Movimento popular, mulheres, revolução haitiana e história da libertação latino-americana
No quarto artigo da série Haiti em foco, conheça a trajetória de mulheres haitianas na construção da história da libertação, não só do Haiti e do continente, mas da história mundial
As mulheres haitianas são um sujeito de vida, histórico-filosófico-teológico-econômico-político-estético-médico etc., fundamental para o movimento popular revolucionário e têm participado de forma codeterminante na luta revolucionária, de libertação e de construção da soberania, contra o jugo e a dominação de diferentes impérios, que o Haiti teve que enfrentar historicamente, como o império espanhol, o império inglês, o império francês, estendendo-se no período contemporâneo contra o imperialismo norte-americano, a Otan, a ONU, a OEA etc. As mulheres têm sido um dos principais eixos da luta histórica, contra a dominação, a corrupção, o racismo, a miséria, a violação dos direitos humanos da população e delas próprias em particular. As mulheres haitianas têm sido uma das colunas fundamentais na construção da história da libertação, não só do Haiti e do continente, mas da história mundial.
Mulheres curativas, históricas, revolucionárias e libertadoras no Haiti, para o continente e para o mundo
Este trabalho impacta analogicamente e anapoliticamente minha própria pesquisa, pois parti do total desconhecimento de todo esse campo, ao mesmo tempo, reconstruindo-o de forma integral, num vasto complexo de codeterminações, a partir das linhas do trabalho teórico-prático descolonizador e libertacionista. A falta de informações e materiais sobre esta dimensão feminina da história é um grande obstáculo epistêmico a ser superado, assim como a minha própria formação no caminho dessa busca (mesmo depois de mais de duas décadas de críticas heterodoxas e localizadas), na qual muitos elementos ainda tiveram que amadurecer para poder articular os diversos campos que são constantemente oprimidos.
- A) Victoria Abdaraya Toya Montou ou Victoria Montou conhecida como La Toya
Ela nasceu em 1739 e morreu em 12 de junho de 1805. Destacou-se como uma guerreira revolucionária no exército de J. J. Dessalines. Antes de entrar no processo revolucionário, ela e Dessalines eram escravos na mesma cidade, sempre sendo próximos pessoalmente, a ponto de Dessalines a chamar de tia. Suspeita-se que Victoria tenha nascido em Daomé, atual Benin. Outros indicam que em sua cidade natal ela também foi soldado. De qualquer forma, o momento exato em que foi capturada, escravizada e desculturada para o Haiti também não é preciso.
Antes de ingressar no processo revolucionário, Victoria trabalhou junto com Dessalines como escrava nas plantações de café do colono Henry Duclos, que era um senhor violento, chicoteador e agressivo, desenvolvendo tanto nela como em Dessalines a mesma aversão à escravidão. Não se pode determinar se havia algum tipo de relação biológica entre eles, ou se fazia parte da tradição e do costume afro chamá-la de tia. Outros afirmam que ela é a guardiã do jovem Dessalines e sua única parente viva. Ela lhe ensina a história de seus ancestrais e da cultura caribenha, ao mesmo tempo em que o apresenta ao combate, junto com a ideologia revolucionária.
Duclos percebe que essa relação pode ser perigosa para ele e os separa. Por um lado, vende a jovem Dessalines e, por outro, coloca Victoria em outra plantação. Dessalines é comprado por um negro liberto que com ele estabeleceria uma relação respeitosa e que, por sua vez, pertencia a um engenheiro francês chamado Des Salines. Era muito comum, naquela época, o escravo levar o nome de seu “dono” (adueñador). La Toya, na outra colônia, conhece um grupo de revolucionários, e junto com uma série de trabalhos muito árduos, como desmatar, arar e colher cereais. Ela, com foice na mão e faca índigo na cintura, faz seus fortes discursos e reflexões, destacando-se como líder e comprometendo-se totalmente com a luta de libertação. Os instrumentos de guerra fazem parte da noesis da libertação e do logos do ethos libertacionista que chamamos aqui de vodu do lakou.
Dessalines também continuou seu rumo revolucionário até que, em 1803, foi proclamado General do Exército Indígena e seus pelotões adquiriram o nome de Exército Inca. Victoria também foi considerada uma curandeira1 e, juntamente com todas as suas habilidades, conseguiu organizar diversas rebeliões, antes da Assembleia da Floresta das Caimãs (Bois Caïman de 1791). Victoria era uma guerreira comprovada e foi treinada em combate corpo a corpo, com habilidades excepcionais no arremesso de facas. Quando Dessalines se tornou imperador em 1804, ele nomeou Vitória como duquesa.
