Militarização tipo exportação: o perigo da Indústria Humanitária brasileira.
Em 15 de Outubro de 2017 terá fim a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH). Implementada para durar apenas seis meses, a missão chefiada por generais brasileiros prolongou-se no tempo, sendo renovada anualmente ao custo de U$ 400 milhões por cada mandato
Não é novidade que existam vozes poderosas que falam em nome da paz enquanto promovem e se beneficiam de guerras, violência e conflitos armados ao redor do mundo. No âmbito não-estatal, o caso paradigmático desta postura é do milionário sueco Alfred Nobel, que fez fortuna com a invenção, produção e venda de armas e explosivos, como a Dinamite (patenteada por Nobel em 1867). Seu pai já enriquecera com a fabricação de minas submarinas, mas o “mercador da morte” – como era chamado pela imprensa francesa – foi mais do que um químico brilhante e um empresário de sucesso (ao todo foram 355 patentes registradas por suas 80 fábricas, espalhas por 20 países). Ele também foi um ícone da filantropia capitalista da era dos impérios (1875-1914)[1]. Após revolucionar a fabricação de itens para aumentar o poder letal de metralhadoras e foguetes, municiando diversos governos que possuía em sua carteira de clientes, Nobel decidiu separar uma parte de sua fortuna para um fundo que passaria a entregar o “Prêmio Nobel” em cinco categorias: física, química, medicina, literatura e – claro – paz[2].
Hoje em dia, esta mesma postura é vista em um patamar superior, com formas de atuação mais complexas, agregando múltiplos atores e escalas. Grandes potências invadem países do Sul global ricos em recursos estratégicos, mas taxados como “falidos” ou “frágeis”, em nome da defesa da humanidade e dos direitos humanos (Iraque, Líbia, Síria). Quando há mais consenso na “comunidade internacional”, as operações de paz das Nações Unidas (ONU) espalham-se por sociedades não-ocidentais em conflito, ou mesmo na falta dele, como no Haiti, onde os capacetes azuis cumpriram a função de “estabilizar” o país por treze anos após a remoção forçada, em Fevereiro de 2004, de um presidente democraticamente eleito[3]. No rastro das “intervenções (militares) humanitárias”, um exército de ONGs, especialistas acadêmicos, consultorias, think-tanks e, sobretudo, empresas privadas se prontifica a ocupar os espaços abertos e securitizados pela invasão estrangeira. Estima-se que hoje operem 10 mil ONGs internacionais no Haiti, um incremento de 4.000% em meia década[4]. Assim, nas engrenagens práticas da governança global neoliberal atual, há uma verdadeira indústria humanitária multiescalar que se sustenta a partir da proliferação de conflitos armados ao redor do planeta. Conforme vaticinado por Hillary Clinton em relação ao Haiti ocupado pela ONU: “o país está aberto para negócios!”[5].
Em 15 de Outubro de 2017 terá fim a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH). Implementada para durar apenas seis meses, a missão chefiada por generais brasileiros prolongou-se no tempo, sendo renovada anualmente ao custo de U$ 400 milhões por cada mandato. Passada mais de uma década de ocupação militar e civil internacional, o Haiti é hoje um país mais pobre, com a economia estagnada, onde o desemprego atinge 70% da população economicamente ativa[6] e o tráfico de drogas cresce em velocidade assustadora. Mesmo com a MINUSTAH, estima-se que pelo país passe 12% da cocaína que abastece o mercado norte-americano. O impacto deste comércio na “frágil” sociedade haitiana é forte, concentrando o poder político e econômico, nas mãos de grupos econômicos ligados a quadrilhas internacionais.
