Meritocracia estética e a Semana de Arte Moderna de 1922
A perspectiva decolonial toca menos na obra em si mesma porque o seu foco consiste em sublinhar os vetores de poder que sustentam a disseminação e recepção de determinadas obras.
A forte resistência às críticas à Semana de Arte Moderna é um sintoma de algo mais estrutural e que corre para além do regionalismo. O que está em jogo nisso que podemos chamar de mecanismo de defesa é a ideia de que existe uma meritocracia estética e que as pessoas que figuram o cânone da arte estão lá porque as suas obras têm qualidades incontestáveis. Trata-se de outro uso do termo universal, mas que aponta para o mesmo pressuposto, do uso corrente do termo, de que existem obras que por si só estão no centro do que podemos chamar de excelência e jamais poderiam ser apagadas.
No entanto, o que uma perspectiva decolonial coloca como questão para a crítica de arte contemporânea não se refere tanto à qualidade das obras de arte que figuram no cânone, mas ao jogo de interesses que fazem as obras serem lidas, cristalizada como canônicas e tomadas como presenças incontornáveis nos cursos de estética ou de crítica de arte. Ou seja, a perspectiva decolonial toca menos na obra em si mesma porque o seu foco consiste em sublinhar os vetores de poder que sustentam a disseminação e recepção de determinadas obras.
Esse ponto é fundamental para acentuar que não é preciso “desmerecer” as obras eleitas pelo cânone para questionar a noção de mérito que as fez estarem presentes no cânone. A questão é que a recepção da obra sempre acontece num contexto histórico, por mais que se sustente uma espécie de obra imortal ou eterna, e isso lhe projeta no tempo de tal forma que ela figura sujeita às vicissitudes da história como tudo aquilo que é humano. Na radicalidade, isso significa que a obra por si só não estará isenta do tempo, como se no fundo houvesse uma espécie de mérito intrínseco à determinada obra, mas que ela é reinventada de acordo com o contexto em que é recebida, e em determinados contextos alguns valores (ideológicos, políticos etc.) podem diminuir a abrangência de sua leitura e renegá-la ao ostracismo.
Esses valores não podem ser concebidos como se fossem facultativos ou fossem uma questão pessoal de opção: o tempo é costurado na sua diversidade histórica por uma variação de valores por meios dos quais as obras são lidas. Portanto, as obras podem ter uma recepção muito minguada em novos horizontes históricos, mais exigentes com relação a certos temas como a misoginia e o racismo, e podem mesmo ser esquecidas. Aliás, foram valores racistas, inscritos numa dimensão estrutural, que silenciaram tantas vozes ao longo da história da recepção da literatura negra e de várias expressões de arte da negritude.
Nesse sentido, uma posição decolonial denuncia a meritocracia não tanto para anular a priori certas obras ou para também a priori eleger outras, mas para certificar que as obras não falam por si mesmas. Elas só são escutadas, lidas e apreciadas porque existe um espaço de recepção cuja hegemonia dos mesmos autores já não se faz sem uma forte carga crítica. E é graças a essa crítica que se desloca o centro do poder. Com isso, novas expressões artísticas circulam nos espaços de aparecimento. Foi exatamente o que ocorreu num debate a propósito da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal com a presença de Allan da Rosa e José Miguel Wisnik. Enquanto em 1922 a semana era composta basicamente por homens brancos, o debate sobre a recepção da semana já não pode ser feito, cem anos depois, sem a presença de pessoas negras porque é majoritariamente por elas que sabemos que longe de expressarem um universal, as obras, produzidas por aqueles homens que fizeram a semana, representavam um recorte do Brasil, da modernidade.
Novamente, não se trata de julgar a obra dos artistas da Semana de Arte Moderna, mas de denunciar a rede de privilégios que os fizerem, a despeito da seletividade de suas leituras, expressões do moderno no Brasil. O objetivo do discurso decolonial é mostrar que toda recepção da obra é parcial porque sempre apresenta uma visão que é uma parcela do real e nunca esgota a realidade. Por isso, o desafio é erradicar a ideia de que existe um mérito que projeta uma obra de arte para uma dimensão atemporal não apenas para reafirmar as vozes que foram silenciadas, mas sobretudo para mostrar que ninguém fala do lugar de uma condição estética privilegiada para ditar o que pode ou não ser o cânone universal. Se podemos acompanhar Allan da Rosa quando ele diz que: “toda vez que a palavra universal foi usada foi para massacrar o meu povo [negro]”, é porque a palavra mérito é outro lado dessa opressão. Assim, não se trata de reconfigurar o universal ou de anular as eventuais qualidades que uma obra de arte pode portar para determinado grupo, especialmente quando ela é uma janela para ampliar possibilidades de percebermos as nossas humanidades, mas de alertar que o mérito é uma ficção não propriamente literária e sim inscrita numa vontade de domínio na forma da reafirmação do mesmo.
Érico Andrade é filósofo, psicanalista, professor da Universidade Federal de Pernambuco.