Quem tem medo de um escritor nortista?
A resistência de nossa escrita está em escrever essa língua deslocada da predominante porque o centro deve ser sempre o da realidade que nos cerca, ou seja, não é justo que sejamos apagadas do meio literário, seja por falta de interesse do mercado editorial, seja pela invisibilidade que sofremos pelas demais regiões privilegiadas
Moro em Manaus. É desse lugar que parto para a página em branco e começo a escrever poesia, contos, crônicas, romances e ensaios. No entanto, embora meu lugar de fala me proporcione inspirações várias, deparo-me, diariamente, com a dificuldade de ver meus livros circulando para além das minhas fronteiras, uma vez que não me encontro no principal eixo literário do país. Pertenço, portanto, à escrita periférica, tida como regionalista, menor e, por isso, praticamente ignorada pelo mercado editorial. O Norte, embora de ancestralidade indubitavelmente indígena e, portanto, inserido na cultura da oralidade, há muito que escreve literatura. Nomes como Violeta Branca, Luiz Bacellar, Astrid Cabral, Thiago de Mello, Márcio Souza, Márcia Kambeba e, claro, Milton Hatoum, entre tantos outros, são exemplos de que a produção literária no Amazonas, por exemplo, é intensa, embora quase desconhecida em outras regiões.

Dessa maneira, a despeito da invisibilidade que nos impõem os grandes centros, os escritores nortistas sabem como ninguém trabalhar a linguagem por meio de suas paisagens internas e, sobretudo, externas, produzindo uma literatura outra, que difere da realizada nas outras regiões. Escrevemos, portanto, contra a língua universal, a fim de reconstruirmos o nosso próprio centro, ainda que por causa disso fiquemos à margem dos interesses do mercado editorial, pois são patentes as dificuldades que enfrentamos para escrever, publicar e ver nossos livros circulando. A pressão para obter altos rendimentos atrapalha a abertura para a criação de um novo público leitor, uma vez que toda mudança demanda tempo e tempo, sabemos, é dinheiro. A literatura passa, então, a ser confundida com cifras e as chances de haver editoras com poder de circulação interessadas em ir de encontro ao mercado e chancelar uma nova literatura se torna fenômeno raro. É preciso coragem para apostar na dúvida, e esta, infelizmente, não é lucrativa.
No entanto, ainda acredito que é na desistência de seguir o óbvio e o esperado que cada vez mais escritores nortistas têm desvendado novos caminhos antes vistos como impróprios ou impossíveis. Haja vista a vencedora do Prêmio Jabuti 2021, na categoria contos, a paraense Monique Malcher, de quem sou profunda admiradora. Acredito também que a resistência de nossa escrita está em escrever essa língua deslocada da predominante porque o centro deve ser sempre o da realidade que nos cerca, ou seja, não é justo que sejamos apagadas do meio literário, seja por falta de interesse do mercado editorial, seja pela invisibilidade que sofremos pelas demais regiões privilegiadas. Nossa literatura, não temo afirmar, é de qualidade, nossa poética é única, justamente por nosso “estrangeirismo”, por estarmos “desterritorializados”, de modo que nossa produção literária deve se tornar revolucionária, a partir do momento em que rejeita permanecer tributária de um autodenominado centro.
Myriam Scotti (@myriamscotti) nasceu em 1981, em Manaus (AM). É escritora, crítica literária e mestre em Literatura pela PUC-SP. Seu romance “Terra Úmida” (Editora Penalux, 156 pág.) foi vencedor do Prêmio Literário de Manaus 2020. Em 2021, seu romance juvenil “Quem chamarei de lar?” (editora Pantograf) foi aprovado no PNLD literário e escolhido pelo edital Biblioteca de São Paulo. Em 2023, lançou o livro de poemas “Receita para explodir bolos” (editora Patuá). Foi finalista do prêmio Pena de Ouro 2021 na categoria Conto. No ano passado, ficou em segundo lugar na categoria conto do prêmio Off Flip. Atualmente, Myriam está escrevendo dois projetos de romance, um deles contemporâneo e, o outro, com temática histórica.