No México, a imprensa a serviço de uma tirania invisível
Historicamente limitados à propaganda governamental, os grandes grupos midiáticos mexicanos pouco a pouco passaram a construir e desconstruir poderosos. Levado ao poder pelas emissoras privadas, o presidente Enrique Peña Nieto prometeu limitar o monopólio das gigantes da comunicação – o que até agora não saiu do papel
“Caro amigo, tão especial quanto refinado, […] mergulhamos em nossas publicações […] e podemos garantir que não há nada que possa ser interpretado como negativo em relação ao governo, ao contrário, nossa linha tem sido francamente favorável e apoia o regime.” Foi nesse tom inquieto que Gabriel Alarcón, diretor e proprietário do El Heraldo de México, dirigiu-se ao então presidente mexicano, Gustavo Días Ordaz, em uma carta datada de 24 de setembro de 1968.1 O México estava tomado por manifestações estudantis sem precedentes, e a cobertura jornalística que zelava pela imagem da polícia repressiva diante de uma juventude descrita como subversiva acabou constrangendo o Poder Executivo na abertura dos Jogos Olímpicos na capital. A carta dizia, em sua continuação: “Senhor Presidente, sentimos como se estivéssemos em um quarto escuro, e somente Vossa Excelência pode nos fornecer a luz de que precisamos”.
No dia 2 de outubro, policiais à paisana e soldados dispararam contra a multidão de manifestantes no bairro de Tlatelolco, provocando mais de trezentas mortes e centenas de desaparecimentos. No dia seguinte, o El Heraldo publicou a seguinte manchete: “Franco-atiradores abrem fogo contra o Exército”. Outros jornais de grande circulação mencionaram “um combate entre terroristas e o Exército” (El Universal), ou ainda que “mãos estrangeiras estavam sujando o México por serem contrárias aos Jogos” (El Sol de México).
No país, os meios de comunicação chamados de “imprensa marrom”, sensacionalistas e complacentes, originaram-se durante a ditadura do general Porfírio Díaz, que ficou no poder durante 34 anos (1876-1911) e gratificava com generosos subsídios os jornais leais ao regime – enquanto enviava à prisão os jornalistas resistentes. Após a revolução (1910-1920), o Partido Nacional Revolucionário (PNR), que se tornaria o Partido Revolucionário Institucional (PRI) em 1938, recusou-se a romper essa aliança com os meios de comunicação mais fiéis.
Durante os mais de 75 anos do partido no governo (de 1929 a 2000, e desde 2012), “uma relação de conveniência se construiu entre os meios de comunicação e poder”, explica Jacinto Rodríguez Munguía, historiador e diretor de jornalismo da Universidade Autônoma Metropolitana (UAM).
O grupo Televisa encarna essa aliança indefectível. O canal de televisão foi fundado nos anos 1950 por Emilio Azcárraga Vidaurreta com ajuda do presidente Miguel Alemán Valdés. Seu filho, Miguel Alemán Velasco, que garantiu o direcionamento da informação no interior do canal ocupando as funções de senador e membro da direção do partido, lançou em 1986 o seguinte aviso em uma reunião da redação: “Essa empresa é priista. Se alguém aqui não se alinha ao PRI, que diga agora e vá embora, pois jamais trabalhará na Televisa”. Com a morte do fundador, seu filho, Emilio Azcárraga Milmo, criou a Univisión, que se tornou o mais poderoso grupo de televisão do mundo hispanófono, inundando a América Latina de telenovelas melodramáticas burguesas e proselitismo político. El Tigre, como era conhecido, naquela época o empresário mais rico da América Latina, definia-se com naturalidade como um “soldado do PRI”. A partir de 1997, foi seu filho, Emilio Azcárraga Jean, que assumiu a presidência do canal. A Televisa detém, sozinha, 65% da audiência do México (95% dos mexicanos assistem às suas transmissões regularmente, e seus jornais noturnos concentram um quinto dos espectadores).2
O que acontece quando os jornalistas são vozes dissonantes ao coro do poder? “Eles desaparecem”, lança Ana Cristia Ruelas, representante no México da Artigo19, organização que luta pelo direito à liberdade de expressão. Desde o início de 2017, onze jornalistas foram assassinados. “[O presidente] Peña Nieto afirma que é o crime organizado que assassinou os jornalistas. Não é verdade. Todos os jornalistas mortos investigavam a corrupção política”, denuncia Ruelas. “E 100% dos assassinatos permanecem impunes.” Contudo, ela afirma, “a primeira violência à qual são submetidos os jornalistas é a violência econômica. É a mais útil e a menos visível”. Segundo dados coletados pela organização, 70% dos meios de comunicação nacionais dependem de espaços publicitários comprados por instituições públicas. Para jornais locais, essa dependência pode chegar a 90%.
