Meninos e caranguejos: desencontros entre o asfalto e o mangue

Crônica

Meninos e caranguejos: desencontros entre o asfalto e o mangue

por Roberta Traspadini
6 de agosto de 2020
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Pedro B. respondeu chorando e pensando rápido: “Se você me bater, posso ir embora?”

Em uma noite de inverno de um tempo excepcional, com máscaras nas faces, o acelerado corre-corre da vida na cidade foi interrompido por um alvoroço que mexeu com as memórias do subsolo. E na ilha, aterro de um sistema manguezal, levantaram-se as vinhas da ira.

Estávamos, De Menor e eu, na praia para uma atividade esportiva paga exercida em um espaço público, junto com outras crianças alvas das redondezas, territórios de morada dos sujeitos com-direito. Ao lado, ocorrem aulas de tênis de praia com suas bolinhas coloridas que brilham à distância.

Quase no final da aula de De Menor, o professor mostra a presença de um menino sentado, vendo os garotos rosados jogarem. E conta: esse “moleque” tem roubado os instrumentos de trabalho da galera do tênis de praia. O professor tira foto e avisa ao seu par, morador da área nobre da ilha, da presença, nas palavras dele, do menino-meliante, na verdade, um menino-homem.

O professor da escolinha privada em espaço público tem, no seu histórico, o registro de ser um dos poucos homens negros no esporte de quadra da ilha. Sobrevive de ensinar o que sabe na praia em troca de um pagamento mensal.

Reparei nos traços do menino-homem. Seus pertences assinalam que ele não era daquela zona nobre da cidade e sim da quebrada. Roupas surradas, chinelo desgastado pelo uso e um olhar maroto, manhoso, fugaz.

Em pouco tempo o homem-lesado chega pois mora nos prédios altos da orla. O homem-lesado chegou sorrateiro para fazer a captura do menino-homem. Mas este logo percebeu que deu ruim, e zoom, pernas pra que te quero.

 

Episódio 1: as capturas

Começou o corre-corre pela cidade. O menino-homem, destemido, furava os carros e fugia dos homens que se multiplicavam na corrida pela captura. Uma perseguição cinematográfica em tempos de Netflix.

Entre gritos, correrias e surpresas, o asfalto acima da lama não permitia ouvir a barulheira que vinha de baixo, produto do alvoroço dos caranguejos que acordaram assustados com o bang-bang moderno.

O menino-homem corria como um papa-léguas. No zig-zag entre os carros e os homens da captura, o menino-homem fugiu por alguns minutos. Logo foi pego pelo cansaço, pelo tremor nas pernas, pelo cerco.

Imaginei que fosse ser atropelado. Mas o menino-homem tem a proteção de São Pedro, o guardião das tormentas dos pescadores.

Corro para a esquina da captura. E me coloco ao lado dele para dar uma força a São Pedro dada a tempestade que se aproxima. O menino-homem está cercado pelo professor, pelo capturador que chegava à praia para buscar sua filha no esporte pago, e o vendedor de água de coco.

Seu nome é Pedro B. Tem 10 anos e mora em um bairro da cidade vizinha. Pedro B. tem uma pele diferente das faces rosadas dos meninos da escolinha esportiva paga de uso da praia. Carrega traços negros-índios e traz nos cabelos uma descoloração típica dos homens de futebol.

A fixação do seu olhar, a grossura de suas mãos e a aspereza dos seus pés também o separam daqueles meninos dos bairros com-direitos.

Pedro B. chorou, relutou, e entre os gritos da virilidade dos braços masculinos que o cercavam, olhava para todos os lados. Eu me mantive firme no meu propósito de não deixar que o tocassem. Pedro B. parecia ceder aos gritos, aos dedos na cara. Mas bastou uma bobeada dos homens viris e, tan-tan, Pedro B. escapuliu do cerco.

Os caranguejos que tinham voltado a dormir foram de novo despertados pela barulheira.

Pedro B. era rápido, astuto, parecia conhecer os caminhos das raízes do mangue por baixo do asfalto, que o ajudavam a movimentar o corpo entre os carros.

A mesma cena, diferentes movimentos: correrias, taquicardias, gritos (“pega ladrão”), carros, motos, sinais fechados-abertos e o cerco.

Pedro B. foi pego pela segunda vez. Mas não sem antes driblar como fazia com a bola e a vida o moço das pernas arqueadas de nome Garrincha.

