Minha casa, meu carro, meu poço de petróleo
A queda do preço do barril, de quase 50% em um ano, não afeta apenas as transnacionais e os países produtores. Nos Estados Unidos, ela atinge milhões de pessoas que possuem poços de petróleo em seus terrenos e os alugam a companhias privadas, as quais aproveitam o período de vacas magras para lucrar com contratosChristelle Gérand
“Bom dia, sou o proprietário do subsolo”, anuncia Richard L. Dockery ao guarda que, de sua pequena guarita de plástico, se apressa a abrir o portão automático. Surge então um longo caminho de terra ladeado de poços de petróleo que lembram tampas de esgoto quadradas, nada fáceis de distinguir do mato ao redor. Com a revolução do método de extração por fraturamento hidráulico (fracking) e o impulso dado ao óleo de xisto, Dockery se tornou milionário. Em Three Rivers, cidadezinha de 2 mil habitantes no sul do Texas, como em toda a bacia do Eagle Ford, o ouro negro jorra aos borbotões, principalmente sob o terreno desse quarentão.
Como a extração não faz barulho nenhum, Dockery poderia continuar morando na casa. Mas preferiu construir outra maior a alguns quilômetros dali e vender a antiga. Porém, nos termos da lei texana, ele ainda é dono do subsolo. Ficam com ele os lucros do petróleo e as decisões relativas à jazida, inclusive as que afetam a superfície, como a construção de um oleoduto.
Na França [e no Brasil], os recursos minerais pertencem ao Estado, mas na América do Norte os particulares podem possuí-los. Quando uma companhia petrolífera quer perfurar o terreno de um cidadão, ela aluga dele o subsolo. No momento da assinatura do contrato, a companhia lhe garante um bônus quase sempre generoso e depois o gratifica mensalmente com uma porcentagem da produção. Segundo a Associação Nacional dos Detentores de Direitos Minerais (Naro), 12 milhões de norte-americanos estão nesse negócio. Após a queda do preço do barril, que passou de US$ 107 dólares em junho de 2014 para menos de US$ 58 um ano mais tarde, eles viram seus rendimentos mensais cair pela metade.
Continuando seu passeio de proprietário, Dockery depara com três poços que ainda não estão funcionando. “Sabem quando começarão a produzir?”, pergunta ao único operário que veio verificar a pressão da bomba. “Não”, responde o velho de dentro de sua caminhonete. “Mas isso só acontecerá depois que os preços subirem.” Outros quatro poços já produzem. Graças a eles, Dockery embolsa todos os meses, como complemento a seu salário de corretor de imóveis, um “cheque de seis algarismos”. Recusa-se a dizer o valor exato ou mesmo precisar a parte da produção bruta que conseguiu negociar (os royalties).
Em seu carro alugado, ao volante do qual explora o condado de Lavaca, que fica a duas horas de estrada a leste de Three Rivers, Frank S. Joseph se mostra mais tagarela. Veio de Washington para visitar o terreno de 1,2 mil hectares dos quais possui os direitos minerais desde a morte da mãe, em 1996. Em seu terreno, não há vigia, operário nem mesmo tabuleta com o nome da empresa que o explora. Só a presença de uma tubulação dá testemunho de atividade no subsolo. A armação metálica de cerca de 2 metros, batizada de “árvore de Natal” por causa das inúmeras comportas e instrumentos de medida de pressão que partem de seu tronco, ergue-se bem no meio de um espaço coberto de cascalho de mais ou menos 10 metros quadrados. Em volta, a natureza parece ter conservado seus direitos.
Contemplando a sucessão de bosques de carvalhos, lagos e campos onde o gado pasta, Joseph evoca sua terra com evidente prazer: “Desde que me aposentei, há quatro anos, só o que faço é negociar contratos em nome dos 22 herdeiros de meu tataravô, que comprou este terreno há um século”. Ex-jornalista, afirma ter “encostado seu boné de repórter” e passado meses se informando antes de assinar qualquer papel. Gaba-se de haver conseguido negociar 25% de royalties pelo único poço que existe ali. Apesar da percentagem elevada, sua família e ele ganharam apenas US$ 1,5 mil em janeiro último (contra US$ 2,2 mil dois meses antes). “Temos um bom contrato, mas nosso poço nunca rendeu muito”, explica sem amargura.
