Mohamed VI e o clamor popular.
Dando sequência ao chamado do movimento do dia 20 de fevereiro, dezenas de milhares de marroquinos de tendências diversas continuam a expressar sua insatisfação, apesar das reformas anunciadas pelo rei no dia 9 de março. A população reivindica também a saída dos principais conselheiros e do primeiro-ministroIgnace Dalle
Marrocos é um regime absolutista que sofre com uma corrupção generalizada, desigualdades gritantes e um desemprego preocupante, o qual atinge, em particular, os detentores de diplomas: diante desse panorama, os dirigentes marroquinos não demoraram a avaliar que, salvo algumas variantes, tudo conduziria a população do reino a retomar por sua conta as reivindicações que haviam motivado as revoltas tunisianas e egípcias. Frente a essa situação, menos de dois meses após a queda do ditador tunisiano, Zine el-Abidine Ben Ali, o rei Mohamed VI esforçou-se em responder à demanda popular: em 9 de março, ele pronunciou o discurso mais importante do seu reinado, anunciando uma “reforma constitucional global”. Essa iniciativa constituiu um avanço considerável. Mas, será ela suficiente?
Nos últimos meses, foram se sucedendo apelos visando instaurar uma verdadeira monarquia constitucional não negocista. Essas exigências foram manifestadas ora nas redes sociais, ora por militantes associativos, no âmbito de pequenas agremiações de esquerda ou nas fileiras dos militantes islâmicos do Al-Adl wal Ihsan (Justiça e Beneficência, um movimento tolerado que reivindica 200 mil afiliados). Após terem esperado várias semanas para reagir aos eventos na Tunísia e no Egito, esses grupos denunciaram a “benalização” do regime e conclamaram a população a participar daquele que iria constituir um verdadeiro evento fundador: a marcha pacífica pela dignidade do povo, em 20 de fevereiro de 2011. Naquele dia, ao menos 10 mil pessoas superaram o mau tempo, a desinformação produzida pela mídia oficial, barreiras montadas nas estradas, além da recusa dos partidos oficiais a tomarem qualquer iniciativa, para se manifestar nas ruas de Rabat. Outros 10 mil marcharam em Agadir, Al-Hoceima e Marrakech – onde incidentes ocorreram –; e menos de 5 mil em Casablanca.
Desde meados de fevereiro, as autoridades – preocupadas – já haviam decidido injetar 15,7 bilhões de dirhans(R$ 3,26 bilhões) suplementares para compensar os aumentos dos preços dos produtos de primeira necessidade no mercado internacional. A quantia veio se acrescentar à verba de 17 bilhões de dirhans (R$ 3,53 bilhões) já prevista para essa finalidade pela lei de finanças de 2011. Avesso às provocações do passado, o poder havia optado por poupar os vendedores ambulantes, assim como os diplomados desempregados – aos quais 1.800 contratações foram prometidas. A prioridade das autoridades é desarmar os conflitos sociais que vêm ocorrendo: os operários da Sociedade Marroquina de Estudos Especializados e Industriais (SMESI), em Khouribga, foram reintegrados; as reivindicações de certas categorias de docentes foram atendidas; diversos dossiês que estavam engavetados havia anos começaram – como por um milagre – a serem solucionados (ou foram objetos de promessas de solução). Por fim, no começo de março, Mohamed VI transformou o Conselho Consultivo dos Direitos Humanos (CCDH) – até então muito criticado –, no Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), uma instituição dotada de poderes reforçados, cuja missão é consolidar o estado de direito.
Embora fossem positivas, essas medidas não conseguiram satisfazer a aspiração de mudança de muitos marroquinos. Em 9 de março, preocupado em apaziguar as mentes, Mohamed VI conclamou, portanto, seus súditos a se mobilizarem no âmbito de um “grande empreendimento constitucional”. Havia dez anos que a população esperava por isso.