Quando Victoria adoece no dia 12 de junho, Dessalines ordena ao seu médico, Baptiste Mirambeau, o seguinte: “esta mulher é minha tia, cuide dela como você cuidaria de mim. Ela teve que sofrer como eu todas as dores, todas as emoções durante o tempo em que fomos condenados lado a lado a trabalhar no campo”. Infelizmente, Victoria morreu em 13 de junho de 1805 e um funeral estadual e nacional foi organizado em sua homenagem com uma comitiva militar (oito sargentos e dois oficiais) e a Imperatriz Marie-Claire Heureuse Félicité (María Clara do Haiti) vestida com roupas de luto compareceu à cerimônia de despedida.
O caixão foi carregado por oito cabos da guarda de Dessalines. Foi a primeira cerimônia oficial do novo governo, que, iniciando as suas funções, tem a difícil missão de se despedir de uma das maiores heroínas da história de e pela libertação. Ela foi mãe substituta, confidente, protetora e educadora de Dessalines, que foi um dos maiores libertadores afro-americanos e americanos, que lutou contra a escravidão e todos os tipos de injustiça moderna, racista e capitalista. La Toya é reconhecida por alguns como a mãe da independência do Haiti, embora este reconhecimento ainda precise ser mais difundido e oficial. Seu nome é lembrado junto com outras grandes mulheres, como Marie-Jeanne Lamartinière e Sanité Bélair. Aparentemente, dos libertadores haitianos, Dessalines foi quem reuniu mais mulheres no processo de história de e pela libertação.
- B) Maire-Claire Heureuse Félicité ou María Clara do Haiti

Maire nasceu em 1758 em Léogâne, comuna situada no departamento do Oeste, e morreu em 1858 em Gonaïves, comuna do departamento de Artibonite. Seu pai era Bonheur Guillaume e sua mãe Marie-Sainte Lobelot. Junto com sua irmã Elise ela estudou em Jacmel, uma comuna do departamento Sudeste. Pouco antes do triunfo da Revolução, em 21 de outubro de 1801, ela se casou com J. J. Dessalines. Após a vitória da Revolução e a formação do Estado independente em 1804, Dessalines foi nomeado imperador e Maria tornou-se imperatriz consorte, recebendo o nome de María Clara do Haiti.
Em 1806, Dessalines foi assassinado e em 1811 ela tornou-se dama de companhia da rainha do Haiti, Doña María Luisa. Por volta de 1820, Maire instalou-se em Gonaïves, recebendo do governo republicano uma pensão que lhe permitiria viver a partir de então. Em 1849, tendo Faustin Soulouque ou Faustin I do Haiti como presidente, Maire recebeu, da Imperatriz Adeline, o convite para fazer parte do seu entorno. Dessa forma conseguiu continuar ligada à política haitiana.
- C) Cêcile Fatiman
Nasceu em 1771 e morreu em Cap-Haitien2 em 1883. Ela era filha de uma escrava africana e de um francês branco da Córsega, e foi vendida junto com sua mãe como escravas nas plantações de Saint-Domingue. Não há vestígios dos seus outros dois irmãos, também vítimas do tráfico de escravos. Ela também é lembrada como uma bela mulher com cabelos longos, sedosos e ondulados e olhos verdes. Ela se torna uma sacerdotisa mambo ou vodu (filósofa-teóloga) com intensa atividade revolucionária.
Será decisiva na Assembleia de 14 de agosto de 1791 da Floresta Cayman (Bois Caïman), sendo este fenômeno filosófico, teológico e político uma virada fundamental na Revolução, na qual, entre outras coisas, são tomadas decisões cruciais, como decidir “viver livre ou morrer” (princípio teórico-prático pegado dos indígenas Taínos) e “lutar até o fim” (dimensão ético-moral); abolir e extinguir a escravatura (dimensão político-econômica-jurídica). A outra decisão fundamental se deve à luta espiritual e às ideias que direcionam todo esse processo, dado em nível teológico-filosófico, para abandonar o arquétipo (a ideia e a imagem) do Deus dos escravizadores e fazê-lo ressurgir, nutrindo e fortalecendo a própria dimensão divina para recuperar a saúde da vida.
Essa assembleia é presidida por ela e pelo sacerdote houngan ou vodu (filósofo-teólogo) Dutty Boukman (o Spartacus negro) que profetizou que os escravos Jean François, Biassou e Jeannot seriam líderes revolucionários, para libertar os escravos em Saint-Domingue. Os sacrifícios oferecidos tinham como objetivo selar esses juramentos e, nesse sentido, Cêcile, agindo em conjunto com a deusa Erzulie, corta a garganta do porco sacrificado e dá o sangue para beber às assembleias de escravos. A cerimônia foi acompanhada de danças e cantos (a dança filosofa e a filosofia dança). Depois de pouco mais de uma semana de combates, após a referida Assembleia, cerca de 1.800 plantações queimam-se no inferno da libertação, e cerca de 1.000 traficantes de escravos foram eliminados.
