México: onde estão os 43?
Uma cifra foi elevada à categoria de símbolo no México. Quarenta e três: o número de estudantes assassinados em Ayotzinapa em 2014. O dado resume a insegurança, a impunidade e a colusão entre os poderes que atormentam os mexicanos há décadas. Eleito em 2018, o presidente López Obrador prometeu esclarecer o caso. O país segue esperando
“Onde estão os 43?” A pergunta inscrita em diversos muros de cidades do México atormenta o tempo todo um país que o vice-secretário dos Direitos Humanos, Alejandro Encinas Rodríguez, descreveu como uma “imensa fossa comum clandestina”.1 A pergunta se refere ao desaparecimento de 43 alunos da Escola Normal Rural conhecida pelo nome de Ayotzinapa, assim como ao assassinato de seis pessoas na cidade de Iguala (estado de Guerrero), no dia 26 de setembro de 2014. E ela implica outra: quem é o responsável? Todos os pesquisadores independentes chegaram à mesma resposta – o Estado mexicano – e salientam o envolvimento das forças federais nos acontecimentos. Desse modo, no espírito dos mexicanos, a cifra “43” tornou-se o símbolo da impunidade e dos problemas do funcionamento da justiça em seu país.
De volta aos fatos. Há muito tempo, os estudantes desse tipo de escola praticam a “requisição” de ônibus particulares para se deslocarem. A prática é usual e chega até a ser alvo de negociações com as empresas de ônibus. Naquela noite, os estudantes requisitaram, então, diversos veículos para irem à cidade de Iguala, a fim de coletar dinheiro para assistir a uma homenagem aos estudantes do massacre em Tlatelolco, ocorrido em 1968 – uma tradição dessa escola que forma os professores das zonas rurais da região, uma das mais pobres do México.
O inquérito oficial concluiu rapidamente que o prefeito de Iguala, José Luis Abarca Velázquez, uma autoridade local notoriamente ligada ao crime organizado, ordenou à polícia municipal que interceptasse os estudantes com medo de que eles perturbassem um evento político organizado por sua esposa. Em seguida, a polícia teria entregado os estudantes a um grupo local de traficantes de drogas, os Guerreros Unidos, que os teriam matado antes de queimar os corpos em um depósito de lixo da cidadezinha vizinha de Cocula. Essa narrativa se baseia nas confissões de supostos membros do grupo criminoso presos e pelo vestígio do DNA de um dos estudantes, Alexander Mora Venancio, extraído de um fragmento de osso encontrado em um saco plástico perto do depósito de lixo. Em 27 de janeiro de 2015, Jésus Murillo Karam, procurador-geral da República na época dos acontecimentos, qualificou essa versão de “verdade histórica”, antes de terminar o inquérito.
No entanto, graças aos esforços incansáveis dos pais dos alunos, de organismos internacionais, de militantes e de jornalistas, a “verdade histórica” perde aos poucos seu status de evidência. A ONU considera essa versão “insustentável” e demonstra que os testemunhos nos quais se baseia o inquérito do Ministério Público Geral, da polícia federal e da Secretaria da Marinha (Semar) foram obtidos sob tortura.2
A Equipe Argentina de Antropologia Forense (Eaaf), convidada pelas famílias, provou a presença, nos locais, não só da polícia municipal, mas também de cinco patrulhas da polícia federal, de veículos da polícia do estado de Guerrero, assim como de duas patrulhas militares do 27º Batalhão e do Batalhão de Infantaria sediado em Iguala. Além disso, os antropólogos rejeitam a ideia de que os 43 corpos teriam sido queimados no depósito de lixo de Cocula e dizem que não se pode verificar quem manipulou o fragmento de osso que se supõe pertencer a Mora Venancio.
O Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (Giei), que investigou entre março de 2015 e abril de 2016 a pedido da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (Cidh), revelou uma visita não registrada no dossiê do diretor da Agência de Investigação Criminal (AIC), Tomás Zerón, ao depósito de lixo, em 28 de outubro de 2014 – mais de um mês após os fatos –, véspera do aparecimento dos restos dos ossos. Em seu relatório final,3 o Giei relata a existência, em Iguala, de um centro de operações estratégicas por meio do qual a polícia, o Exército e os funcionários jurídicos da Procuradoria-Geral da República (PGR) vigiavam os estudantes de Ayotzinapa bem antes das mortes.
