O mercado financeiro aterrissa na Amazônia em nome do Clima
Na última semana, vimos um vai e vem de cartas, consultas e pronunciamentos a propósito da Cúpula de Líderes convocada pelo presidente dos EUA, Joe Biden.
Tudo começou com a carta, muito mal recebida, de Jair Bolsonaro ao seu par estadunidense. No documento, o brasileiro faz promessas irrealizáveis nos termos em que foram formuladas. Além disso, são apresentados números fantasiosos sobre os índices de queimadas e desmatamento na Amazônia, bem como sobre os esforços do seu governo para combatê-los. A verdade é que a participação brasileira na Cúpula acontece à sombra de uma dura realidade: um novo aumento de 216% do desmatamento na Amazônia Legal, em março deste ano, sendo 66% deste em área privada.
Em seguida, Ricardo Salles, ministro do meio ambiente, aparece na cena. Ao comentar a negociação em curso, Salles adotou uma estratégia vexatória, porém já conhecida: chantagear a comunidade internacional para captar recursos em cima de um falso discurso sobre a preservação da Amazônia. O vice-presidente, Hamilton Mourão, qualificou a postura do seu colega de “mendicância”, mas reafirmou o interesse em garantir recursos extraorçamentários para o seu projeto de bioeconomia na região. E, assim, juntou o seu pires ao de Salles.
Depois, foi a vez do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, entrar na roda. Ele teria sido procurado por embaixadores dos EUA e da Europa a fim de que assumisse a liderança no alinhamento de compromissos concretos para a preservação da Amazônia. Afinal, a cooperação e o investimento externo dependem de ajustes regulatórios que devem passar pelo Legislativo.
Por sua vez, fora da visão de grupos estrangeiros, mas na tentativa de chamar a sua atenção, a Coalizão de Governadores pelo Clima, que abrange 24 estados brasileiros, fez uma ação de diplomacia subnacional e entregou uma carta ao embaixador dos EUA no Brasil, Todd Chapman. O objetivo deste documento está claro: reafirmar o seu compromisso com a crise climática global, posicionando os seus estados como o destino mais confiável para o dinheiro do Biden. Já o Consórcio de Governadores da Amazônia Legal, grupo que engloba os nove estados que compõem a região, divulgou o “Plano de Recuperação Verde da Amazônia Legal”.
O que está acontecendo?
A natureza se consolida como ativo financeiro
O “Dia da Terra” de 2021 entrará para a história. A convocação de uma Cúpula de Líderes para debater a política ambiental global, nesta data, não sinaliza apenas a renovação da credencial estadunidense nessa agenda, mas, principalmente, a consolidação de uma visão que deposita no mercado – em particular, no mercado financeiro – a solução para todas as grandes crises que se acumulam atualmente: econômico-financeira, social, sanitária, do aumento da fome e climática.
Apesar da principal fonte mundial de emissão de gases de efeito estufa serem os combustíveis fósseis, o foco está na floresta. Assim, esta negociação pesa sobre os territórios do sul global e corrompe o princípio das responsabilidades comuns porém diferenciadas. Isto porque a financeirização é também a resposta que embasa as propostas de recuperação verde da economia, incluindo propostas bem aceitas por um amplo espectro da sociedade civil global, como o Green New Deal. Não é novidade que as abordagens hegemônicas sobre a questão ambiental e climática vêm pavimentando o caminho para transformar a natureza em um ativo financeiro. Há pelo menos dez anos nós, do Grupo Carta de Belém, nos dedicamos a criticar este processo. Agora, no entanto, sentimos que estamos diante de um momento crucial.
No capitalismo neoliberal, organizado sob o domínio financeiro, praticamente tudo ao nosso redor pode receber o tratamento de um “ativo”, tudo vira capital ou pode ser capitalizado. Não é diferente com a natureza, que, depois de ter direitos próprios reconhecidos em algumas partes do mundo, volta ao status miserável de mero “recurso natural”. Trata-se, na verdade, de um “recurso” cuja exploração não é motivada necessariamente pelo seu emprego na produção de mercadorias, como no passado, mas na sua instrumentalização como ativo no jogo financeiro ou colateral, isto é, garantia, para a alavancagem de créditos. Como propriedade, a natureza serve à mitigação dos riscos de um empreendimento, na esteira das “soluções baseadas na natureza”. Como título, pode respaldar o endividamento público e privado. Assim, o que testemunhamos é o uso irresponsável da Amazônia pelo governo brasileiro como um ativo, isto é, um recurso capaz de mobilizar interesses e muito dinheiro via privatização de grandes fatias do seu território.
