segunda turma brasileira a cursar a escola superior de formação de quadros do PCURS, onde aprende a língua russa, essencial para traduzir para o português clássicos do marxismo stalinista. Maestri aponta que nesse período ele conhece Idealina Fernandes, sua companheira de toda a vida.
Em meados de 1957, Gorender retorna ao Brasil e publica o Manifesto de Março, declaração que propõe a possibilidade da conquista pacífica do poder na busca da revolução brasileira. Por essa trajetória, em 1960, com 37 anos, Gorender já está na clandestinidade. “O PCB era a única organização de esquerda com reais raízes no movimento social” (Maestri, 2005). Gorender integrava a oposição de esquerda no interior do PCB, junto com Apolônio de Carvalho, mas perde a direção para o grupo prestista: é expulso do partido e funda o PCBR, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário em 1968, com representação no Rio de Janeiro, Nordeste, Paraná e Espírito Santo. Sua principal característica era que negava a luta direta e armada pelo socialismo, era contra a aliança com a burguesia e defendia a luta social e sindical. Depois de viver seis anos na clandestinidade, Gorender é preso e torturado, justo ele, que sempre divergira da orientação guerrilheira e que se manteve à margem das ações armadas. A prisão, no entanto, foi benéfica para Gorender: foi ali que começou a aprofundar seus estudos sobre o caráter da formação social brasileira e da revolução brasileira. Sobre a forma de curso, construiu na prisão a tese da inexistência de feudalismo no Brasil, caracterizando a passagem da escravidão ao capitalismo de forma direta, sem mediação, estudo que retomou logo após sua libertação em outubro de 1971.
É desses estudos que resulta a publicação O escravismo colonial (1978). obra lançada ainda em plena ditadura militar. Para aprofundar seus estudos, Gorender afastou-se da militância revolucionária e da política, inclusive do PT, partido ao qual veio a se filiar somente nos anos 1990. Com o apoio de amigos, durante os anos 1970 ele escreveu sua tese de mais de quinhentas páginas em que apresentava sua solução para o debate que dividia as Ciências Sociais desde os anos 1950 e 1960 sobre a evolução do capitalismo no país. Nesse período, a matriz ideológica fundamental da esquerda era baseada na crença de que a revolução socialista era inevitável. Para isso era fundamental uma visão do nascimento do capitalismo no Brasil, porém como fazer pesquisa quando muitos de sua geração saíam das universidades para a militância? Gorender fez o caminho contrário, mas seu papel não foi menor na luta contra a ditadura militar porque jamais abandonou a ideia da necessidade de uma revolução democrática na luta contra o capitalismo atual. “Entendo por esquerda o conceito referencial de movimentos e ideias endereçados ao projeto de transformação social em benefício das classes oprimidas e exploradas”. Superou a hegemonia stalinista sobre o marxismo e o movimento operário criticando o fato de que a esquerda pensava a revolução no Brasil sem uma reflexão adequada sobre o passado do país, discutindo-se apenas a experiência cubana, chinesa e soviética. Superou a abordagem proposta de Gilberto Freyre, de 1933, e da Escola Paulista de Sociologia, dos anos 1950 e 1960 ao descrever a oposição entre o trabalhador escravizado e o escravizador, deixando de ver o escravo como Fernando Henrique Cardoso, como “outro bem de capital”, para vê-lo como um “agente subjetivo do processo de trabalho”, perspectiva já apontada nas obras de Emília Viotti da Costa e Décio Freitas.