Há muitos anos, a cólera da população vem se intensificando diante dos avanços da corrupção, dos abusos de poder, da atribuição de privilégios indevidos, das desigualdades crescentes e do desemprego. Recentemente, foram registrados inúmeros motins isolados – pequenas intifadas, às vezes dotadas de conotação tribal – em Séfrou, Nador, El Hoceima, Tinghir, Ben Smim, Jerrada etc. Toda vez, as populações gritam seu desespero, reivindicam o direito à saúde, ao ensino, ao trabalho ou, simplesmente, à dignidade.
Contudo, o Marrocos não é a Tunísia. Diferentemente de Ben Ali, detestado pelo seu povo, o sucessor de Hassan II ainda conta com um forte capital de simpatia junto a amplas camadas da população. Além do seu estatuto de chefe espiritual dos marroquinos – comendador dos fiéis, e descendente do Profeta –, Mohamed VI goza de um sentimento favorável no âmbito da população. Ele inaugura uma multidão de projetos – não raro, modestos – e não se furta a roubar a cena dos seus ministros ou de eleitos locais: “uma vez que o seu dom pelos discursos é meio limitado, esta é a sua maneira de se comunicar”, explica um alto-funcionário. Além do mais, os marroquinos lhe são gratos pela segurança que reina no país.
Nem por isso, o rei escapa de ser severamente criticado por uma parte da oposição política extraparlamentar, assim como por várias associações. A monarquia passou por apuros durante o outono de 2010: quinze dias após os enfrentamentos que se seguiram ao desmantelamento brutal de um campo de saaráuis em Laayoune, entre 29 de outubro e 10 de novembro, as revelações da WikiLeaksa respeito da avidez do Palácio real no setor imobiliário tiveram o efeito de uma bomba, sobretudo fora do país. Segundo o site dessa associação, um antigo embaixador estadunidense referiu-se à “gulodice vergonhosa” de alguns dirigentes “próximos” ao monarca. Na avaliação do diplomata, seria impossível empreender qualquer projeto imobiliário importante no Marrocos sem antes passar sob o jugo de Mounir Majidi (homem de negócios e secretário particular do rei), Fouad Ali El-Himma (amigo de Mohamed VI e “homem forte” do regime) ou do soberano em pessoa. Assim, segundo a diplomacia estadunidense, procedimentos como esses estariam minando seriamente a boa governança que as autoridades afirmam promover.
A mais completa falta de transparência tomou conta do setor fundiário, em particular no que diz respeito aos títulos de propriedade da família real. Com isso, esta pode adquirir a preços baixos terrenos construtivos que revende a preços de mercado, faturando mais-valias confortáveis. “Nós não podemos fazer absolutamente nada”, lamentou um industrial que cobiçava uma parcela situada num domínio de 3 mil hectares que foi recuperado pelo Palácio no sul de Casablanca. Maior proprietário fundiário do país, com ao menos 12 mil hectares bem irrigados, o rei prorrogou até 2014 a exoneração fiscal da qual se beneficiam os agricultores há cerca de trinta anos. E isso, sem que haja qualquer debate. Contudo, a disposição que havia sido tomada por Hassan II em 1984 em razão de uma forte seca deveria ser apenas temporária…
Segundo a revista norte-americana Forbes, a fortuna de Mohamed VI teria sido multiplicada por cinco entre 2000 e 2009, superando hoje o montante de US$ 2,5 bilhões. O seu comportamento e o dos seus assessores vêm irritando um número crescente de chefes de empresa, em particular nos setores imobiliário, agroalimentar, bancário e da grande distribuição. Já no começo dos anos 2000, o cientista político Rémy Leveau – pouco suspeito de ser hostil ao reino –, manifestou preocupação diante do mercantilismo do jovem rei: “Num sistema em vias de transição democrática, o rei não pode ser um empreendedor; ele não deveria tornar-se um concorrente dos empreendedores”.1 Nem pôr a justiça a serviço dos seus próprios interesses…