Um dos homens viris que tomou a frente na captura diz em alto e bom som:

– Senta e bota a cabeça entre as pernas; responde quando pergunto; moleques como você só aprendem apanhando. O homem-viril, do bem, fez uma pergunta que pediu que fosse respondida olhos nos olhos. Tomando em conta que os olhos sobressaiam e deles a raiva daquele menino-homem. Abaixo dos olhos trazia uma máscara negra que protegia o menino-homem das gotículas que poderiam conter vírus da epidemia de agora (Covid) ou da histórica (ira). E soltou a pergunta:

– O que ele achava que vai ser na vida roubando?

Pedro B., ora chorando, ora encarando, respondeu baixinho:

– Adulto?

E o homem-viril de faces rosadas retrucou firme:

– Não! Vai para o cemitério!

As frases e comparações pulavam dos corpos dos “homens viris”, que reforçavam: “bandido bom, bandido morto”.

Vi, no olhar fixo de Pedro B. sobre o asfalto – como quem dialogasse diretamente com os caranguejos que haviam sido capturados junto com ele pelos pescadores de recompensa social – a tristeza mesclada com a vergonha de ter sido pego. E veria, logo depois, o pavor do menino-homem à ideia, gritada sobre seu rosto, de ter que voltar para o abrigo onde ficou por mais de dez dias.

 

Episódio 2: as histórias de Pedro B. × as lições de moral e cívica

Sentei o tempo todo ao lado de Pedro B. Tirei os dedos dos homens viris de seu rosto; ouvi as batidas do seu coração diversas vezes com diferentes ritmos; estabeleci baixinho diálogos e coletas de informações; acolhi o choro; me surpreendi com a tenacidade sobre o que estava ocorrendo; tive pena; e, cuidei para que a violência não passasse da verbal.

Entre as informações que Pedro B. soltou, ao ser interpelado por mim e pelos homens viris, algumas chamavam a atenção: estava o dia inteiro na rua por conta da escola fechada; sua mãe trabalhava em casa, em um bairro periférico próprio dos sem-direito, como esteticista e artista do corpo e seu pai havia sido preso por matar um velho no bairro.

Outra informação importante: na sua perna direita havia na forma de V mais de 40 pontos recentemente costurados. Segundo Pedro B., o machucado deveu-se ao chute de uma placa por um de seus colegas de rua.

Marcas expostas dos danos de uma vida madura com apenas 10 anos.

No decorrer da tragédia, alguns moradores da zona com-mais-direito da ilha, desceram de seus prédios altos para ver a cena de perto e dar seus pitacos. Não satisfeitos de gritar lá de cima, vieram cá para baixo para ajudar na justiça com as próprias mãos. E deram seus vereditos: “isto é fruto do governo petista”; “vai roubar para outro lado”; “se seguir assim morrerá logo”, “é até melhor”; “dá logo uma coça nele e pronto”; “até que é bonitinho, podia ser outra coisa na vida.”

Enquanto, sufocava por dentro, eu mantinha a blindagem do corpo de Pedro B. por fora e, em um tom suave, muito diferente do meu habitual, disse apenas: “vocês podem chamar o conselho tutelar, a polícia ou deixá-lo ir”.

Antes de terminar a fala, chegaram os xingamentos, insultos daqueles homens-viris que rodeavam a cena: “quem defende um ‘marginal’, é farinha do mesmo saco”; “deve ser petista”. Frases de efeitos que colam no corpo do menino-homem como marca d’água reveladora da morte em vida.

O vendedor de água de coco, morador de uma zona periférica da mesma cidade de Pedro B., e mais um oriundo das terras dos ninguéns, viajava toda manhã para ganhar sua sobrevivência nas zonas dos com-direito. Mas também indignado com o menino-ladrão, disse, olhando nos meus olhos:

– É porque não foi com você. Deixa ele te roubar para você ver!

Fiquei tão nervosa que respondi ríspida sem muito pensar:

– Qual é, você vai me bater?

– Eu, não! Respondeu rapidamente, talvez imaginando, pela grossura da ruga entre meus olhos acima da máscara, que eu poderia ir para cima, tamanha a minha posição caranguejo, de luta.

Minhas palavras, saídas da marca profunda entre os olhos, saltaram sobre o vendedor de coco:

– Ah, bom!

