Movimento contra a corrupção ou golpe de Estado disfarçado?
Ao ler uma parte da imprensa, conclui-se que o processo de destituição da presidenta Dilma Rousseff, desencadeado em 17 de abril por decisão do Parlamento, testemunharia o vigor da jovem democracia brasileira. É o contrário. Ao renunciar à realização de uma reforma do sistema político, a esquerda alimentou a armadilhaLaurent Delcourt
Mais de 500 mil manifestantes em São Paulo, um pouco menos no Rio de Janeiro e 100 mil em Brasília. No total, cerca de 3 milhões de pessoas teriam ocupado as ruas de uma centena de cidades brasileiras no dia 13 de março, formando uma maré humana apresentada como a mais vasta mobilização desde o movimento das Diretas Já!, que tinha desafiado a ditadura na primeira metade dos anos 1980.
Essa onda cidadã contribuiu para devolver os militares a seus quartéis. Mas, para os manifestantes de hoje, que exibem a cor amarela da seleção nacional de futebol, não se trata de exigir mais direitos, avanços democráticos ou progressos sociais. Aos gritos de “Fora Dilma!”, “Impeachment já!” e “Lula na cadeia!”, eles reclamam a cabeça de uma presidenta que seria culpada de um “crime de responsabilidade”, tendo infringido a regulamentação orçamentária,1 assim como seu predecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, acusado de estar implicado no escândalo da Operação Lava Jato: o desvio presumido de bilhões de dólares da Petrobras, a gigante petroleira nacional, em proveito de empresas, partidos e personalidades políticas.
Alguns dias antes, em 4 de março, ao longo de um cerco intenso que mobilizou dezenas de policiais e foi transmitido por todas as televisões do país, o ex-presidente foi apreendido ao nascer do dia em sua casa e levado sem cerimônias à delegacia de polícia do aeroporto internacional de Congonhas, para ser interrogado pela Polícia Federal. Padrinho dessa operação espetacular, o juiz federal Sergio Moro suspeitava que Lula – com base em uma delação – teria sido beneficiado pela Odebrecht, uma das empresas incriminadas. Pouco depois dessa condução sob custódia, no dia 6 de março, por uma iniciativa paralela, promotores de justiça de São Paulo reclamavam publicamente a “detenção provisória” do ex-presidente, acusando-o de “lavagem de dinheiro” e “ocultação de patrimônio”. Os simpatizantes do líder petista – que continua muito popular – estimaram que os juízes organizaram um linchamento midiático. Enquanto aqueles que, há meses, fazem campanha pelo impeachment gritaram vitória, juristas brasileiros se enfrentaram sobre a legalidade das ações realizadas contra Lula e sobre a validade do processo de “acusação e destituição” lançado contra Dilma, que denuncia, por sua vez, um “golpe de Estado institucional” tramado por seus adversários.
Fora do país, a mídia internacional foi fiel relatora da “legítima indignação” dos brasileiros diante da corrupção. “Não é um golpe de Estado”, afirmou o jornal Le Monde em seu editorial de 30 de março de 2016, enquanto o jornalista norte-americano Chuck Todd celebrou a revolta “de todo um povo” (NBC News, 17 mar. 2016), e o El País, a ação corajosa de um “juiz heroico” (19 mar. 2016). Como sugeriu o jornalista norte-americano Glenn Greenwald, protagonista no caso Edward Snowden, as grandes manchetes da imprensa se contentam em repetir “o discurso monolítico, antidemocrático e oligárquico” da mídia brasileira. Para ele, esse relato é “no mínimo uma simplificação radical do que está acontecendo e, provavelmente, uma campanha de propaganda destinada a minar um partido de esquerda”.2 Nesse registro, a revista semanal alemãDer Spiegel saiu do tom ao evocar um “golpe de Estado frio”: “Pela primeira vez desde o fim da ditadura militar, o maior país da América Latina está confrontado a uma profunda crise institucional que pode acabar com todos os progressos realizados nestes últimos trinta anos. Uma parte da oposição e da justiça está mancomunada, conjuntamente com a maior das empresas de telecomunicações, a TV Globo, em uma caça às bruxas que visa Lula”.3
Nesse caso, a TV Globo não está isolada. Algumas horas antes do início das mobilizações pró-impeachment de 13 de março, o Estado de S. Paulo publicava um editorial ácido convidando todas as “pessoas de bem” a “cumprir seu dever cívico” diante do “pior governo de todos os tempos”. Desde a manhã da véspera, a rádio Transamérica tinha usado o mesmo tom, não hesitando em difundir durante 24 horas os slogans antigoverno do coletivo Vem pra Rua, um dos mais importantes agentes do movimento. Caricaturais e exageradas, as capas da revista Veja4 estampam insistentemente acusações contra a presidenta e seu predecessor: “Eles sabiam de tudo”, “Lula comandava o esquema”, “A vez dele [Lula, ir para a prisão]!”…
