Movimento Oásis
Um amplo movimento de solidariedade à população afetada pelas enchentes em Santa Catarina se organiza a partir da iniciativa de jovens que se articulam pela internet e, depois, vão atuar em mutirões na região mais atingida pelas intempéries
O livro Ismael, romance de Daniel Quinn, que retrata a conversa entre um homem e um gorila, há uma daquelas perguntas intrigantes que faz os leitores repensarem sobre o papel que o ser humano tem no planeta. O livro começa com o narrador respondendo a um anúncio de jornal do tipo: “professor procura aluno com desejo sincero de salvar o mundo”. Ele vai até o endereço especificado e chega numa sala grande e vazia onde nota que está em frente a um painel de vidro e que do outro lado do painel está um gorila – o professor que postou o anúncio. A partir daí, começa uma jornada, com visão ampla e provocativa sobre a história da humanidade. Uma questão inquietante é a tabuleta pregada na parede atrás do gorila, que tinha a seguinte pergunta: “com o fim da humanidade, haverá esperança para o gorila?¹”. Num primeiro momento, qualquer leitor estranharia a ambiguidade da pergunta. Pensando que o nosso estilo de vida está ameaçando o de outras espécies do planeta. Poderíamos rapidamente imaginar que a resposta mais sensata seria a de que todos os gorilas ficariam muito melhores sem os seres humanos. Entretanto, a pergunta sugere o oposto. Ela nos traz uma reflexão sobre o papel da humanidade, como espécie no planeta. Algo como: os animais poderiam precisar do homem para alguma coisa? Temos algo a oferecer às outras espécies? Estas questões nos levam a pensar sobre o nosso propósito no planeta e sobre a nossa responsabilidade com a vida como um todo.
Desde a época da revolução científica – liderada por Galileu, Descartes, Newton e outros – nos acostumamos a enxergar o mundo e as coisas que acontecem nele como uma máquina. De lá pra cá, buscavam-se solucionar os desafios baseando-se na especialização, na medição exata, na quantificação, na racionalidade, na linearidade, na ordem através da hierarquia, na análise e na competição. Esta visão mecanicista se espalhou para a forma como estudamos os animais, o corpo humano, a sociedade e as próprias máquinas². Nossas empresas, nossas escolas e a nossa forma de nos relacionarmos uns com os outros passaram a ser regidas por esse tipo de pensamento. Praticamente tudo o que fazemos hoje é baseado nos princípios científicos daquela época. De certa forma, todo esse histórico tem contribuído para a nossa crise de percepção do mundo levantada no livro Ismael na qual temos a sensação de estarmos separados uns dos outros e do ambiente em que nos envolve.
Um período de revisão de valores
Entretanto, graças às descobertas recentes da ciência e ao surgimento de várias manifestações da ecologia em todo o planeta, estamos no limiar de um novo ciclo – em que alguns falam ser a “era das relações” –, um novo mundo que está emergindo, baseado nas conexões, na colaboração, na consciência coletiva, no ecológico e nas redes. Estamos passando por um período de revisão radical de nossos valores e da forma como nos organizamos em grupos e comunidades. É um momento de contrastes em que uma velha ordem está indo embora e algo novo – desconhecido ainda – está surgindo. Os jovens nunca estiveram tão conectados uns aos outros como agora e estão criando redes globais de relacionamento jamais vistas. Os sistemas de ensino, assim como as instituições em geral estão sendo pressionados a repensar seus modelos e padrões. Frente a todas essas transformações, tem surgido em diferentes partes do mundo grupos de pessoas dedicadas a inovar e a liderar os processos de mudança.
Em abril de 2009, um pequeno grupo de jovens, comprometidos e motivados em fazer a diferença, lançou um desafio na internet, no formato de jogo, convidando qualquer pessoa para compartilhar ideias e implementar, em poucos dias, soluções projetadas coletivamente nas comunidades do Vale do Itajaí em Santa Catarina – região atingidas pelas enchentes de novembro de 2008. O jogo Oásis³ é um convite para a ação. Inspirado no “aprender fazendo” onde, a partir da experiência prática realizada em grupo, cada participante reflete sobre o seu propósito no mundo e sobre o papel que quer desempenhar por um bem comum. A ideia de ser um jogo é fundamentada no princípio de que podemos escolher e transformar o nosso mundo de forma prazerosa e divertida.