Depois de uma extenuante lição de moral, o homem-viril, da captura, chamou a polícia. Em alguns minutos avistamos o pisca-pisca do carro da PM que passava novamente no asfalto sobre o dormitório dos caranguejos. Mas veio somente comunicar que outra estava a caminho para atender ao chamado. Antes de partirem deixaram um recado:

– Quando isso ocorrer, é melhor resolver com as próprias mãos.

Mais espera e, no tempo decorrido dela, outras lições. O homem-viril mandando Pedro B. colocar a cabeça entre as pernas disse em alto e bom som:

– Você tem três opções: levar uma surra aqui; chamar a polícia para te levar preso; ou devolver tudo que roubou agora me passando o telefone de sua mãe.

Pedro B. respondeu chorando e pensando rápido:

– Se você me bater, posso ir embora?

E o homem viril, implacável na sua dureza, reforçou em tom retumbante:

– NÃO! Apanha e vai com a polícia.

Tive que intervir:

– Então não tem opção, não é?

Entre outras perguntas próprias do nosso tempo entre mocinho-bandido, uma resposta de Pedro B. chamou a atenção, quando perguntado se ele achava que tinha alguém que o ajudaria, se os amigos de rua dele eram de fato amigos, pois o deixaram sozinho. Entre os dentes saiu a palavra curta:

– Deus!

O homem viril rapidamente devolveu:

– Você acha que Deus está contigo no que você está fazendo?

Um silêncio movimentou o ambiente. E foi quebrado pela reflexão filosófica cristã do homem viril, da área residencial dos com-direito, que reforçava para o menino da zona dos sem-direito que Deus sequer deveria ser mencionado.

Pedro B., enquanto esperava o transporte público policial que atenderia o chamado, foi contando aos poucos, entre inocência e esperteza, a história do furto.

São três amigos: ele, Pirulito e João Grande. Contou o que eles fazem com as bolinhas de tênis de praia coloridas: “jogamos no sinal para ganhar dinheiro”; “vendemos”; “levamos para casa para jogar na rua”; “guardamos”. Mil e uma utilidades. E a estas, agora, se somava a captura.

Pedro B. ofereceu ao homem-viril da captura os R$ 6 que trazia no bolso; o retorno de parte das bolinhas que estavam com ele, mas mais que isto não dava. Pois não podia garantir que Pirulito e João Grande fariam o mesmo. Nem sabia onde eles viviam e se os encontraria novamente, argumentou o astuto menino-homem entendendo a situação na qual se encontrava.

A segunda viatura chegou e a mesma cena se repetiu: nomes, ocorrências, informações gerais. A policial nos conta que, nos últimos meses, tem aumentado muito o número de crianças e adultos como moradores de rua.

 

Mais uma personagem chega à cena

No meio da coleta policial, atravessam a avenida De Menor e seu instrutor do esporte pago. De Menor, da mesma geração que Pedro B., achou-se confortável para entrar na lição de moral e despejar outros atos da norma, do direito, do pagamento pelo que se faz pelos seus erros. Ensinados, em grande parte, nas aulas de catequese em que acabara de formar-se. Como De Menor era parte minha, resolvi exigir, no mesmo tom ríspido com que me dirigi ao vendedor de coco, que fizesse silêncio.

Pedro B. olhou o professor e identificou-o como um dos seus pois seu perfil era idêntico ao da maioria das pessoas da zona sem-direito da que vinha. Fixou-se também em De Menor, de baixo até em cima. Por um pequeno instante parecia avaliar todas as diferenças existentes entre eles. Demarcava, na memória, o registro do que tinham de igual e de diferente, sendo crianças que se encontraram em um mesmo lugar, com atos distintos, vindos de zonas de direito, e de não direito, na mesma cidade.

Pedro B. foi chamado pelo cabo do atendimento policial. Entrou na viatura, deu mais informações sobre sua vida, agora, no tom bem mais baixinho. Enquanto isto, resolvemos partir. Toquei sua cabeça, seu coração e o senti já não tão acelerado como antes. Como se o destino já não tivesse mais tramas a desvendar. Peguei a mão de De Menor e partimos para nosso porto seguro no final da praia, onde mais arranha-céus se levantam.