Um pouco mais séria, a Folha de S.Paulo adota um tom menos agressivo, recusando, por exemplo, a se pronunciar sobre a legalidade do processo de impeachment. Mas, como ressaltam Bia Barbosa e Helena Martins, “A formação da opinião pública, contudo, pode ser um processo sutil. Não precisa transpirar ódio – aliás, é melhor que não o faça, senão o jogo fica muito descarado. Vale mais apostar em frases simples repetidas à exaustão e na invisibilização de opiniões divergentes – rasgando qualquer manual de bom jornalismo. […] Foi o que assistimos pelo menos nos últimos quinze meses, quando a mídia, de forma sistemática, colou a ideia da corrupção em apenas determinados grupos e consolidou a avaliação de que este é ‘o pior governo de todos os tempos’”.5
Mascote patronal nos protestos
Os dois maiores canais de informação, o Jornal Nacional, da TV Globo, e o Telejornal, de seu concorrente SBT, são excelentes nesse procedimento. A interpelação de Lula em seu domicílio provocou uma enorme quantidade de reportagens tendenciosas e flashes especiais, deixando no silêncio ou diminuindo os argumentos da defesa e ampliando os da acusação. Depois do chamado de Dilma ao ex-presidente para que ele integrasse seu governo, os jornais televisivos difundiram repetidamente uma conversa telefônica privada entre os dois protagonistas que supostamente provava uma ação para livrar Lula das investigações. Pouco importa o fato de que eminentes juristas tenham considerado essas escutas ilegais, vendo nisso um abuso de poder do juiz, até mesmo um ato de traição: os jornalistas ignoraram a crítica e condenaram imediatamente, fazendo pouco caso da presunção de inocência.
A narrativa midiática zomba das manifestações pró-governo, que, no entanto, são maciças, ou as apresenta como “manifestações de militantes” submissos ao PT, aos sindicatos e aos movimentos sociais. Ela veicula a imagem de um Brasil que se levanta como um único homem contra um governo corrupto. Contudo, pesquisa publicada pela Folha de S.Paulo (14 mar. 2016) revela um quadro diferente: a esmagadora maioria dos manifestantes é branca, com diploma superior e pertencente às categorias de renda média, alta e até mesmo muito alta, em suma, a elite da sociedade brasileira.
Nas redes sociais, diversos clichês ilustram a natureza dessa “revolta”, como as fotografias do casal que desfila com uma doméstica empurrando o carrinho de seu bebê rumo ao protesto e de manifestantes brindando com uma taça de champanhe na mão.
Conjuntamente com as palavras de ordem anticorrupção e antigoverno, os slogans entoados por esses “bons cidadãos” não se destacam por seu progressismo: recriminações contra os impostos, recusa de políticas sociais, ataques contra o ensino público – qualificado de “fábrica de idiotas” ou de bastião marxista –, ataques contra eleitores mal informados e manipulados pelo PT, caricaturas racistas, para não falar dos chamados à intervenção militar…
A onda de protestos, que teve como símbolo um enorme pato de plástico visto nas televisões do mundo inteiro – na realidade, uma mascote criada pela Fiesp, a poderosa federação de empresários de São Paulo –, evoca mais as “marchas da família com Deus e pela liberdade” que precederam o golpe de Estado de 1964 do que um despertar cidadão e democrático. Na época, essas marchas se opuseram às reformas progressistas do presidente João Goulart, acusado de conspiração comunista. Hoje, o objetivo por trás do combate à corrupção é abater o PT e enterrar as (magras) conquistas do “lulismo”. Um dos dirigentes da contestação anti-Dilma, o jovem Kim Kataguiri, figura de proa do Movimento Brasil Livre, não esconde: “Não devemos nos contentar em fazer sangrar o PT, é preciso enfiar uma bala na cabeça”.6
Ainda que os ataques da grande mídia não surpreendam mais, a novidade se deve à entrada em cena do Poder Judiciário. Qualquer que seja o grau de implicação do ex-presidente, a ofensiva da justiça provoca dúvidas sobre a imparcialidade dos juízes e alimenta suspeitas sobre a politização de uma parte do Ministério Público. Os métodos expeditivos e arbitrários do juiz Moro, coqueluche da mídia e dos manifestantes pró-impeachment, também levantam dúvidas: vazamentos seletivos na imprensa, ruptura do segredo de justiça, divulgação de escutas telefônicas, recursos maciços às delações premiadas, detenções espetaculares etc.