Em 1982, o jornal semanal Proceso, conhecido por sua intransigência perante a corrupção, viu todos os seus contratos publicitários assinados com órgãos governamentais anulados. O presidente à época, López Portillo (1976-1982), em sua reunião anual com diretores de meio de comunicação, lançou: “Pago vocês para depois me golpearem? Jamais!”. Desde então, o Proceso é o único jornal mexicano que sobrevive de seus leitores. Ainda dependente de publicidade oficial, o jornal histórico de esquerda La Jornada precisou fechar várias de suas edições locais e flexibilizar sua linha editorial crítica.
Quando chegou ao poder em 2012, Enrique Peña Nieto tinha prometido regulamentar o dinheiro público destinado à publicidade. Contudo, seu governo é o que mais desembolsou em comunicação oficial. Mais de 34 bilhões de pesos (R$ 6 bilhão) foram gastos nos primeiros quatro anos de seu mandato. “As informações que temos são apenas a ponta do iceberg”, lamenta Ruelas.
“Muitos subsídios são disfarçados em contratos de prestação de serviços diversos, organização de eventos… contratos ocultos. O único dinheiro público que não é controlado no México é o destinado à publicidade oficial. É a caixa-preta dos governos.” Uma transferência maciça para dez famílias proprietárias de meios de comunicação, em particular às gigantes da radiotelevisão. Em 2016, a Televisa e a Televisão Azteca absorveram juntas 40% do orçamento de comunicação do governo.
“Blocos de informação”
Três anos antes das eleições de 2012, os dois grupos fabricaram para o candidato do PRI um programa televisivo sob medida que tomou emprestado os códigos da telenovela mexicana: a ascensão irresistível de um homem jovem, rico e fotogênico, de cabelo impecável, símbolo do sucesso econômico e promessa de modernização, definido por um slogan explícito: “Você ganhará mais!”. Para as necessidades do folhetim eleitoral, a Televisa chegou a divulgar integralmente as bodas do candidato com a atriz de telenovela Angélica Rivera. Uma cobertura televisiva martelada durante três anos construiu um modelo de desenvolvimento e boa gestão do estado do México, do qual Peña Nieto era então governador – em 2017, passaria esse bastião inatacável do PRI, herdado de seu pai, Gilberto Enrique Peña del Mazo, ao seu primo. Essa região industrial de 16 milhões de habitantes que contorna a capital é, contudo, uma das mais assoladas pela corrupção e pela violência, notadamente contra ecologistas, jornalistas e mulheres.3
Uma pesquisa publicada no The Guardian colocava em suspeita Peña Nieto, que teria investido somas consideráveis na Televisa para promover seus projetos de trabalhos públicos e difundir entrevistas com ele: mais de 340 milhões de pesos (mais de R$ 5 milhões na época) no primeiro ano de seu mandato, por exemplo.4 O jornal menciona telegramas diplomáticos que vazaram da embaixada dos Estados Unidos pelo WikiLeaks e descrevem o estado do México como uma “cidade Potemkin” cuja prosperidade é pura fachada. Os telegramas chamam atenção para “duas empresas de televisão dominantes no país, Televisa e TV Azteca, que formam um duopólio no setor, continuam a exercer uma influência sobre o Poder Judiciário, o Poder Legislativo e os organismos de regulamentação para impedir a concorrência”.5 A nota confidencial constata que “ninguém parece querer irritar a Televisa ou a Azteca, por medo de perder espaço de publicidade a bom preço em picos de audiência”.
Em 2012, durante a campanha presidencial, o candidato de esquerda Andrés Manuel López Obrador (AMLO) acusou os dois impérios midiáticos de patrocinar Peña Nieto, e o dono da TV Azteca, Ricardo Salinas Pliego, de dirigir uma “máfia” controlando um “bloco de informação”. O grupo Salinas, proprietário da TV Azteca, mas também de um banco e de uma cadeia de supermercados, estende sua influência sem se preocupar muito com a legalidade. Em 2002, após uma tentativa interrompida de fusão com o canal regional CNI Canal 40, Salinas Pliego não hesitou em enviar um comando armado para tomar a antena à força. O comando sequestrou funcionários durante várias horas e interrompeu a emissão do canal regional para colocar no lugar um canal do grupo Azteca (Azteca 13).