No período que vai da publicação de O escravismo colonial à Combate nas trevas (1987), como destacou Élio Gaspari recentemente, Gorender teve um papel fundamental na coordenação da coleção “Os economistas”, da Editora Abril, apresentando ao público brasileiro a obra de Karl Marx e publicando diversos estudos sobre o conceito de modo de produção, a teoria econômica, sem deixar de lado em seus estudos a importância que dava à ética intelectual. Em Combate nas trevas, Gorender fez um notável trabalho de memória e questionamento das atitudes da esquerda brasileira. Ali remontou não apenas as origens do PCB, como também suas lutas internas e enumerou as demais tendências no interior da esquerda; ali também descreveu dia a dia o golpe militar do ponto de vista da militância, bem como as ideias dominantes no seu interior e o papel da luta armada; descreveu os principais episódios ligados ao período de militarismo revolucionário, desde o sequestro do embaixador norte-americano à morte de Marighella, passando pela experiência de Mário Alves e suas próprias vivências no Dops e no presídio Tiradentes. Mas são dois capítulos à parte em sua obra que fazem sentido ainda hoje. Intitulados “A violência do opressor” e “A violência do oprimido”, neles Gorender oferece uma perspectiva original que inspira a interpretação de acontecimentos atuais. “Nas situações de pretensa normalidade democrática, as classes subordinadas e exploradas podem até não ter a percepção dessa violência, porque ela se dilui, se manifesta somente em episódios eventuais, se conserva latente como ameaça. Mas ainda assim ela existe, pois sem o exercício do poder coercitivo não existiria o Estado burguês.” Não é exatamente isso que vemos nos acontecimentos de Rio de janeiro, São Paulo e Porto Alegre? Não é a constatação de existência de um Estado militarizado que mostra sua face contra a população nas ruas? Por outro lado, Gorender fala da violência do oprimido na prática então de organização de atentados a bomba e de matança de policiais. “Se quiser compreendê-la na perspectiva de sua história, a esquerda deve assumir a violência que praticou. […] É perda de tempo discutir sobre a responsabilidade de quem atirou primeiro. A violência original é a do opressor, porque inexiste opressão sem violência cotidiana incessante.” Quer dizer, no passado autoritário e nos movimentos de revolta atual não se pode medir violências diferentes pelo mesmo critério simplesmente porque as culpas não se compensam. Toda a argumentação de Gorender em Combate nas trevas quer nos alertar que “o que se coloca é a questão da moralidade revolucionária (…) da prática de atos que vitimam culpados e inocentes de maneira indiscriminada”.
Hoje, após um período de ostracismo a que o marxismo esteve relegado pela discussão sobre pós-modernismo, ele retorna triunfante. Em 2009, em Londres, foi realizado um amplo debate sobre a importância do pensamento de esquerda, denominado “The Idea of the Comunism”, que em 2011 recebeu uma continuação em Nova York, projetando uma geração de autores como Slavoj Zizek, Alain Badiou, Étienne Balibar entre outros. Inspirados na obra A hipótese comunista (Boitempo) de Badiou, esses debates procuram recuperar naquilo que denominam de “ideia comunista” a verdadeira forma de tratar do tema da emancipação social, na defesa daquilo que a sociedade “tem em comum”. As perdas recentes de Robert Kurz, Eric Hobsbawn, André Gorz e agora Gorender retiram do panorama intelectual de esquerda autores que contribuíram de forma inestimável nesse debate. Especialmente Gorender, um dos primeiros que ousaram valorizar o papel do acaso na história contra a visão teleológica marxista dos modos de produção, além de ser um crítico ferrenho da atribuição de uma missão histórica exclusiva ao proletariado na transformação da sociedade. Sua pergunta fundamental, “qual é o agente social capaz de construir uma sociedade melhor?”, ainda aguarda uma resposta. Como Zizek, Gorender compartilhava a ideia de que, se há um núcleo fundamental válido ainda hoje no pensamento leninista é o de que, em primeiro lugar, é preciso voltar mais uma vez à análise de conjuntura com uma visão relativamente aberta do processo histórico para determinar as oportunidades de mudança.
Ainda vivemos sob a lei da acumulação capitalista. Se estivesse vivo, Gorender diria que se os movimentos de rua atual prepararam o instante de eclosão de uma “crise revolucionária”, só o futuro dirá. Depois de Combate nas trevas, Gorender parecia estar fascinado pelas possibilidades de consenso e reconstrução por meio da política. Suas reflexões recentes estavam se encaminhando para uma crítica dos processos de globalização recentes e os efeitos da tecnologia nas relações de trabalho. Mas a lição de Gorender, morto no dia 11 de junho, em Marxismo sem utopia (1999) é que, seja qual for a luta emancipatória em que estivermos envolvidos, nossa conscientização revolucionária não poderá deixar de ter um fundamento moral sob o risco de repetirmos os mesmos “horrores do capital”, a mesma “barbárie capitalista” que tentamos combater.
Jorge Barcellos é Historiador, Doutorando em Educação/UFRGS. Mantém o blog filosofiafrancesacontemporan.blogspot.com