Cêcile casou-se com Jean-Louis Pierrot, general do exército revolucionário e que mais tarde seria presidente do Haiti nos anos de 1845 a 1846, tornando-se primeira-dama. Aparentemente Cêcile era irmã de Marie-Louis Coidavid, rainha do Haiti entre 1811 e 1820. A resistência da Revolução Haitiana, enfrentando todo tipo de vicissitudes, internas e externas, estende-se consideravelmente ao longo do tempo.
- D) Catarina Flon
A data precisa do nascimento de Catarina é incerta, mas estima-se que tenha sido em 1772 em Arcahaie, uma comuna no departamento Ocidental de Saint-Domingue. Morreu em 1831. Pertencia a uma família de comerciantes têxteis, que mantinha relações comerciais com a França. Seus trabalhos eram como estrategista militar, enfermeira e costureira, ambos muito importantes para a época. Dirigiu sua própria oficina, na qual teve vários funcionários e aprendizes. Era afilhada de J. J. Dessalines.
Catherine é responsável pela criação da primeira bandeira haitiana, pouco antes do triunfo da Revolução, em 18 de maio de 1803, durante o último dia do Congresso de Arcahaie. Nesse Congresso, J. J. Dessalines, já o principal líder revolucionário, cortou a bandeira da França com o seu sabre, como expressão da vontade de se separar da metrópole escravizadora. Após esse ato, ele entregou os pedaços para Catherine, que os refez sem a listra branca.
Para a cultura haitiana, as cores azul e vermelho adquiriram o significado de representar a união entre cidadãos negros (azul) e mulatos (vermelho). No Congresso consolida-se a união dos revolucionários. Nessa bandeira é ratificado o juramento indígena de “viver livre ou morrer”, também chamado de juramento dos antepassados, dos ancestrais, conduzindo os escravos à vitória final. Esse princípio filosófico da história da libertação envolve a descoberta da luta de libertação, e esta luta como tal reúne a noesis éthico completa e o logos do ethos, que neste caso é o vodu-crioulo do lakou, para defender a própria cultura em todas as dimensões, e assim alcançar a liberdade e a felicidade do povo desde o povo e para ele/eles.
A projeção da luta contra a escravidão não foi apenas local, mas continental e global. Com a liderança de Sténio Joseph Vincent, presidente constitucional do Haiti (1930-1941), é o período em que se declara (com muitas contradições) que o dia da bandeira haitiana ganha valor como símbolo de identidade nacional. Esse símbolo sofrerá, ao longo da história, muitas modificações relacionadas às lutas pelo poder, como a vivida naquela época. Outras versões podem ser encontradas referentes à criação dessa primeira bandeira haitiana.
Catarina é considerada uma patriota, heroína nacional, e juntamente com Cêcile Fatiman e Dédée Bazile, são as três heroínas da revolução, da independência e da liberdade, ou seja, da história da libertação. Lembremos que A Toya, que expliquei no início, é reconhecida (embora não amplamente) como a mãe da independência. Da mesma forma, Catherine também é admirada entre as mulheres haitianas que integram movimentos sociais e feministas. As jovens, durante as festividades e feriados nacionais, vestem e representam Catherine Flon, bem como outras mulheres revolucionárias, a fim de sensibilizar, manter a memória da luta, o papel das mulheres na revolução e na história da libertação do Haiti e sobre a história da libertação continental-mundial. Ela também foi retratada em uma nota de 10 gourdes em 2000.
- E) Marie-Jeanne Lamartinière
O dia do seu nascimento não é exato, nem sabemos com precisão quando ela morreu. Foi uma mulata que se destacou pela beleza e foi uma soldada antiescravista, anticapitalista, antirracista e anticolonial da Revolução Haitiana. Ela é menos visível, embora quando é lembrada seja invariavelmente mencionada junto com Sainté Bélair e Dédée Bazile. Assim como Boukman foi chamado de Spartacus negro, Marie Jeanne foi comparada a Joana D’Arc (1412-1431) na França. As relações não são anedóticas nem de natureza meramente comparativa eurocêntrica, havendo portanto uma leitura de articulação com a história da libertação mundial.
Marie foi integrada no Exército Revolucionário de Toussaint de Louverture. Ela lutou ao lado do marido, Louis Daure Lamartinière, na batalha de Crête-à-Pierrot, que durou de 4 a 24 de março de 1802. Seu marido morreu em combate naquele ano, mesmo ano em que Toussaint de Louverture foi capturado.