A “estabilidade” política imposta pelas tropas majoritariamente brasileiras da MINUSTAH significa o reforço do poder dos conglomerados econômicos, nacionais e estrangeiros, por sobre a democracia no país. O Haiti é mais um caso de “doutrina de choque” que aproveita ou fabrica situações de “crise” para impor com urgência um neoliberalismo em sua versão mais severa, diante da oportunidade aberta pelo estado de exceção[7]. Em 2004 expulsou-se um padre católico de esquerda, seguidor da Teologia da Libertação (Jean Bertrand-Aristide); agora, entrega-se o país com um presidente-empresário exportador de bananas – e réu por lavagem de dinheiro (Jovenel Moïse).
Nesses treze anos avançou-se na privatização dos serviços públicos essenciais, gerando encarecimento no custo de vida e extrema precariedade de condições de subsistência. Também avançou-se em projetos de mineração, turismo de luxo e agronegócio que expropriaram comunidades inteiras, lançando mais pessoas desamparadas em direção às cidades do que os terremotos ou furacões que assolam a ilha. Hoje, Porto Príncipe, a capital, conta com mais de 3,5 milhões de pessoas e um recém-inaugurado hotel da rede norte-americana Marriot, de cinco estrelas, no bairro de Pacot, na mesma rua onde pessoas dormem ao relento e buscam comida nas latas de lixo. Não há serviços públicos gratuitos; até nas escolas e hospitais do Estado só é atendido quem pode arcar com parte dos custos. Nem mesmo à praia pode-se ir sem pagar no Haiti atual. Nesta situação, os serviços oferecidos por ONGs aparecem muitas vezes como a única solução empregatícia possível. Uma ONG brasileira chegou a empregar 400 funcionários no auge de seus trabalhos no país, iniciados à pedido da MINUSTAH[8]. Não surpreende que os haitianos e haitianas estejam emigrando em massa em busca de melhores condições fora de seu país.
Mas isto não muda o discurso daqueles envolvidos na indústria da militarização humanitária. O general Ajax Porto Pinheiro, último comandante da MINUSTAH, faz um “balanço positivo dos 13 anos de missão”[9], mesmo dizendo-se envergonhado pelas mais de 2 mil denúncias de estupro publicadas praticados por soldados e oficiais numa investigação da agência Associated Press[10] na mesma semana em que anunciava-se o fim da presença militar estrangeira no país. Outro general brasileiro, Carlos Sarmento, ao tomar parte na política “pacificação” de favelas cariocas afirmava, em 2012, que o complexo do “Alemão continua um paraíso”, mesmo que o general Tomás Paiva Ribeiro afirmasse na ocasião que o local era “ mais violento que o Haiti” [11].
Esta é a outra faceta da política de militarização: o discurso que serve para o exterior, também serve ao consumo doméstico, conferindo às “pacificações” por meio de armas e soldados uma lógica circular, que se auto-reforça. É por isto que ora afirma-se que a MINUSTAH aprendeu com a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro; ora diz-se exatamente o contrário, que foram as UPPs que desfrutaram dos ensinamentos trazidos pela participação brasileira nas favelas do Haiti[12]. Secretários de segurança pública, capitães da polícia militar e generais não conseguem se entender sobre esta ordem de causalidade por um motivo básico: ela não existe. Trata-se do mesmo processo simultâneo de militarização à brasileira, em diferentes escalas. Não é coincidência que ambas, UPPs e MINUSTAH, coincidiram no tempo e estão prestes a acabar juntas. Mas a lógica que sustentou ambas segue se reforçando. Outros nomes, siglas e programas tidos como inovadores de uma política/polícia “moderna”, “inteligente”, “eficaz” ou mesmo “humana”, “democrática” [13] ou “cidadã” surgirão na mídia. Mas o conteúdo subjacente permanecerá o mesmo: a lógica do controle social e racial (de pobres e negros), sua “pacificação” preventiva, via a militarização ostensiva de seu cotidiano.