No final de seu mandato (não renovado pelo governo mexicano), os especialistas da Cidh identificaram dezessete pistas ignoradas pela PGR. Seu relatório mostra que, em 2016, ou seja, dois anos após os fatos, o Exército destruiu 25 fuzis pertencentes à polícia municipal de Iguala, armas utilizadas por ocasião dos ataques contra os alunos da Escola Normal. Do mesmo modo, foram necessários três anos para a PGR ir ao 27º Batalhão sediado em Iguala e recuperar as gravações originais das câmeras de vídeo feitas na noite dos acontecimentos. O Exército anunciou, então, que o disco rígido que as continha estava com defeito e havia sido substituído. Foram necessários, ainda, quatro anos para que se pedisse à polícia municipal seus registros de operações e as listas do pessoal, das patrulhas e das armas utilizadas nos dias 26 e 27 de setembro de 2014. Algum tempo depois, os mexicanos perceberam que o governo tinha colocado os especialistas internacionais sob vigilância por meio do software espião Pegasus,4 de fabricação israelense.
Para saber o que aconteceu com os 43 estudantes de Ayotzinapa na noite de 26 de setembro de 2014 em Iguala, afirma Ángela María Buitrago, membro do Giei, é preciso investigar os funcionários do governo do ex-presidente Enrique Peña Nieto. Segundo ela, eles organizaram “a dissimulação, a destruição e a alteração das provas fundamentais do inquérito”. E conclui: “É essencial saber quem eles protegiam e por quê”.5
Historicamente ligadas aos ideais da Revolução Mexicana, as escolas normais foram o húmus de organizações de esquerda e, com frequência, são alvo de violências e de perseguição por parte das forças de segurança, o que permite pressupor um motivo ideológico para os assassinatos dos estudantes de Ayotzinapa. Além disso, a escola figurava em uma lista confidencial de organizações que representavam uma ameaça para a segurança nacional confiada ao presidente por seus conselheiros.6 Mas, ao longo do inquérito, aos poucos surgiu outra hipótese: a possibilidade de os estudantes terem requerido, por engano, um ônibus carregado de drogas, o Costa Line 2513. Essa pista foi evitada durante muito tempo pelo inquérito oficial, ainda que Iguala tenha se tornado um ponto de baldeação importante da heroína destinada aos Estados Unidos.
No final de seu mandato, o Giei recomendou que se estendesse o raio de investigação mais 8 quilômetros rumo ao sul, em direção a Mezcala e Huitzuco. Em Mezcala se encontram minas de ouro cuja concessão pertenceu à empresa Goldcorp, antes de ser vendida em 2017 para a LeaGold, outra multinacional canadense. Essas atividades de mineração garantem os resgates do crime organizado – extorsão, sequestros, assassinatos e desaparecimentos involuntários –, denunciados pelos habitantes dos arredores e pelos trabalhadores das minas, mas ignorados pelas autoridades e pelos diretores da empresa.7 Um vídeo que mostra o interrogatório de um preso submetido à tortura, vazado em junho de 2019, atesta que a PGR e a Seido, uma subdivisão do Ministério Público especializada em inquéritos sobre o crime organizado, sabiam, desde outubro de 2014, que os estudantes podem ter sido conduzidos a Mezcala e entregues a um dos grupos do cartel Guerreros Unidos que se autodenomina “Los Peques” e que opera naquele povoado mineiro.
Apesar dos esforços de pesquisadores independentes e das famílias, nenhum funcionário federal foi incomodado, e os 43 estudantes de Ayotzinapa jamais foram encontrados. No entanto, surgiu uma esperança em junho de 2018, quando um tribunal federal mexicano ordenou a reabertura do inquérito e exigiu a criação de uma comissão de investigação independente da PGR. Essa “comissão em prol da verdade e da justiça” foi constituída em janeiro de 2019, após a eleição do presidente Andrés Manuel López Obrador. O Giei foi chamado para reiniciar seus trabalhos. O resultado do inquérito e as acusações, iniciadas ou não, contra os culpados serão determinantes para julgar a vontade e a capacidade de mudança do novo governo.
Benjamin Fernandez é jornalista.
1 La Jornada, 4 fev. 2019.
2 “Doble injusticia. Informe sobre violaciones de derechos humanos en la investigación del caso Ayotzinapa” [Injustiça dupla. Informe sobre violações dos direitos humanos na investigação do caso Ayotzinapa], Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, México, mar. 2018.
