Ministério “terrivelmente evangélico” e polícia “dos amigos”
Não é “se” Bolsonaro pretendia interferir politicamente na Polícia Federal, mas “qual” interferência pretende promover
Mas sei, que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente,
a esperança
O Bêbado e a Equilibrista – Aldir Blanc / João Bosco
Moro caiu e Bolsonaro trouxe dois quadros do que poderíamos situar como alinhados ao bolsonarismo de núcleo-duro (a facção impregnada por uma ideologia que combina os imaginários militaristas e milicianos): como Ministro da Justiça, André Mendonça, e para a direção-geral da Polícia Federal, Alexandre Ramagem. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, suspendeu a nomeação de Ramagem. No dia 3 de maio, Bolsonaro e seus sequazes novamente tiveram sua manifestação antidemocrática, mas desta vez agregaram violência física contra a imprensa. Na segunda feira, 4 de maio, Bolsonaro recebeu o major Sebastião Curió, aquele que comandou a repressão (tortura e assassinato) à guerrilha do Araguaia durante a ditadura. Uma polaroid do processo vivo da explosão dos restos da democracia brasileira.
Neste pequeno artigo, focalizaremos nos dois primeiros eventos, para não nos perder no labirinto do caos cotidiano bolsonarista. Com relação ao primeiro evento, André Mendonça é funcionário de carreira da Advocacia Geral da União (AGU) e assumiu com o discurso de que fará uma gestão técnica: um óbvio contraponto às acusações de Moro de que sua saída estaria condicionada por uma tentativa de interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal.
Mendonça recebeu, de primeira hora, manifestações de apoio de, pelo menos, dois ministros do STF, o que dá força a uma imagem “técnica” à frente do ministério, ou pelo menos uma legitimação leve e visual. Num cenário da democracia em ruínas isso já é mais que suficiente.
Essa dicotomia entre o “técnico” e o “político” é completamente falsa e se reforçou muito na agenda pública com a ascensão do lavajatismo como ideologia política. O que estava em jogo era a preservação não de uma capacidade técnica para Moro, mas de sua capacidade de controle político de uma instituição central para o seu ministério e uma de suas fontes de poder. A questão aqui não é, portanto, de forma, de procedimento, mas de conteúdo. Não é “se” Bolsonaro pretendia interferir politicamente na Polícia Federal, mas “qual” interferência pretende promover.
André Mendonça, nesse aspecto, cumpreduas funções políticas fundamentais: (i) a garantia de um verniz tecnocrático, tão caro ao lavajatismo; e (ii) um alinhamento ideológico mais profundo, por via do fundamentalismo religioso, um “servo” do Bolsonaro, nas suas próprias palavras.
Em relação ao primeiro ponto, Mendonça não descarta completamente a ideologia lavajatista de combate à corrupção, sendo, por exemplo, um defensor da tese da prisão em segunda instância, mas remove estrategicamente os quadros ligados a Moro no ministério.

Já no que se refere ao segundo ponto, ele, que é pastor presbiteriano é defensor de uma agenda conservadora no campo dos costumes, tendo defendido, por exemplo, no STF, ação que visa impedir a possibilidade de aborto de fetos com possibilidade de anencefalia causada por zika vírus. Salientamos, postura que seria considerada pelos próprios conservadores, como dura, rígida. Sua atuação recente à frente da Advocacia Geral da União perante o Supremo também esteve focada nos delírios do bolsonarismo em relação à pandemia do novo coronavírus: pediu a suspensão de liminar que define que os estados e municípios possuem autonomia para adoção de medidas restritivas do contato social; atuou na defesa do pacote econômico que permite a suspensão de contratos de trabalho e redução de salários e jornada no período da pandemia, derrotando a posição de Lewandowski que determinava que essas medidas só poderiam ser tomadas mediante acordo sindical; além de sustentar a defesa de que casas lotéricas e templos religiosos fossem elencadas no rol das atividades essenciais na pandemia. Antes da crise da pandemia, Mendonça anunciou na sua conta de Twitter sua participação em um acordo de repasse de R$152 milhões à prefeitura do Rio de Janeiro para investimentos na área da saúde. Na foto dessa postagem, ele, o ex-secretário executivo do Ministério da Saúde, o prefeito Marcelo Crivella e o senador Flávio Bolsonaro, foco de investigações por ligações com as milícias do Rio de Janeiro.