No começo de março, o multimilionário Miloud Chaabi, patrão da holding YNNA, causou sensação ao criticar duramente o tratamento de favor que havia sido concedido – mais uma vez, segundo ele –, ao seu principal rival, Anas Sefrioui. Este, que também é um multimilionário, dirige o grupo Addoha e goza do apoio do Palácio, que muito o ajudou no plano fundiário. De fato, o Addoha acaba de fundar uma sociedade comum com a Agência de Moradias e de Equipamentos Militares (Alem), a qual recebeu uma encomenda para construir 37 mil moradias sociais. Segundo Chaabi, que participou de uma manifestação em Rabat em 20 de fevereiro, o acordo é “muito perigoso”: não houve qualquer concorrência pública, e nenhuma transparência.2
Dissipou-se o halo de mistério que cercava o soberano durante os primeiros anos do seu reinado. Hoje com 48 anos, ele tomou gosto pela sua função e, como os seus predecessores, permanece a figura central do sistema. Aqueles que tinham a esperança de assistir a importantes mudanças constitucionais próprias para conferir um peso maior ao Parlamento e, portanto, aos partidos políticos, ficaram frustrados. Mas o rei não deu qualquer sinal de querer modificar a constituição (ao menos, antes de 9 de março). Ao contrário, por intermédio do seu amigo Fouad Ali El Himma, ele enfraqueceu ainda mais um pouco uma classe política que já andava mal das pernas. Fundado em agosto de 2008 por El Himma, com o objetivo de neutralizar o movimento islâmico, o Partido Autenticidade e Modernidade (PAM) conseguiu a façanha de conquistar o primeiro lugar por ocasião das eleições comunais de 12 de junho de 2009, com 21,7% dos assentos. Com isso, ele superou o Istiqlal, a agremiação do primeiro-ministro Abbas el Fassi (19,1%), os socialistas da União Socialista das Forças Populares (USFP) (10,8%) e os islâmicos do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD) (5,4%).
A classe política – ao menos em sua expressão parlamentar – é amplamente ignorada ou desprezada pelos marroquinos. Com a exceção de um pequeno grupo de deputados de extrema esquerda, apenas os islâmicos do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD)3 escapam atualmente do opróbrio generalizado, embora as divergências entre os seus chefes perturbem o eleitorado e prejudiquem a projeção do partido. O oportunismo de um bom número de eleitos de todas as tendências facilitou a tarefa do PAM, que não teve trabalho algum para aliciá-los, atraindo até mesmo alguns antigos detentos políticos de extrema esquerda. Pouco antes das eleições municipais de 2009, no que veio a ser o cúmulo do absurdo, o PAM afirmou ter passado para a oposição. Essa “picaretagem”, conforme denunciou ironicamente o diretor da Tel Quel,4 permite compreender por que cerca de dois terços dos marroquinos hoje não votam mais.
Além de tudo, o reino anda preocupando sempre mais as organizações nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos. Regularmente, a AMDH se junta à Anistia Internacional (AI) e à Human Rights Watch (HRW) para denunciar uma nítida regressão. O presidente da Associação do Rif para os direitos da pessoa, e porta-bandeira da luta contra o tráfico de drogas no norte do Marrocos, Chakib el-Khiyari, foi condenado no início de 2009 a três anos de prisão por “desacato aos corpos constituídos”. O motivo é um disfarce para a ira das autoridades, das quais ele havia denunciado a complacência para com os traficantes de drogas, acusando-as de indulgência, e até mesmo de cumplicidade. O ressentimento das forças da ordem é tamanho que em janeiro de 2011 elas conseguiram impedir a entrega do “Prêmio da integridade” que havia sido atribuído pela Transparency Maroc a Khiyari e a Abderrahim Berrada, um advogado de Abraham Serfaty, um antigo preso político que faleceu em novembro passado.
Os tribunais também atuaram com mão pesada contra a imprensa independente, assediada por um poder que suporta cada vez menos a crítica. Várias sentenças que impuseram multas colossais complementadas por penas de prisão conduziram ao fechamento de várias publicações – Le Journal Hebdomadaire, Akhbar el Youm, Nichane, Al Jarida al Oula, para citar apenas algumas. Na passagem, o regime aliciou diversos escritores e jornalistas famosos que no passado haviam se ilustrado pela agrura das suas críticas, e hoje abraçam as teses oficiais – acomodando-se com o caráter vergonhoso da sua atitude.