3 “Informe Ayotzinapa II. Avances y nuevas conclusiones sobre la investigación, búsqueda y atención a las víctimas” [Informe Ayotzinapa II. Avanços e novas conclusões sobre a investigação, busca e dedicação às vítimas], Groupe Interdisciplinaire d’Experts Indépendants, 24 abr. 2016. Disponível em: www.oas.org.
4 Investigações revelaram que a PGR utilizava esse software malicioso para vigiar jornalistas e defensores dos direitos humanos. Ler “Au Mexique, la presse au service d’une tyrannie invisible” [No México, a imprensa a serviço de uma tirania invisível], Le Monde Diplomatique, nov. 2017.
5 Proceso, 2 jul. 2019.
6 Anabel Hernández, La Verdadera Noche de Iguala: La historia que el gobierno quiso ocultar [A verdadeira noite de Iguala: a história que o governo quis ocultar], Grijalbo, México, 2016.
7 Cf. “Mexique. Dans la ceinture d’or, les mineurs sont livrés aux cartels” [México. No cinturão do ouro, os mineiros são entregues aos cartéis], L’Humanité, Saint-Denis, 21 abr. 2015.
Eterna guerra contra o “narco”
Entre 2006 e 2019, 61.637 pessoas desapareceram e 3.600 valas clandestinas foram descobertas, principalmente por famílias à procura de seus parentes. A tragédia atingiu 24 dos 31 estados do México e uma das sete municipalidades.1 O novo presidente, Andrés Manuel López Obrador, falou de “crimes de Estado”. No entanto, ele não dá uma solução: desde o dia em que assumiu o cargo, em 1º de dezembro de 2018, 873 novas valas foram descobertas e mais de 5 mil novos desaparecimentos foram registrados,2 em consequência de duas décadas da “guerra contra a droga”, conduzida por seus predecessores e cujo efeito foi reforçar os grupos criminosos.
Ministro da Segurança Pública de 2006 a 2012, o arquiteto da “guerra contra o narco”, Genaro García Luna, foi preso nos Estados Unidos em dezembro de 2019 por seus supostos vínculos com o cartel de Sinaloa. Quatro ex-governadores – Tomás Yarrington, Eugenio Hernández, Roberto Borge e Javier Duarte – foram submetidos a mandados de prisão internacionais por sua cumplicidade com o crime organizado.
Para Luis Astorga, pesquisador na área de Ciências Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México, o desenvolvimento conjunto do paramilitarismo e da violência decorre diretamente do projeto de “guerra contra o narcotráfico”, que gera “uma violência extrajudiciária contra os camponeses, contra alguns grupos políticos e contra todas as formas de protesto social”.
Durante a “guerra suja” dos anos 1960, a prática dos desaparecimentos involuntários se generalizou: na época, foram oficialmente computadas novecentas vítimas. Em 1976, o México vivenciou a primeira grande operação armada antidrogas apadrinhada pelos Estados Unidos na América Latina: a Operação Condor, que mobilizou milhares de militares nos estados de Chihuahua, Sinaloa e Durango, e teve como saldo centenas de mortos e desaparecidos, principalmente camponeses.
Esse modelo, explica Astorga, ressurgiu durante os mandatos dos presidentes Vicente Fox (2000-2006), Felipe Calderón (2006-2012) e Enrique Peña Nieto (2012-2018). O pesquisador acredita que o mesmo esquema operacional se manifeste no programa do novo governo. López Obrador anunciou que acabaria com essa estratégia desastrosa; no entanto, uma vez eleito, prorrogou a presença dos militares nas ruas do país. Aliás, ele escolheu nomear para o posto de procurador-geral Alejandro Gertz Manero, ex-secretário de Segurança Pública de Fox. Reputado por sua posição “linha dura”, Gertz Manero conduzira a Operação Condor.
O que é ainda mais preocupante: o Exército conseguiu colocar na direção da defesa nacional Luis Cresencio Sandoval, general encarregado da segurança do presídio de Piedras Negras, no estado de Coahuila, em 2011 e 2012. Durante esse período, o cartel de Los Zetas operava livremente naquela prisão. Ele teria executado ou feito desaparecer mais de 150 pessoas, de acordo com uma pesquisa realizada pela Comissão Nacional dos Direitos Humanos.3 (B.F.)
1 Alejandra Guillén, Mago Torres e Marcela Turati, “El país de las 2000 fosas” [O país das 2 mil valas], Quinto Elemento Lab, México, 12 nov. 2018.
2 El Universal, México, 7 jan. 2019.
3 Proceso, México, 30 out. 2018.