O ponto: Mendonça é uma tentativa, portanto, de afirmação do bolsonarismo ideológico com a tentativa de manutenção de um capital político lavajatista.
Com relação ao segundo evento, diante do movimento político de Bolsonaro, ele foi escolhido como efeito colateral do cerne da crise: a Polícia Federal. Sim, parece pouco intuitivo, o desespero da nomeação de um cargo hierarquicamente menos importante, num governo onde a hierarquia e disciplina é essencial. Assim, a urgência disciplinar inverteu a importância hierárquica.
Alexandre Ramagem, que teve a nomeação para a direção-geral da Polícia Federal, suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes do Supremo, é o personagem central nessa trama: ele é a figura de confiança de Bolsonaro que custou a demissão de um dos ministros mais populares do governo, e o carimbo de governo contra corrupção.
Delegado da Polícia Federal, Ramagem é amigo pessoal da família Bolsonaro, tendo atuado na segurança do então candidato à presidência, mas também possui pedigree lavajatista, tendo atuado na equipe da operação, tendo sido indicado pelo próprio Valeixo para a superintendência da PF no Ceará, no início do governo Bolsonaro. Suas relações com o núcleo central do lavajatismo já eram, entretanto, conturbadas, pelo que mostra matéria do The Intercept Brasil. Pelo que tudo indica, suas relações com a família Bolsonaro passaram, em 2018, a ser o eixo central de sua situação política. Trata-se de um movimento de migração do lavajatismo para o bolsonarismo puro-sangue. Em agosto de 2019, foi nomeado para a chefia da Abin com o aval dos três príncipes-herdeiros. Logo que seu nome foi ventilado para o cargo, circulou nos noticiários uma foto na qual ele aparece em uma foto junto com Carlos Bolsonaro e Léo Índio, na comemoração do último réveillon.
Novamente, nos afastando da dimensão técnica de sua nomeação e da suspensão pelo STF, é importante abordar o componente político, ou seja, das relações de poder, desse movimento: por que Bolsonaro deseja, neste momento, uma pessoa de sua confiança à frente da Polícia Federal?
Vamos ao que ele alegou: que precisava de uma resposta às investigações do caso de sua facada, no infame pronunciamento da “piscina-aquecida-inmetro-o-04-pega-geral” em que, novamente, utiliza cinicamente o evento de seu atentado para minimizar o interesse público pelas investigações do assassinato de Marielle Franco. Mas sabe-se que as investigações sobre o caso Adélio têm comprovado que ele agiu sozinho e não agiu de plena posse de suas faculdade mentais, apesar da insistência do clã Bolsonaro de encontrar o apoio de terceiros ou de organização criminal. Desse mato, portanto, não sai cachorro a não ser que se construa uma peça de teatro do absurdo na qual se estabeleça uma ligação entre Adélio e lideranças de esquerda, como Bolsonaro constantemente insinua. Claro, sempre existe essa possibilidade no caos e interferência bolsonarista.
Em contrapartida, dois de seus filhos tiveram condutas que justificam investigações por atos criminosos: a) Carlos Bolsonaro como possível gestor de uma máquina de fake news, fazendas de disparos em massa e crimes eleitorais (logo depois de que as denúncias emergiram, houve uma explosão da atuação de robôs e perfis falsos subindo hashtags em apoio a Bolsonaro); b) o senador Flávio Bolsonaro é suspeito de envolvimento com grupos milicianos no Rio de Janeiro, inclusive, com a organização criminosa acusada de ter executado Marielle e Anderson, em março de 2018, o escritório do crime. Ramagem, obviamente, seria uma peça-chave, para uma possível blindagem de seus filhos nas investigações das quais são alvo. Não parece haver nenhuma outra razão mais plausível do que esta que justifique esse movimento de tão alto custo para o governo. Talvez a resposta mais simples e direta seja a realidade: Rolando Souza, novo diretor-geral da PF nomeado, teve como uma das suas primeiras medidas trocar o chefe da superintendência da entidade do Rio de Janeiro. O novo diretor-geral da PF foi subordinado de Ramagen na Abin. Ponto.
