Mercado de Carbono não é ‘salvação’ da Amazônia
O crédito de carbono trata os sintomas, mas não as causas subjacentes do desmatamento na Amazônia, como a expansão agrícola, a mineração ilegal e a pecuária extensiva
O mercado de carbono é um tema complexo que suscita debates intensos sobre sua eficácia e equidade. Enquanto alguns argumentam que pode ser uma ferramenta útil na luta contra as mudanças climáticas, chamamos atenção para as preocupações sobre sua implementação e impactos, especialmente para aqueles que dependem da terra para subsistência.
Estes projetos geram créditos de carbono, representando a quantidade de CO2 que é removida da atmosfera ou evitada de ser emitida devido à preservação das florestas. Os créditos de carbono podem então ser comprados e vendidos no mercado, permitindo que as partes interessadas compensem suas emissões de carbono e alcancem metas de neutralidade de carbono.
Em teoria, o mercado de carbono funciona atribuindo um valor econômico ao carbono emitido na atmosfera, incentivando empresas e países a reduzirem suas emissões. Isso é frequentemente feito por meio de um sistema de “cap and trade” (limitação e comércio), em que um limite máximo de emissões é estabelecido e as empresas podem comprar e vender permissões de emissão dentro desse limite.
Para a socióloga Márcia Maria de Oliveira, professora da Universidade Federal de Roraima e assessora da REPAM-Brasil, “o comércio de emissões para o dióxido de carbono tem funcionado como uma espécie de mitigação pelos danos ambientais. É como uma autorização prévia para a destruição ambiental. Contraditoriamente, nos últimos anos, grandes empresas ligadas ao agronegócio têm se despontado no mercado de carbono. Ironicamente, o modelo de produção do agronegócio é um dos modelos que mais produz emissão de carbono, com destaque para a criação de gado em confinamento. Nesse sentido, há muita hipocrisia na regulação do mercado de carbono. As grandes fazendas são pagas para poluir sob a roupagem da proteção de pequenas áreas ‘protegidas’ em grandes faixas de território desmatado para grandes plantios de monocultura, altamente prejudicial para o bioma”.
Para Lindomar Padilha, indigenista e pesquisador, os mercados de carbono na região da Amazônia são mercados ligados aos mecanismos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+), que atuam no sentido de apropriação dos territórios de comunidades tradicionais. Ou seja, o Estado negocia diretamente com as empresas de conglomerados empresariais. Quando o Estado faz isso, por exemplo, no caso dos territórios indígenas, a mensagem transmitida é que eles não pertencem à própria comunidade indígena, mas ao governo brasileiro. Portanto, essas terras na verdade são usadas como garantia aos bancos internacionais que vão fazer esses investimentos.
“Essas terras são dadas como garantia. Nós estamos falando de uma hipoteca, o governo brasileiro está hipotecado a partir das comunidades, estamos falando de um mercado que tem o princípio da preservação e a conservação ambiental, mas não se trata disso. Nós não podemos aceitar essa grande mentira”, ressalta Lindomar.
O mecanismo de REDD+ jurisdicional é uma abordagem que se diz inovadora para enfrentar a perda de florestas tropicais, como a Amazônia, ao mesmo tempo em que busca reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Este sistema opera dentro do contexto do Acordo de Paris e é uma das ferramentas mais proeminentes para a conservação de florestas e mitigação das mudanças climáticas.

Foto: rawpixel
O Mercado de Carbono, em vez de promover diretamente a conservação e a redução do desmatamento, muitas vezes direciona recursos financeiros para projetos de compensação de emissões em outras partes do mundo. Isso pode desviar a atenção e os investimentos necessários para proteger a Amazônia, deixando-a vulnerável ao desmatamento e à degradação, “em um permanente contexto de continuidade da colonialidade com novos métodos de exploração neoextrativistas, fantasiados de benefícios para os territórios. Nessa perspectiva, o mercado de carbono representa uma afronta aos ambientalistas, aos indigenistas e a todos os defensores/as dos direitos humanos na Amazônia. O mercado de carbono por si, não tem conseguido acabar com o desmatamento e nem promover a reposição florestal. Ao contrário, tem deixado em posição de conforto as empresas que mais poluem o planeta”, pontua Márcia Oliveira.
Em alguns casos, o crédito de carbono pode permitir que empresas continuem desmatando a Amazônia, desde que compensem suas emissões através da compra de créditos de carbono. Isso cria uma perigosa dinâmica em que o lucro financeiro se sobrepõe à conservação ambiental, resultando na destruição contínua de ecossistemas preciosos.
“O mercado de carbono tem atualizado os mecanismos de colonização da Amazônia. Baseado no sistema da exploração dos recursos naturais, o mercado de carbono funciona como um método de extrativismo predatório no qual todos os recursos são submetidos à exploração de pessoas ou empresas que lucram com os bens da natureza sem se importar com os prejuízos do modelo de exploração”, explica Márcia Oliveira.
Muitos projetos de crédito de carbono na Amazônia envolvem a aquisição de terras de comunidades indígenas para implementar projetos de reflorestamento ou conservação. Isso pode levar ao deslocamento forçado dessas comunidades, violando seus direitos territoriais e culturais, além de aumentar sua vulnerabilidade social e econômica.
O crédito de carbono trata os sintomas, mas não as causas subjacentes do desmatamento na Amazônia, como a expansão agrícola, a mineração ilegal e a pecuária extensiva. Enquanto as raízes desses problemas persistirem, o crédito de carbono pode fornecer apenas soluções superficiais e temporárias, incapazes de resolver os desafios estruturais enfrentados pela região.
Algumas empresas podem utilizar projetos de crédito de carbono na Amazônia como uma forma de “lavagem verde” (greenwashing), apresentando-se como ambientalmente responsáveis enquanto continuam suas práticas prejudiciais ao meio ambiente. Isso mina a integridade do sistema de crédito de carbono e compromete seus objetivos originais de redução efetiva das emissões de gases de efeito estufa.
“E o mais grave disso tudo é que são empresas que têm enriquecido novamente com um projeto que não resultou em nenhum benefício para as populações que realmente protegem as florestas – os povos indígenas e as comunidades tradicionais, que convivem com a floresta numa relação de cuidado e reciprocidade, segundo a perspectiva da Encíclica Laudato Sí do Papa Francisco ‘tudo interligado, como se fôssemos um’. Entretanto, os povos e comunidades que realmente protegem as florestas vivem à margem das grandes economias. Ao contrário daqueles que lucram com a ‘economia verde’, os povos e comunidades tradicionais são as principais vítimas dos mecanismos de exploração, desmatamento, envenenamento e contaminação das águas, da terra e do ar”, conclui a assessora da REPAM-Brasil.
A falsa sensação de segurança de que a compensação pode oferecer uma abordagem eficaz para reduzir as emissões de carbono, além de impedir que verdadeiras soluções sejam implementadas, coloca em risco a Amazônia e o equilíbrio climático mundial.
Sobre a Rede Eclesial Pan-Amazônica: A REPAM-Brasil é uma rede eclesial da Igreja Católica na Amazônia Legal, que tem por objetivo promover a vida, por meio do cuidado dos povos, territórios e ecossistemas amazônicos e do incremento da consciência da importância da Amazônia para toda a humanidade, por meio de uma atuação socioeclesial articulada em rede. A REPAM-Brasil, desde 2020, tem se dedicado às pautas de igualdade racial e de gênero, com a Secretaria Executiva composta por mulheres pretas, pardas e brancas. As prioridades nos territórios são voltadas para as mulheres trabalhadoras do campo e dos grupos tradicionais da Amazônia.