E, mesmo assim, as vozes que pedem mais militarização não se cansam de fazê-lo, até em nome da paz, da vida e dos direitos humanos. Mas será mesmo uma boa ideia exportar as técnicas brasileiras de repressão popular? Será mesmo que temos uma polícia tipo exportação no Rio de Janeiro e em outras capitais? Vejamos. Somente nos dois primeiros meses de 2017 a polícia fluminense já assassinara a 180 pessoas. As incursões policiais em favelas no horário escolar seguem fazendo suas vítimas de balas “perdidas”. Crianças estão sendo atingidas em casa, nas ruas e em plena escola[14]. É também a polícia que mais morre em todo o mundo: nestes primeiros quatro meses de 2017, um PM foi morto em serviço a cada dois dias no estado do Rio de Janeiro. O conluio de policiais com traficantes de drogas e grupos armados milicianos é notícia constante, fazendo da corrupção uma prática frequente na corporação. O aumento do efetivo e dos equipamentos bélicos apenas prolongou os conflitos. No Rio, triplicou-se o orçamento da segurança pública (de R$ 2 bilhões em 2007 para quase R$ 7 bilhões em 2016)[15] mas a violência no estado não caiu. Na verdade só faz aumentar. A situação não é melhor no restante do país: o Brasil é o lugar pratica-se mais homicídios em todo o mundo, em números absolutos, na maioria por armas de fogo: foram 59.627 em 2014, o que significa que em média uma pessoa é assassinada a cada 10 minutos em nosso país, segundo dados oficiais[16]. Na sua maioria são jovens negros e pobres. Dado o grau de letalidade, corruptividade e a seletividade sócio-racial de nossas polícias, será possível continuar insistindo racionalmente em enviá-las para lugares como Haiti, Congo ou República Centro-Africana com a justificativa de ‘pacificação’, estabilização ou paz?
Somente quem se beneficia dessa política mórbida é capaz de seguir defendendo seu aprofundamento e expansão internacional, como ONGs brasileiras que receberam recursos diretamente da MINUSTAH[17]. Assusta, no entanto, a capacidade fria de ignorar as 8 mil vítimas do cólera, doença mortal que não existia no Haiti antes dos soldados da ONU disseminarem seu vírus mediante fezes contaminadas no Rio Artibonite, o maior e mais importante do país para abastecimento humano e irrigação agrícola. Mais de 850 mil pessoas foram infectadas e até hoje não receberam reparações[18], assim como as famílias daqueles que não resistiram à infecção trazida pela “ajuda humanitária” internacional. Após negar-se a reconhecer a responsabilidade pela introdução do cólera por 6 anos, escusando-se nos tribunais de Nova Iorque sob o argumento de imunidade diplomática, o então secretário-geral da ONU Ban Ki-Moon finalmente desculpou-se por sua organização “não ter feito o suficiente” para impedir a disseminação da doença no Haiti[19]. Mas o chamado tardio das Nações Unidas por U$ 400 milhões (equivalente a exatamente um ano de custos da MINUSTAH) não conseguiu atingir a meta de captação: em treze anos houve dinheiro para armas e soldados exteriores ocuparem o Haiti todas as vezes em que o mandato da força foi renovado; mas não encontrou-se sequer o suficiente para um único ano de combate à epidemia de cólera que estes mesmos soldados para lá levaram[20]. Esta é a política humanitária que o lobby da militarização quer expandir para países africanos “frágeis”, conforme avisa o general Ajax Pinheiro, chief commander da MINUSTAH: “as preferidas da ONU são Senegal, Congo, Sudão do Sul, República Centro-Africana e Mali”.
Pacifismo e capitalismo. Rosa Luxemburgo, assim como Alfred Nobel, também foi uma revolucionária. Ela tinha 25 anos de idade quando Nobel morreu em 1896. Menos de três anos depois, a marxista polonesa radicada na Alemanha imperial já havia denunciado como o militarismo é o “negócio mais brilhante para o capital”[21]. Ela alertava para o perigo das “canções de paz” e do “coro de livre pensadores liberais”, argumentando que seria a “autoenganação mais ingênua esperar quaisquer tendências pacíficas dessas sociedade capitalista”[22]. Por isso, hoje em dia, diante da expansão das lógicas e práticas de militarização, do local ao global, é preciso firmeza para rechaçar com veemência a retórica explicitamente securitizante da “bancada da bala” no Congresso Nacional[23], que apregoa a guerra como solução para os problemas sociais: “guerra às drogas”, “guerra ao terror”, “guerra à pirataria”, “guerra à criminalidade” etc.