Tal como essa jazida, explorada desde os anos 1970 e hoje moribunda, 400 mil poços de petróleo (do 1,1 milhão ativos nos Estados Unidos) produzem menos de quinze barris por dia, fornecendo 11% da produção total do país.1 Essas instalações dão pouco lucro mensal, mas permitem negociar bônus elevados. “Em 2011, assinei por três anos com a Square Mile Energy, uma empresa sediada em Houston”, informa Joseph. “Eles estavam interessados em 325 acres de nosso terreno e nós lhes alugamos por US$ 250,2 num total de US$ 81 mil.” Ele mesmo nunca teve contato com representantes da companhia. “Todas as transações são feitas por um intermediário, um ex-militar sexagenário.”
“Como se cada francês tirasse 25%”
Segundo o presidente da Associação dos Proprietários Mineiros do Texas, Jack Fleet, 2,5 milhões de pessoas alugam seu subsolo nesse estado, que tem 300 mil poços e produz, sozinho, 3 milhões dos 8,7 milhões de barris de petróleo bruto extraídos diariamente nos Estados Unidos.3 Quando as empresas ficam sabendo que há petróleo em determinada região, multiplicam os contratos de locação a fim de açambarcar todas as chances; muitos dos subsolos alugados nunca são explorados e ali não se vê nenhum poço. “Nossos membros recebem, em média, US$ 500 por mês”, afirma o presidente da associação. “Mas, se tirarmos da equação a minoria mais sortuda, a maioria fica com apenas US$ 100.”
Assim como Dockery, Fleet é um dos tais “sortudos”. Graças ao terreno adquirido por seu bisavô em Oklahoma, o morador do Texas possui quatro poços que produzem bem. Mas seus negócios se complicaram depois da queda do preço do barril. “Tive de recusar o contrato que a Companhia Chesapeake me oferecia. Em dezembro de 2014, ela me propôs assinar por três anos. Um mês depois, prometeu-me a mesma soma, mas por cinco anos renováveis a cada três…” Ora, os proprietários têm interesse em assinar contratos curtos para receber os bônus com mais frequência. “Na década de 1920, os contratos duravam geralmente dez anos”, prossegue Fleet. “Uma das funções de nossa associação é aconselhar os membros a não aceitar prazos tão longos.”
Nas comunidades perto de Dallas, onde o fraturamento hidráulico horizontal permite perfurar sob barracos de favela, os habitantes começam a se organizar. Para Samuel Smith III, gerente de uma empresa de transportes e membro de uma associação de bairro de Arlington, “as companhias exigem inutilmente que a assinatura seja agora ou nunca”. Ele acha que os moradores deveriam tomar consciência de seu poder de negociação. As empresas petrolíferas só podem perfurar quando a maioria dos habitantes de uma área cadastrada aceita alugar seus direitos mineiros; se eles combinam não assinar, as empresas precisam melhorar a oferta. Esses esforços de mobilização deram frutos: ao fim de uma longa queda de braço com os moradores, a Chesapeake aceitou multiplicar por cinco o bônus que lhes propusera inicialmente, que passou assim de US$ 300 para US$ 1,5 mil por acre.
Ao final dos anos 2000, quando o boom do óleo de xisto começou, as companhias se beneficiaram da falta de experiência de uma parte da população. Inúmeros particulares assinaram contratos que previam bônus, mas não lucros mensais. Depois eles tomaram consciência do que estava em jogo. Alguns fizeram até cursos para proprietários mineiros oferecidos pela Universidade Cristã do Texas (TCU), um estabelecimento privado de Fort Worth. Em janeiro de 2015, foi ministrado mais um desses cursos. Durante três dias, 25 alunos, na maioria cinquentões, acorreram para ouvir George Wilson, fundador da sociedade Wilson Consulting. Metade deles possuía grandes fazendas; os outros, pequenos sítios recebidos de herança que tentavam explorar a fim de complementar a renda de sua atividade de farmacêutico ou enfermeiro. Diante disso, a morosidade poderia parecer contraproducente. No entanto, os participantes se mostravam reservados. “O negócio do petróleo tem altos e baixos”, repetiam na saída, como se recitassem um mantra. Quase todos apostavam na alta dos preços dali a doze ou dezoito meses; e, enquanto esperavam, faziam-se de difíceis.