O juiz federal do Paraná evoca a Operação Mãos Limpas, organizada pelos magistrados italianos, e mal disfarça suas intenções: quebrar o ícone da esquerda brasileira. É necessário, explicou em artigo publicado em 2004, “[manter] o interesse do público elevado […] e os líderes políticos na defensiva”, de maneira a obter “o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados”. Mesmo que se corra o risco “de lesão indevida à honra do investigado ou acusado”, “pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios”.7
Para a oposição que deseje impedir a ideia de um retorno do carismático ex-sindicalista à cena política, ninguém duvida de que a condenação de Lula seria uma inacreditável vantagem. Pois, se a impopularidade de Dilma dá grandes chances aos outros partidos, a candidatura de Lula poderia liquidá-los novamente. “A voz da rua não é necessariamente aquela que se expressa nas urnas”, lembra um defensor do PT. “Vão tirar a Dilma”, acrescenta a moradora de um bairro popular do Rio, “e colocar quem no lugar? Ela está sendo usada como bode expiatório. Todo mundo rouba no Brasil, e até acho que o Lula tenha roubado também. Quem não? Mas o governo dele melhorou a vida dos pobres.”8
Finalmente, as investigações em andamento trazem a cada dia um novo lote de revelações, que enlameiam todos os partidos. Elas destacam quanto “a corrupção da classe política brasileira – inclusive nas fileiras do PT – é generalizada”, nota Greenwald, que constata: “Os plutocratas brasileiros, a mídia e as classes médias e superiores estão instrumentalizando a corrupção para conseguir o que eles não conseguiram fazer de maneira democrática: vencer o PT”.
Por trás dessa cruzada moral antigoverno e anticorrupção se escondem evidentemente outros objetivos: ambições eleitorais de alguns; vontade das oligarquias de manter seus privilégios, de enterrar as conquistas sociais, de privatizar a gestão do pré-sal; medo, principalmente, de ser encurralado pela investigação da Lava Jato… A esse respeito, o advogado e político Ciro Gomes (PDT) ressalta: “A coalizão PSDB/PMDB está tentando, entre outras coisas, simples e puramente, o fim e a morte da Lava Jato. A democracia brasileira precisa saber que o [procurador-geral da República, Rodrigo] Janot conseguiu mil contas na Suíça de políticos de tudo que é partido. E eles estão fazendo jantares em Brasília e conversando explicitamente que é preciso acelerar o impeachment, derrubar a Dilma, e com isso sinalizar para o povo que a Lava Jato concluiu sua finalidade e agora está na hora de encerrá-la”.9
Eduardo Cunha, presidente da Câmara, e Michel Temer, vice-presidente, chamado a tomar as rédeas do país no caso de saída da presidenta, foram ambos citados no caso Petrobras. Quando se trata deles, ou de qualquer um dos trezentos parlamentares citados por corrupção e outros delitos na Operação Lava Jato, há silêncio e indulgência por parte da mídia.
O PT é, sem dúvida, em grande parte responsável pela crise que o Brasil atravessa hoje. Por não ter alterado o sistema político, ele se encontra agora preso em sua própria armadilha. E se vê obrigado a acionar seus piores recursos para tentar se manter no poder.
Laurent Delcourt é pesquisador do Centro Tricontinental (Cetri), em Louvain-la-Neuve, Bélgica.