 

Enlace final

Enquanto voltávamos para casa, meus pensamentos viajavam em silêncio sobre as histórias desencontradas entre essas duas crianças: Pedro B. e De Menor. Pedro B. aprendia nas ruas, na ausência da escola, as manhas da sobrevivência. Enquanto De Menor formava sua consciência, em grande parte, adquirida pelos meios de comunicação, pelos youtubers de seu tempo e pelos exitosos jogos de morte no PS4 (Rainbow six siege). De Menor, enquanto eu refletia, seguia com sua tese de que Pedro B. “tinha que pagar pelo que fez”.

Pedi licença aos caranguejos pelo barulho movimentado das rodas sobre seu manto enraizado. E jurei escutar o alvoroço vindo do subsolo sem saber o que de fato queriam dizer sobre tudo isso. Em uma brecha do asfalto avistei uma raiz do mangue.

Se o mangue fura o asfalto, quem sabe De Menor e Pedro B. não podem reverter a cena acima vivenciada. Quiçá Pedro B. e De Menor sejam expressões correntes de um mesmo contexto tristemente traçado há séculos no nosso continente. São frutos de um meio com múltiplas miserabilidades e algumas poucas brechas que podem render diferentes frutos, a depender de que posição tomamos na vida.

Como mãe gostaria que ambos tivessem a oportunidade de se refazerem. Para isso, muita lama precisa ser revirada ao tempo que reais ecossistemas sejam revigorados.

Algumas questões parecem pular da cabeça direto para as mãos, querendo uma reflexão coletiva sobre o ato vivido na forma de “…e se…?”

E se Pedro B. tivesse outras oportunidades concretas? E se o Estado e a sociedade dessem a essas crianças outros horizontes possíveis? Será que De Menor entenderá seus privilégios e compreenderá, de fato, a situação concreta e geral mais para frente em plena era tecnológica e solitária? O que é necessário fazermos para que isto ocorra? E se trocássemos, por alguns dias, o viver cotidiano entre Pedro B. e De Menor? Quais experiências surgiriam? E se Pedro B. e De Menor se tornassem grandes amigos no esporte, na escola, na vida? Que horizonte possível isto geraria? Mas esses horizontes são possíveis? E se Pedro B, Pirulito e João Grande tivessem trocas contínuas no ambiente escolar com De Menor e sua turma, que na pandemia expressa a ausência de relação entre eles? E se nós mães, de diferentes espaços, tivéssemos momentos juntas para a socialização e educação de nossos filhos? E se…?

São angústias de uma mãe que acaba de viver uma situação com seu filho e o filho de outra mulher. E constata como é difícil fazer-se mãe. A noite ainda não começou para a mãe de Pedro B. Avizinham-se mais confusões no território de lá a partir do que ocorreu do lado de cá.

Das raízes do mangue brotam muitas histórias. Várias vinculadas à rotina popular de Pedro B, Pirulito e João Grande. A eles se juntam uma diversidade de crianças, jovens, homens e mulheres oriundos do popular que movimentam a ilha, sendo das cidades do entorno. Há muitos movimentos oriundos dos trabalhadores formais e informais e suas sobrevivências quando a cidade parece dormir. Os caranguejos são testemunhas do que acontece acima quando nossos corpos tentam descansar.

Oxalá Carolina Maria de Jesus, Jorge Amado, Ariano Suassuna, Conceição Evaristo, Josué de Castro e Abdias do Nascimento deixem de narrar a história concreta vivida, no passado e no presente, por nossos povos. E virem, histórias a serem reconstruídas na literatura sobre nossas vidas futuras, apenas uma obra de ficção nada real. Até o momento, suas personagens estão vivas como expressão, em palavras, de uma história sentida/vivida por muitos/as como exclusão social.

Entre o asfalto e o mangue existem muitas histórias soterradas ou soerguidas sob as bases do aterramento da vida concreta. Pedro B. consegue ver as brechas ao gingar para sobreviver das ruas. De Menor tem dificuldades de entender os sons que saem de baixo tão metido que está no som que vem da tecnologia de dentro do seu lar. Torço para que esse silêncio barulhento mude em algum momento. E que as tragédias anunciadas entre o asfalto e o mangue tenham um mar menos violento de sentidos para frente, como diria Brecht!

 

Roberta Traspadini é professora da graduação e pós-graduação em Relações Internacionais da Unila, coordenadora do grupo de pesquisa Saberes em Movimento na Luta por Terra e Trabalho na América Latina; e co-coordenadora do Observatório de Educação e Movimentos Sociais na América Latina (OBEPAL-UFES).



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