Recém-eleito, o presidente Peña Nieto surpreendeu ao permitir a limitação dos monopólios das telecomunicações e a abertura do mercado de “convergência” dos programas audiovisuais nas telas de telefones celulares,6 até então monopólio da Telcel, empresa nas mãos do magnata Carlos Slim. Os industriais aceitaram a regulamentação porque, a longo prazo, essa convergência abriria novos mercados aos grandes barões da mídia, reforçaria os monopólios e desencorajaria a concorrência. O artigo 9 autoriza notadamente a Televisa a adquirir novos canais sem autorização dos órgãos reguladores. De seu lado, Slim poderia ter entrado no mercado audiovisual. As duas emissoras privadas já dispõem de uso gratuito de canais públicos, portanto considerados bens públicos.
A lei permite, além disso, que os grupos de telecomunicação espionem as caixas postais eletrônicas de cidadãos na luta contra o crime organizado. Em junho de 2017, o governo foi acusado de vigiar jornalistas e suas famílias, assim como advogados de parentes de desaparecidos, com o auxílio de um software de espionagem comercializado pela empresa israelense NSO Group, que aluga serviços ao governo mexicano. O espião visava em especial Carmen Aristegui e sua equipe, que em 2015 revelaram que o casal presidencial havia comprado uma mansão de veraneio no valor de US$ 7 milhões junto a um grupo mexicano beneficiário de vultosos contratos públicos. A rádio MVS demitiu Aristegui e sua equipe em seguida, sob argumento de que a participação de jornalistas na plataforma MexicoLeaks (destinada a denunciar atos de corrupção) respondia a “interesses particulares que não estavam relacionados com o jornalismo praticado pela empresa”.7 Os dirigentes da MVS estavam, naquele momento, em negociação com o governo para abrir um canal de televisão.
Encapsular os intelectuais
As extravagâncias do “telepresidente” atiçaram a indignação de grande parte da população. Em 2012, o coletivo estudantil Yo Soy 132 lançou uma grande mobilização nas redes sociais contra a abordagem tendenciosa da mídia em relação às eleições. Desde setembro de 2014, após o sequestro de 43 estudantes de Ayotzinapa pelas forças da ordem em Iguala,8 imensas manifestações aconteceram diante da sede da Televisa reivindicando a verdade. No mesmo ano, uma comédia de Luis Estrada intitulada A ditadura perfeita se inspirava nos escândalos e manipulações que envolvem a relação entre o PRI e a Televisa. Diante de tantos casos de corrupção, da impopularidade do presidente e da indignação crescente dos cidadãos, a eleição presidencial prevista para junho de 2018 se anuncia difícil para o PRI, a ponto de o candidato do Movimento de Regeneração Nacional (Morena), López Obrador, antes tido como uma ameaça ao desenvolvimento do país, parecer hoje receber favores dos círculos financeiros. AMLO se viu até recebendo a amizade da TV Azteca: Esteban Moctezuma, presidente da Fundação Azteca e protegido de Salinas Pliego, juntou-se à equipe do candidato para contribuir com sua “proposta social” para 2018. Rodríguez Munguía se mostra pessimista: “Se outro partido chega ao poder, eles se adaptam. Foi assim quando o PRI perdeu a presidência em 2000, em digna queda daqueles que, décadas antes [2 de outubro de 1968], nem sequer tentaram mudar o curso dos acontecimentos. Eles eram invisíveis e tornavam as tragédias invisíveis”.
“A ditadura perfeita não é a Cuba de Fidel Castro: é o México, porque é uma ditadura tão camuflada que não parece uma.” A formulação do Prêmio Nobel de Literatura peruano Mario Vargas Llosa, pronunciada durante uma conferência no México em 1990 sob o olhar sobressaltado de seu homólogo mexicano, Octavio Paz, descrevia a habilidade desenvolvida pelo PRI como encapsuladora de intelectuais. Rodríguez Munguía prefere o termo “tirania invisível”, cunhado em um texto datado de 1964 e guardado nos arquivos da polícia secreta mexicana, abertos em 2000. O ensaio, visionário, introduz a doutrina que guiaria o PRI em sua relação com os meios de comunicação: “A propaganda política deve utilizar todos os meios de comunicação – as palavras escritas pelos mais instruídos, as imagens gráficas, as utilizações audiovisuais do rádio, da televisão e do cinema pelos menos capazes – [assim] poderemos conceber um mundo dominado por uma tirania invisível que adotará uma forma exterior de um governo democrático”.9
*Benjamin Fernandez é jornalista.