Inicialmente, o palco das ações foi o ambiente virtual. O jogo na internet serviu para conectar jovens de diferentes universidades do país com moradores de 12 comunidades do Vale do Itajaí em Santa Catarina. O objetivo era fazer que pessoas do Brasil inteiro pudessem conhecer a realidade e a história das comunidades / população / moradores afetadas pela enchente em Santa Catarina e, de forma cooperativa, contribuíssem para a solução dos desafios que as comunidades / pessoas estavam enfrentando. De um lado, os moradores das comunidades apresentavam suas necessidades, suas ideias e seus recursos disponíveis, e de outro, os jovens universitários montavam times para contribuir com as ideias e compartilhar de uma solução viável para a região. Em pouco mais de 3 meses, mais de 3.000 pessoas – especialistas, universitários, professores, colaboradores – estavam engajadas na comunidade virtual compartilhando ideias, conhecimentos e desenhando planos a serem implementados de forma colaborativa num rápido espaço de tempo. Assim que os universitários tomavam conhecimento dos desafios das comunidades, rapidamente entravam em contato com centros de pesquisas de suas universidades, mobilizavam professores e pesquisavam sobre a melhor forma de implementar o plano que compartilhavam. Empresários, governantes e outros colaboradores do mundo inteiro poderiam oferecer, mesmo a distância, uma ideia, um produto ou um serviço que pudesse ser aplicado na prática pelas comunidades em parceria com os universitários.
Todas as interações virtuais culminaram numa ação real, em que 300 jovens partiram de 10 Estados brasileiros, para 10 dias intensos de construção coletiva em 6 cidades do Vale do Itajaí – 12 comunidades que sofreram as enchentes – onde iniciaram e terminaram, junto com os moradores dos próprios bairros, 18 obras públicas, dentre elas, a construção de uma ponte para pedestres em Ilhota, a construção de praças públicas, o parquinho para crianças, a reforma de escolas e do posto de saúde. O resultado disso foi que governantes, jovens, empresários, moradores de diversos bairros, enfim pessoas de todos os setores se juntaram por um sonho comum. A partir dessa ação, não só a infraestrutura local melhorou, como os participantes se despertaram para as mudanças que precisamos promover na atualidade. Os 300 jovens que foram para Santa Catarina voltaram inspirados para suas cidades de origem, mobilizando ainda mais gente para a ação. Surgiram iniciativas em São Paulo, Ceará, Minas, Paraná, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Bahia. Em Santa Catarina, outras comunidades aderiram ao movimento, envolvendo o setor público, privado e a sociedade civil e estão começando a desempenhar ações parecidas.
O legal neste movimento é que não há uma instituição hierárquica coordenando tudo. A organização é em rede, na qual pessoas se interagem e atuam por motivação própria. Cada integrante é livre para fazer o que quiser e não precisa de ordem ou autorização de um grupo de coordenadores. Neste caso, a tradicional estrutura de comando e controle foi substituída pelo senso de propósito compartilhado e pela auto-organização. A pessoa se envolve espontaneamente, com um trabalho ou uma atividade, a partir do momento em que ela se vê como parte daquilo que está desempenhando. Dessa forma, o movimento aponta para uma das principais mudanças que precisamos nos tempos atuais. Se estamos preocupados em garantir vida para as gerações futuras, precisamos cada vez mais criar processos participativos em que pessoas e comunidades possam (re) descobrir o seu propósito. O momento é oportuno. Movimentos como o Oasis tem surgido pelo mundo e eles estão cada vez mais conectados. A mudança de percepção necessária da qual falamos no início está surgindo dessa conversação global e remodelando a forma como nos organizamos em grupos e em instituições.
*Paulo Farine Milani é mobilizador e animador de redes sociais.