E, pela mesma razão, deve-se ter muita cautela com as vozes mais refinadas, que parecem opor-se ao militarismo à primeira vista, para logo em seguida sugerir sua manutenção continuada em versão melhorada, sofisticada, mais “humana” ou “consciente”. Campanhas pelo comércio de exportação “responsável” de armas brasileiras são um exemplo desta postura: vendem a ideia que é possível humanizar e controlar um comércio que é por definição inumano, feito para destruir vidas. As UPPs e a MINUSTAH também foram propagandeadas sob estes mesmos termos e rótulos – assim como algumas vozes escravistas brasileiras também propunham medidas filantrópicas para regular o tráfico de negros escravizados, ao invés de terminá-lo de uma vez.
É preciso romper com esta lógica, dentro e fora do Brasil, pois militarização significa mais violência e mortes. Ela só se expande porque também produz lucros e confortáveis empregos, mas em lados bem distantes da cidade, do país e do continente. Por isso a Campanha de Solidariedade com o Haiti – Fora Tropas do Haiti[24] luta desde 2005 para que a ilha caribenha tenha sua soberania restituída e seu povo o direito de se autodeterminar. É possível uma solidariedade com o Haiti que não passe por enviar soldados ou armamentos. Cuba e Venezuela já provaram isto ao não ingressarem na MINUSTAH e serem os primeiros países a enviar ajuda após o terremoto de 2010. É uma forma de ajudar sem ferir os princípios da própria constituição brasileira que, no seu art. 4º, é explícita ao afirmar que as “relações internacionais” do Brasil devem reger-se pelos princípios da “não-intervenção”, “igualdade entre os Estados”, “defesa da paz e solução pacífica dos conflitos”, “prevalência dos direitos humanos” e “autodeterminação dos povos”.
Seguir exportando nossa polícia e suas tecnologias repressivas de comunidades pobres e negras viola todos eles ao mesmo tempo.
Miguel Borba de Sá, Magnólia Said e Rosilene Wansetto são Membros da Rede Jubileu Sul Brasil. Organização não-governamental que há quase duas décadas atua com movimentos sociais e organizações da sociedade civil do Brasil, Haiti e demais países da América Latina e Caribe pela retirada das tropas estrangeiras do Haiti. Para mais, visite: www.jubileusul.org.br e https://haitinominustah.info/
Referências:
BRAZ, C. Alfred Nobel: O incentivador da excelência. São Paulo: Lemos Editorial, 2001.
HOBSBAWM, E. A era dos impérios (1875-1914). Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1988. (p.425)
HONKE, J.; MULLER, M. (Eds.). The Global Making of Policing: Postcolonial Perspectives. Abingdon and New York: Routledge, 2016.
KLEIN, N. A doutrina de choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
LUXEMBURGO, R. Textos escolhidos, vol. 1 (1899-1914). Organização: Isabel Loureiro. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.
NOGUEIRA, J. “From failed states to fragile cities: redefining spaces of humanitarian practice”. In: Third World Quarterly, edição digital, 08 de Março de 2017.
SEGUY, F. A catástrofe de janeiro de 2010, a “Internacional Comunitária” e a recolonização do Haiti. (Tese de Doutorado). UNICAMP, Campinas, 2014.
SEITENFUS, R. Reconstruir Haití: entre la esperanza y el tridente imperial. Santo Domingo: CLACSO libros/Ediciones Fundación Juan Bosch, 2016.
ZIZEK, S. First as tragedy, the as farce. London and New York: Vers