Assim, a carta de Bolsonaro a Biden, documento que antecipou o diálogo esperado para o final desta semana, chama a atenção não apenas pela desinformação que propaga, mas pela agenda de negociação que abre com os EUA:
Mercados voluntários de carbono e offset florestal (compensação): Através dos programas “Adote um Parque” e o Floresta +, o governo adentra o caminho sem volta do ambientalismo de mercado. Disponibilizar as florestas e outras bases naturais aos mercados internacionais de carbono para mecanismo de offset (compensação) é um atentado à soberania nacional e à soberania e integridade dos territórios, povos e comunidades. Juntos, estes programas mostram toda a energia dispendida pelo governo tanto para privatizar as reservas extrativistas, quanto para sequestrar recursos de um fundo internacional, desviando-os dos seus beneficiários originários, os povos e comunidades tradicionais, para os latifúndios do agronegócio. Do ponto de vista diplomático, esta iniciativa altera a posição histórica do país nas negociações sobre o clima e faz um movimento cujos impactos vão muito além do contexto nacional, porque reflete o destino que o encerramento do Livro de Regras do Acordo de Paris reservará para as florestas em todo o mundo.
Estrangeirização de terras na Amazônia e o negócio da restauração. Além das áreas de florestas, o governo brasileiro identifica um potencial para destinação de 98 milhões de hectares de terra no Brasil a investimentos relacionados com atividades de “agricultura regenerativa”. O negócio da restauração é o novíssimo pacote biotecnológico que promete a modernização produtiva do agronegócio, associado à transformação digital deste setor da economia. Aqui, inclui-se, por exemplo, biologia sintética e edição genética, bactérias fixadoras de nitrogênio no solo e sequestro de carbono no solo. Esse pacote tecnológico reflete a crescente importância da pegada de carbono para efeito de barreiras comerciais como também a expectativa para se criar um mercado de carbono do solo. É muito provável que a negociação com os EUA envolva a compra de tecnologia para a implantação, no Brasil, deste tipo de projeto. O alto grau de investimento necessário para realizar esta transição deverá aprofundar ainda mais a acelerada financeirização do agronegócio brasileiro, repercutindo na estrangeirização do território e na perda das condições estruturais para se fazer políticas públicas agro-ambientais associadas ao interesse comum.
Desfinanciamento da política pública e agenda de privatizações: O que chamamos anteriormente de ambientalismo de mercado caracteriza a agenda ambiental bolsonarista, isto é, desmontar para entregar: entregar a Amazônia para a iniciativa privada. O pacote de ofertas que o governo Bolsonaro pretende oferecer aos EUA obedece ao modelo de desfinanciamento da política pública para a remontagem de uma agenda de privatizações e concessões ao mercado. Por um lado, é isto o que está em jogo quando se fala da queda brusca de orçamento federal destinado aos órgãos ambientais e fundiários, como a Funai, Ibama, ICMBio e Incra. Por outro lado, a promulgação, em janeiro de 2021, da Lei nº 14.119, que institui a Política Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais, foi outro grande passo na direção do giro mercantil da política socioambiental.
Amazônia à venda
Se o mundo passa a olhar a natureza como um ativo, o maior bem financeiro no mundo voltado para a comercialização de ecossistemas e biodiversidade está no Brasil: é a Amazônia. Então, quando o governo faz referência à insuficiência, em si e por si, das ações de comando e controle, apontando para a reestruturação das políticas na direção (i) da regularização fundiária; (ii) do zoneamento ecológico-econômico da Amazônia; (iii) da bioeconomia; (iv) do pagamento por serviços ambientais no âmbito do Art. 6 do Acordo de Paris sobre o Clima; (v) da ratificação do Protocolo de Nagoya e da adoção de um arcabouço legal sobre acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios decorrentes do uso destes mesmos recursos, o que ele está fazendo é uma coisa simples: indicar para o mercado e para os parceiros comerciais do Brasil que a Amazônia está a venda. É intenção desta gestão garantir a agenda de investimentos e promover um ambiente de negócios favorável ao investidor, mesmo que, para isso, seja necessário transferir para o conjunto da sociedade os riscos da instalação de empreendimentos privados em território nacional.
O acordão da financeirização
A venda de um território vivo e pulsante como a Amazônia não acontece sem que um grande acordo esteja sendo costurado entre múltiplos atores. A movimentação dos últimos dias aponta nessa direção. Cada setor da política institucional, cada político, negocia a sua fatia desse grande bolo da riqueza nacional. Testemunhamos um momento de inflexão histórica. Olhado em seu conjunto, estes processos têm como objetivo salvar os mercados capitalistas em crise. Para isto, está sendo criado todo um ecossistema institucional e legal ajustado a uma concepção de ação ambiental e climática como atividade econômica rentável, eminentemente privada, mercantilizada e financeirizada. O desfinanciamento do Estado não significa o fim do estado, mas a sua reorientação no sentido de trabalhar para atender, não à sociedade, mas às demandas externas e especulativas dos agentes financeiros e corporativos nos países do norte global. A agenda que pauta as negociações entre Brasil e EUA é a descentralização das políticas públicas, bem como a criação de condições para que os entes subnacionais, consórcios e ‘jurisdições’ possam contratar Parcerias-Público-Privadas/PPPs e Parcerias-Público-Privadas/PPP-Comunidades e, assim, efetivar a terceirização das políticas sociais.