Na esteira do desarranjado discurso de Bolsonaro na demissão de Moro, uma pergunta emerge em contraste com este contexto: por que essa obsessão de Bolsonaro com o caso Marielle?
No tabuleiro político do bolsonarismo os componentes militar e miliciano são a coluna vertebral: seu núcleo ideológico e suas peças complementares na administração do poder. Os militares, a força oficial de sustentação,e as milícias (digitais e analógicas) são a face obscura, visível na retórica e na ideologia bolsonarista, mas movendo-se de modo subterrâneo no poder. Se na semana passada assistimos a uma intervenção militar no Ministério da Saúde, esta semana foi a vez do elemento miliciano avançar suas peças no tabuleiro.
Na mesma semana Bolsonaro revogou um conjunto de portarias que se destinavam ao controle de armas e munições por sua rastreabilidade. No discurso, Bolsonaro se dirige aos atiradores esportivos, colecionadores e amantes de armas, mas, na prática, o crime organizado será o real beneficiário: essas organizações possuem no recurso à força armada, no poder de matar, o elemento estruturante se seus negócios criminosos; quando se dificulta a possibilidade de rastreio das armas e munições, este poder de matar se amplia. O ponto: Quem tem interesse e se beneficia do tal ato presidencial?
Esses são os movimentos, digamos assim, internos ao poder bolsonarista que se pronunciam nesse cenário. Já na relação com os outros poderes, sem que seja possível um aprofundamento neste comentário já longo, observamos: (i) um movimento do governo na direção do centrão para enfraquecer uma composição que poderia vir a ser favorável à tramitação dos mais de trinta pedidos de impeachment sobre os quais Maia está sentado; (ii) o Supremo tentando demonstrar força diante dos tremores do governo, como possível reação aos ataques bolsonaristas estampados nas recentes manifestações e carreatas pró-governo.
Na ordem política brasileira, desde o golpe de 2016, as relações entre poderes e instituições são cada vez mais débeis como instrumentos de preservação da coisa pública. Arranjos administrativos não ficam de pé sobre uma estrutura social brutalmente desigual, muito menos quando o projeto da elite política não é promover a redução dessas desigualdades, mas o contrário disso. A bandeira da austeridade é a bandeira da corrosão da democracia, por uma razão elementar: a anulação do poder popular. Pode parecer absurdo que Bolsonaro siga no poder havendo tantos elementos que justificariam sua deposição, mas o principal fiador de seu poder é uma base sólida: uma aliança das elites políticas em relação a uma plataforma antipopular e, portanto, autoritária. Democracia não é só procedimento, mas é também a expressão de determinada configuração das relações de poder. Do ponto de vista dessas relações, nosso arranjo institucional possui muito poucos traços de uma verdadeira democracia.
Bolsonaro sempre caminhou na fronteira do legal e do ilegal, transpassando constantemente os limites, que como legislador de baixo clero, ninguém levou muito a sério. Um político de migalhas. Como presidente temos uma certeza, ele não termina seu mandato. Seu mandato caricato e nefasto ficará na história brasileira quando a democracias brasileira ficou nas cordas do milicianismo. Ele já é história. As forças que o mantém dia a dia estão se erodindo, e neste processo de saída, está se defendendo e apoiando com seu lado mais perverso, das sombras e da ilegalidade, visivelmente na sua estrutura essencial, sua ideologia miliciana. Mas o Brasil não é só Bolsonaro, nem a prepotência. O crime é pago, e criar inimigos como forma de manter se no poder também tem consequências. O pós pandemia nos encontrará unidos, ou nos encontrará sem democracia.
Dica dos autores nesta quarentena: fiquemos na democracia. Fora somos sacolas pretas.
André Rodrigues e Andrés del Río são cientistas políticos, professores da UFF.