A imprensa estrangeira também está na berlinda das autoridades. Há mais de um ano, o ministério da comunicação vem se recusando a credenciar um jornalista marroquino contratado pela Agência France-Presse (AFP). Por sua vez, a agência Reuters enfrenta as mesmas dificuldades. A independência de espírito desses dois profissionais, dos quais um foi redator chefe do Journal Hebdomadaire, é inaceitável aos olhos dos serviços de segurança. Além do mais, os jornalistas espanhóis se perguntam se o seu credenciamento será renovado. Quanto à Al-Jazeera, as suas atividades foram suspensas no final do mês de outubro de 2010, pois os dirigentes do reino avaliaram que esse canal de TV do Catar havia “manchado a imagem do país”.5
Na mesma época, ainda em 2010, o Marrocos expulsou mais de uma centena de protestantes estrangeiros acusados de “proselitismo”. Enquanto o comportamento de alguns evangélicos chegou a causar problemas, o caso de cerca de vinte dentre eles, responsáveis por 33 órfãos em Ain Leuh, no Médio Atlas, comoveu muita gente, tanto no Marrocos como no exterior. Com efeito, essas crianças foram brutalmente retiradas das famílias que as tinham adotado. Vivendo no Marrocos há dez anos, estas respeitavam as leis do reino e criavam os órfãos conforme os preceitos da religião muçulmana. As autoridades parecem ter optado por atender às exigências de um determinado grupo da comunidade islâmica, apesar dos protestos da Federação Protestante da França, do embaixador dos Estados Unidos e da Human Rights Watch.
Em dezembro de 1952, o assassinato do sindicalista tunisiano Ferhat Hached perpetrado perto de Tunis por capangas franceses havia incendiado a África do Norte inteira e, em particular, Casablanca. Sessenta anos mais tarde, os marroquinos apaixonados e não raro muito motivados por tudo o que acontece em outros países do norte da África, exigem uma prestação de contas dos seus dirigentes. Cartas- -abertas ao rei, editoriais geralmente muito contundentes, petições, e-mails, publicações em diferentes blogs e manifestações vêm se multiplicando para reclamar mudanças profundas e uma transição democrática “irreversível”, conforme o termo empregado pelo escritor e poeta Abdellatif Laabi.6
Segundo constata Fouad Abdelmoumni, um consultor em desenvolvimento e economista, o que aconteceu na Tunísia demonstrou “que a mordaça, a repressão, a corrupção e os apoios políticos e militares dados por potências estrangeiras em nada constituem obstáculos para a vontade das populações”.
Com isso, Mohamed VI parece ter compreendido a gravidade do mal-estar que tomou conta do seu país. Mas, embora o seu discurso de 9 de março tenha sido bem recebido, ele levanta uma série de questões. Em primeiro lugar, há uma contradição fundamental entre a vontade de instaurar uma monarquia constitucional moderna e a permanência do caráter sagrado do estatuto real, o qual ele reafirmou. Por ser o mais importante protagonista político, o rei deve poder ser controlado e criticado: por quem e como? Para dirimir essas dúvidas, o trabalho da comissão encarregada de preparar a reforma será decisivo.
Mohamed VI falou em uma justiça “independente”. Mas ele nada disse a respeito da corrupção que vem solapando o país, nem sobre o mercantilismo e o uso de lobbies em favor de interesses particulares que gangrena seu entourage. Nada, tampouco, a respeito do papel que será atribuído – ou não – a Fouad Ali el Himma, atualmente onipresente na cena política.
O soberano optou por empreender um processo gigantesco de reformas que sem dúvida estará apinhado de obstáculos. Entretanto, acompanhados com muita atenção pelos marroquinos e os “países amigos” – que deverão se mostrar mais exigentes em suas relações com o reino –, o Marrocos e Mohamed VI dispõem de uma ocasião única para implantar um modelo original de desenvolvimento e de democracia. O apoio popular do qual o soberano ainda beneficia deveria ajudá-lo nessa tarefa, colossal.
Ignace Dalle é jornalista.