Para Ken Morgan, diretor do Instituto de Energia da TCU, que só põe gás natural no carro, os proprietários mineiros não podem se permitir ser vingativos durante esse período de vacas magras, pois não fazem nada para ganhar aquele dinheiro. Ele próprio recebe US$ 700 mensais por seu hectare de terreno. “É como se vocês, franceses, abocanhassem 25% das vendas de vinhos sem fabricá-los nem fazer coisa alguma. No entanto, se o Estado tomasse posse dos vinhedos, seria a revolução. O petróleo é como um vinhedo: faz parte de nossas tradições e de nosso passado no Texas. Queremos conservá-lo no seio das famílias.” Indo adiante na comparação, afirma com a maior seriedade: “Aqui não temos propriamente uma justiça social, mas os direitos mineiros são a melhor redistribuição de renda imaginável!”.
Os particulares não são os únicos a se beneficiar da legislação norte-americana atinente ao subsolo. Igrejas, hospitais, associações, todos podem dispor de recursos minerais. Aliás, dois poços estão atualmente em atividade no campus da TCU. A enorme broca metálica que serviu para a perfuração está orgulhosamente exposta no saguão do Departamento de Energia. Brian Gutierrez, vice-presidente de Finanças do estabelecimento, não diz nada sobre o rendimento mensal do poço. A universidade possui 100 hectares na bacia do Barnett, riquíssima em hidrocarbonetos, e Morgan cita, em seu caso pessoal, um cheque de seis dígitos. Portanto, a queda nos preços não deixou de afetar o orçamento da universidade.
Entretanto, o preço do barril não é o único problema enfrentado pelos donos de poços. As consequências do fraturamento hidráulico inquietam diversos norte-americanos, principalmente no Texas, que assistiu ao nascimento dessa inovação. Em Denton, os terremotos cada vez mais frequentes4 e o medo da poluição da água induziram os moradores a votar, em novembro de 2014, contra o emprego da técnica. Na cidade, onde o bombeamento convencional não é possível, semelhante restrição equivale, de fato, a proibir a perfuração. Tão logo a medida foi votada, Leslee Davis, uma sexagenária de sorriso contagioso e proprietária de quatro hectares em Denton, apresentou queixa contra a municipalidade, cuja decisão, a seu ver, seria “contrária à Constituição”. “Trata-se de pegar uma parte de sua propriedade e destruí-la sem nenhuma compensação!”, reclama a professora aposentada.
Ninguém deixa de bater ponto
Moradores e empresas parecem ter aprendido as lições da crise do petróleo dos anos 1980, à qual vivem se referindo. Antes mesmo da queda dos preços, a prudência era regra. A esmagadora maioria dos proprietários mineiros manteve seus empregos. Dockery admite que passou a trabalhar menos, mas nem ele nem a esposa decidiram viver unicamente das rendas do petróleo. “Aqui, somos programados para trabalhar”, declara, rindo.
Os que realmente enriqueceram são do Texas rural, onde os proprietários possuem imensas fazendas, de início destinadas ao gado ou à caça. A não ser pelo tamanho da caminhonete, com muita dificuldade distinguiríamos os que ganham petrodólares dos que possuem terras situadas no lado ruim da estrada. Em Three Rivers, que entretanto viu seu bolo fiscal se multiplicar por quatro entre 2008 e 2015, as casas estão sempre em petição de miséria e a fiação elétrica é de dar medo. Apenas uma quadra de esportes com piso já decrépito foi aberta num antigo mercado de carnes. Na cidade vizinha de Tilden, avessa à informática, a papelada do fórum ainda é redigida na máquina de escrever. Certidões de nascimento e de óbito, mas também escrituras determinando a quem pertencem as jazidas, são lavradas numa sala especial. As secretárias, ambas milionárias depois que alugaram seus subsolos, continuam a bater ponto diariamente.
“Aqui, não é de bom-tom mostrar que se tem dinheiro. E, afinal, onde iríamos gastá-lo? O que vale é o estado de espírito”, explica Dockery apontando para as planícies áridas a perder de vista. Ele acalentava três sonhos; realizou dois: trocar de caminhonete e visitar a Argentina. Esperemos que, apesar da queda dos preços, ele realize o terceiro: fazer a peregrinação a Santiago de Compostela.
*Christelle Gérand é jornalista.