Miguel Hernández ? A península ultrajada
Preso no ano de 1939, depois da vitória de Franco, Miguel Hernández escreve no cárcere seus poemas mais intensos, frutos da experiência da injustiça, da morte e da ausência.Marco Catalão
Ao seu heterônimo pastor, Fernando Pessoa atribuiu palavras corriqueiras, dispostas em versos livres e aparentemente sem grandes artifícios verbais, que configuram o efeito de espontaneidade e simplicidade comumente associado ao “único poeta da natureza”. Mas Alberto Caeiro, como ele mesmo nos lembra, é um pastor de pensamentos. Já Miguel Hernández (1910-1942), o poeta-pastor espanhol, que de fato guardou rebanhos por vários anos, estréia na poesia com um livro sofisticado e de difícil leitura, Perito en lunas, publicado em 1933. Escrito no momento em que a chamada “Geração de 27” da literatura espanhola está no auge de sua produção, este primeiro livro mostra claramente a influência dos poetas que promoveram a revalorização do Barroco na Espanha.
Entretanto, a guerra civil, que irrompe em 1936, colocará o poeta no centro de um importante movimento de poesia comprometida com a situação política do país. A sintaxe rebuscada e o léxico raro vão dando lugar à “poesia impura”, em que se nota também o influxo de Neruda e Aleixandre. Dos cinqüenta mil exemplares de seu livro El hombre acecha, pronto para ser publicado em 1939, apenas dois exemplares não são destruídos; é graças a essa sobrevivência clandestina que não se perde uma obra-prima (que será publicada apenas em 1981), em que podemos ler poemas fundamentais como “Canción primera” e “Llamo al toro de España”.
Preso nesse mesmo ano de 1939, Hernández escreverá no cárcere seus poemas mais intensos, frutos da experiência da injustiça, da morte e da ausência. Esses poemas, em que se destaca a figura do filho, morto antes de completar um ano, serão publicados postumamente, apenas em 1958, sob o título de Cancionero y romancero de ausencias. Como Antonio Machado e Federico García Lorca, dois outros gigantes da poesia espanhola moderna, Miguel Hernández morre precocemente, vítima da truculência franquista, com uma idade que poderia supor ainda uma longa e fecunda realização literária.
Poemas
De El hombre acecha:
Canción primera
Se ha retirado el campo
al ver abalanzarse
crispadamente al hombre.
¡Qué abismo entre el olivo
y el hombre se descubre!
El animal que canta:
el animal que puede
llorar y echar raíces,
rememoró sus garras.
Garras que revestía
de suavidad y flores,
pero que, al fin, desnuda
en toda su crueldad.
Crepitan en mis manos.
Aparta de ellas, hijo.
Estoy dispuesto a hundirlas,
dispuesto a proyectarlas
sobre tu carne leve.
He regresado al tigre.
Aparta o te destrozo.
Hoy el amor es muerte,
y el hombre acecha al hombre.
De O homem espreita:
Canção primeira
O campo se afastou
ao ver como atacava
crispadamente o homem.
Que abismo entre a oliveira
e o homem se descobre!
Esse animal que canta,
esse animal que pode
chorar e criar raízes
relembrou suas garras.
Garras que revestia
de suavidade e flores,
mas que ele, por fim, despe
em toda sua crueza.
Crepitam em minhas mãos.
Filho, te afasta delas.
Disponho-me a cravá-las,
a projetá-las, filho,
sobre a tua carne leve.
Eu regressei ao tigre.
Te afasta ou te destroço.
Hoje o amor é morte,
e o homem espreita o homem.
***
Llamo al toro de España
Alza, toro de España: levántate, despierta.
Despiértate del todo, toro de negra espuma,
que respiras la luz y rezumas la sombra,
y concentras los mares bajo tu piel cerrada.
Despiértate.
Despiértate del todo, que te veo dormido,
un pedazo del pecho y otro de la cabeza:
que aún no te has despertado como despierta un toro
cuando se le acomete con traiciones lobunas.
Levántate.
Resopla tu poder, despliega tu esqueleto,
enarbola tu frente con las rotundas hachas,
con las dos herramientas de asustar a los astros,
de amenazar al cielo con astas de tragedia.
Esgrímete.
Toro en la primavera más toro que otras veces,
en España más toro, toro, que en otras partes.
Más cálido que nunca, más volcánico, toro,
que irradias, que iluminas al fuego, yérguete.
Desencadénate.
Desencadena el raudo corazón que te orienta
por las plazas de España, sobre su astral arena.
A desollarte vivo vienen lobos y águilas
que han envidiado siempre tu hermosura de pueblo.
Yérguete.
No te van a castrar: no dejarás que llegue
hasta tus atributos de varón abundante,
esa mano felina que pretende arrancártelos
de cuajo, impunemente: pataléalos, toro.
Víbrate.
No te van a absorber la sangre de riqueza,
no te arrebatarán los ojos minerales.
La piel donde recoge resplandor el lucero
no arrancarán del toro de torrencial mercurio.
Revuélvete.
Es como si quisieran arrancar la piel al sol,
al torrente la espuma con uña y picotazo.
No te van a castrar, poder tan masculino
que fecundas la piedra; no te van a castrar.
Truénate.
No retrocede el toro: no da un paso hacia atrás
si no es para escarbar sangre y furia en la arena,
unir todas sus fuerzas, y desde las pezuñas
abalanzarse luego con decisión de rayo.
Abalánzate.