Ela lutava com uniforme masculino, com rifle e espada em frente às muralhas do forte. A sua coragem foi um incentivo moral para todos, e a sua capacidade de cuidar dos seus companheiros feridos foi um alimento ético fundamental. Às vezes distribuía cartuchos, outras vezes ajudava a carregar os canhões. A vida de Marie após a independência é desconhecida. Aparentemente ela vai se casar novamente, desta vez com o oficial Jean-Louis Larose.
Carlos Francisco Bauer, nascido em Córdoba (Argentina), é professor de História e de Filosofia, graduado em Filosofia e doutor em Filosofia sob orientação de Enrique Dussel e codireção de Alberto Parisí. Professor em tempo integral da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila-Brasil) com as seguintes disciplinas: Introdução aos Problemas da Filosofia Latino-Americana; Filosofia Latino-Americana; Antropologia Filosófica e Colonialismo; Ética e Ciência (Perspectiva Descolonizadora); Introdução ao Pensamento Científico (Perspectiva Descolonizadora); Metodologia de Pesquisa em Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Diversos projetos de pesquisa como “Filosofia e Economia da Libertação de Rodolfo Kusch”, “Traços Americanos na História Universal: Caso Haitiano”; Projeto de Extensão: “Filosofia Intercultural da Libertação Latino-Americana”; coordenador do grupo de pesquisa: “Haiti: descolonização e libertação. Estudos contemporâneos e críticos” (Unila-ELA-UnB-CnPQ 2023-2026). E-mail: [email protected] / [email protected].
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O Haiti como prisma para a compreensão do passado e do presente
Nesta série especial, apresentamos estudos e reflexões sobre o contexto haitiano a partir de diferentes perspectivas (filosófica, histórica, política internacional, cultural, das migrações, etc.). E elas são tão variadas quanto os campos que reúnem os pesquisadores do grupo de pesquisa Haiti: descolonização e libertação – estudos contemporâneos e críticos. Registrado junto ao CNPq e sob a liderança da UNILA, o grupo reúne pesquisadores de diferentes instituições interessadas em investigar as lutas populares por soberania, o pensamento haitiano no contexto caribenho, continental e mundial e as migrações e a cooperação internacional.
Recentemente, o grupo publicou o livro Haiti na encruzilhada dos tempos atuais: descolonialidade, anticapitalismo e antirracismo [de acesso aberto e disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/produto/haiti-na-encruzilhada-dos-tempos-atuais-descolonialidade-anticapitalismo-e-antirracismo/] Os capítulos publicados nessa obra são um esforço desse coletivo, que inclui pesquisadores haitianos, que se interessa e se compromete a contribuir com o conhecimento da sociedade brasileira e regional acerca da realidade haitiana, contra as intervenções estrangeiras e pelo reconhecimento da autonomia e soberania do povo haitiano. Os artigos publicados nesta série pretendem apresentar ao público brasileiro alguns achados dessas pesquisas.
Confira a seguir a relação completa de artigos da série seguida da sua data de publicação:
- Revolução, patrimônios difíceis e dignidade no Haiti, por Loudmia Amicia Pierre Louis (publicado em 8 de abril de 2025)
- Intervenções dos Estados Unidos no Haiti: a continuidade da violência sob o pretexto de paz, por Tadeu Morato Maciel e Sarah Rezende Pimentel Ferreira (publicado em 15 de abril de 2025)
- Triste lembrança e memória colonial da escravidão, tripla dívida da independência nacional, por Vogly Nahum Pongnon (publicado em 22 de abril de 2025)
- Movimento popular, mulheres, revolução haitiana e história da libertação latino-americana, por Carlos Francisco Bauer (publicado em 29 de abril de 2025)
- A cooperação internacional e o Haiti: assistência ou ingerência?, por Marina Bolfarine Caixeta e Roberto Goulart Menezes (publicado em 6 de maio de 2025)
- Soberania comunitária haitiana: alternativa contra o arranjo realista-liberal do Conselho de Segurança, por Renata de Melo Rosa (publicado em 13 de maio de 2025)
- O Movimento Constitucional Haitiano de 1801 a 1816 como precursor de um Constitucionalismo Emancipatório Amefricano, por Maria do Carmo Rebouças dos Santos (publicado em 20 de maio de 2025)
- A comunidade migrante acadêmica haitiana na República Dominicana, por Judeline Exume (publicado em 27 de maio de 2025)
- Colonialidade sem branquitude: entre dilema e desafio da integração do Haiti no Sistema-Mundo neocolonial, por Samuel Morancy (publicado em 3 de junho de 2025)