Gran toro que en el bronce y en la piedra has mamado,
y en el granito fiero paciste la fiereza:
revuélvete en el alma de todos los que han visto
la luz primera en esta península ultrajada.
Revuélvete.
Partido en dos pedazos, este toro de siglos,
este toro que dentro de nosotros habita:
partido en dos mitades, con una mataría
y con la otra mitad moriría luchando.
Atorbellínate.
De la airada cabeza que fortalece el mundo,
del cuello como un bloque de titanes en marcha,
brotará la victoria como un ancho bramido
que hará sangrar al mármol y sonar a la arena.
Sálvate.
Despierta, toro: esgrime, desencadena, víbrate.
Levanta, toro: truena, toro, abalánzate.
Atorbellínate, toro: revuélvete.
Sálvate, denso toro de emoción y de España.
Sálvate.
Chamo o touro da Espanha
Te ergue, touro da Espanha: levanta já, acorda.
Acorda agora, inteiro, touro de negra espuma,
que respiras a luz e transpiras a sombra,
e concentras os mares sob a pele fechada.
Acorda.
Acorda agora, inteiro, que te vejo dormindo,
um pedaço do peito e outro da cabeça:
que ainda não despertaste como desperta um touro
quando alguém o acomete com traições lupinas.
Levanta.
Bafeja teu poder, desdobra teu esqueleto,
alteia a tua fronte com suas rotundas foices,
com as duas ferramentas de afugentar os astros,
de ameaçar o céu com lanças de tragédia.
Esgrime.
Touro na primavera, mais touro que outras vezes,
na Espanha ainda mais touro, touro, que em outras partes.
Mais cálido que nunca, mais vulcânico, touro,
que irradias, que ao fogo iluminas, levanta.
Desacorrenta-te.
Desacorrenta o fero coração que te orienta
pelas praças da Espanha, sobre sua astral areia.
Para esfolar-te vivo vêm os lobos e as águias
que te invejaram sempre a beleza de aldeia.
Te ergue.
Não podem te castrar: não deixarás que chegue
até teus atributos de varão abundante
aquela mão felina que pretende arrancá-los
à força, impunemente: dá-lhes patadas, touro.
Vibra.
Não podem absorver teu sangue de riqueza,
não arrebatarão teus olhos minerais.
A pele onde as estrelas recolhem o esplendor
não tirarão do touro de torrencial mercúrio.
Te move.
É como se quisessem tirar a pele ao sol,
à correnteza a espuma com unhas e bicadas.
Não podem te castrar, poder tão masculino
que fecundas a terra; não podem te castrar.
Atroa.
O touro não recua: não dá um passo atrás
se não para escavar sangue e fúria na areia,
unir as suas forças e, firme nos seus cascos,
arrojar-se em seguida com decisão de raio.
Te arroja.
Touro alto que no bronze e na pedra mamaste,
e no granito fero pastaste a tua fereza:
te rebela na alma de todos os que viram
a luz primeira nesta península ultrajada.
Te rebela.
Partido em dois pedaços, este touro de séculos,
este touro que dentro de nós todos habita:
partido em duas metades, com uma mataria
e com a outra metade morreria lutando.
Te agita.
Da agitada cabeça que fortalece o mundo,
do colo como um bloco de titãs a caminho,
brotará a vitória como um amplo bramido
que sangrará o mármore e soará a areia.
Te salva.
Acorda, touro: esgrime, vibra, desacorrenta-te.
Levanta, touro: atroa, touro, arroja-te.
Te rebela, touro, te agita.
Te salva, denso touro da emoção e da Espanha.
Te salva.
***
De Cancionero y romancero de ausencias:
*
Ropas con su olor,
paños con su aroma.
Se alejó en su cuerpo,
me dejó en sus ropas.
Lecho sin calor,
sábana de sombra.
Se ausentó en su cuerpo.
Se quedó en sus ropas.
*
Cada vez más presente.
Como si un rayo raudo
te trajera a mi pecho.
Como un lento rayo
lento.
Cada vez más ausente.
Como si un tren lejano
recorriera mi cuerpo.
Como si un negro barco
negro.
*
Ausencia en todo veo:
tus ojos la reflejan.
Ausencia en todo escucho:
tu voz a tiempo suena.
Ausencia en todo aspiro:
tu aliento huele a hierba.
Ausencia en todo toco:
tu cuerpo se despuebla.
Ausencia en todo pruebo:
tu boca me destierra.
Ausencia en todo siento:
ausencia, ausencia, ausencia.
*
Suave aliento suave,
claro cuerpo claro,
densa frente densa,
penetrante labio.
Vida caudalosa,
vientre de dos arcos.
Todo lo he perdido, tierra.
Todo lo has ganado.
De Cancioneiro e romanceiro de ausências:
*
Roupas com seu cheiro,
vestes com seu aroma
.
Foi-se com seu corpo,
deixou-me em suas roupas.
Leito sem calor,
lençol só de sombra.
Partiu em seu corpo.
Ficou em suas roupas.
*
Cada vez mais presente.
Como se um raio rápido
te trouxesse ao meu peito.
Como um lento raio
lento.
Cada vez mais ausente.
Como se um trem distante
percorresse o meu peito.
Como se um negro barco
negro.
*
Ausência em tudo vejo:
teus olhos a refletem.
Ausência em tudo escuto:
tua voz ressoa a tempo.
Ausência em tudo aspiro:
teu sopro cheira a relva.
Ausência em tudo toco:
teu corpo se deserta.
Ausência em tudo provo:
tua boca me desterra.
Ausência em tudo sinto:
ausência, ausência, ausência.
*