Mudar condutas e quebrar o ciclo da impunidade
As repetições de graves violações de direitos humanos produzidas pelo governo Bolsonaro estão fortemente ligadas ao não desenvolvimento dos eixos da justiça de transição de responsabilização dos crimes pela justiça brasileira e de criação de mecanismos de não repetição por parte das instituições de Estado
Al fin y al cabo, somos lo que hacemos para cambiar lo que somos”
Eduardo Galeano
No Brasil, apesar de há quase quinze anos ser debatida a aplicação da justiça de transição de maneira mais abrangente na sociedade, em nenhum momento desde a redemocratização logramos aplicar de forma simultânea os quatro eixos desse ramo da justiça. A condição de simultaneidade na aplicação de seus quatro eixos (memória e verdade, justiça, reparação e não repetição) e a identificação e seleção de casos de atingidos por violência do Estado não podem estar à mercê de conveniências políticas como tem ocorrido no processo brasileiro. A ação desconexa dos poderes do Estado, quanto à importância dessa simultaneidade na aplicação dos eixos da justiça transicional, deixa a democracia e a cidadania vulneráveis à repetição de violências.

Isso fica evidente se olharmos para 2012, quando o Estado decidiu ignorar a sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), proferida com base no direito à verdade e à justiça, para o caso dos desaparecidos na guerrilha do Araguaia e do julgamento dos responsáveis.[1] Em vez de cumprir a sentença, o governo brasileiro criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) que, esvaziada de poderes para determinar ações efetivas às suas conclusões nas esferas competentes do Estado, somente pôde apresentar recomendações, sem qualquer prazo e obrigatoriedade de cumprimento, anulando as interações entre os eixos operadores para uma eficaz justiça de transição em nosso país.
Memória e verdade é um dos quatro eixos da justiça de transição que tem como alicerces a investigação dos fatos e exposição de casos. Apesar de todos os eixos manterem uma relação de interdependência entre si, é o eixo que mais gera interações com os demais, porém sem os devidos desdobramentos nas áreas de responsabilização pelos crimes cometidos (eixo 2), reparação aos atingidos (eixo 3) e, tão importante quanto os anteriores, de criação de mecanismos de não-repetição (eixo 4). O eixo memória e verdade sozinho é incapaz de produzir avanços em nossa sociedade para se evitar repetições de práticas de graves violações de direitos humanos pelos setores sociais que detêm o controle do Estado, do projeto de desenvolvimento e das riquezas do país.

Remonta a 1995 a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a 2002 a criação da Comissão de Anistia, visando reparar atingidos e atingidas pela ditadura militar. Ambas comissões envolveram, de forma distinta, somente o eixo da reparação, apesar do uso de elementos de memória para fundamentação dos casos. De 1995 a 2012 o eixo da reparação foi o único aplicado no país e ficou restrito a um determinado segmento da sociedade. No breve período de 2012 a 2014, somou-se ao processo o eixo da memória e verdade, com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) pelo Estado brasileiro, que incluiu, marginalmente, no seu relatório final, novos segmentos sociais, como camponeses e povos indígenas, também gravemente atingidos pela violência do Estado, expondo as limitações do modelo de reparação adotado nas duas comissões reparadoras criadas. A CNV recomendou mudanças nas formulações dessas comissões para contemplar esses segmentos sociais identificados em seu relatório final, bem como, a continuidade do processo de memória e verdade, justiça, reparação e não-repetição, como forma de desdobramento dos trabalhos produzidos e apresentados ao Estado e à sociedade brasileira em seu relatório final[2].
Em carta convite elaborada pela Comissão Camponesa da Verdade para encontro de reflexão entre seus membros sobre os rumos da justiça de transição no Brasil, foram compilados dados que demonstram a importância das observações da CNV sobre a necessidade de inclusão de camponeses e povos indígenas nos processos de reparação definidos pelo Estado a respeito das graves violações de direitos humanos praticados entre 1946-1988, com ênfase na ditadura militar, apurados pela CNV:
“A exclusão dos camponeses e indígenas dos direitos da Justiça de Transição é anterior ao governo Bolsonaro e continuou com ele, no que se refere à Comissão de Anistia e à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – o que se pode apreender dos dados referentes às três comissões encarregadas de reconhecer a efetivar esses direitos.
8. a) A Comissão Nacional da Verdade (CNV) reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte ou desaparecimento forçado de apenas 41 camponeses – embora tenha tido conhecimento da ocorrência de milhares de casos que lhe foram encaminhados pela Comissão Camponesa da Verdade. Não reconheceu nenhum indígena, embora tenha tomado conhecimento de pelo menos 8.350 casos, segundo seu Relatório Temático de responsabilidade de uma comissionada.
9. b) A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) recepcionou 475 casos, sendo 136 por força da lei e 339 por requerimentos de familiares; dos 475 casos apenas 50 eram de camponeses, dos quais 27 deferidos e 23 indeferidos. Nenhum indígena.
10. c) Comissão de Anistia (CA): até 05 de outubro de 2020, foram protocolados 78.887 requerimentos, dentre os quais 2.579 camponeses, segundo a própria comissão. Até aquela data 1.647 requerimentos de camponeses tinham sido analisados, sendo 355 deferidos e 922 indeferidos. Quanto aos indígenas: 141 requerimentos, dos quais 15 deferidos, 5 indeferidos e 34 arquivados.
Este é o retrato da exclusão total dos indígenas e quase total dos camponeses da Justiça de Transição, nos processos administrativos – que o governo democrático só terá condições de superar se as forças democráticas da sociedade lutarem por essa agenda.”[3]
Apesar do Estado ignorar as recomendações e muito pouco ter sido feito para dar seguimento às reparações de indígenas e camponeses, conforme apontado nos dados recolhidos pela Comissão Camponesa da Verdade, a inclusão de camponeses e indígenas nos trabalhos da CNV representou um passo importante para o processo de justiça transicional brasileiro. No que diz respeito aos povos indígenas, por exemplo, além de tirar o foco da violência do Estado do tempo dos portugueses, expondo o ocorrido de 1946-1988, permitiu relacionar conflitos que perduram até os dias atuais fruto desse momento histórico, como é o caso da violência que durante a redemocratização e até os dias atuais persiste no extremo sul da Bahia envolvendo o povo indígena Pataxó.
É hora de repensarmos, enquanto país, as práticas desenvolvidas em nosso processo transicional, pois a simultaneidade na aplicação dos quatro eixos é fator determinante para o fracasso ou o êxito em promover avanços estruturantes na democracia e nas relações sociais para evitarmos repetições de violências praticadas pelo Estado. Não podemos seguir os trabalhos somente desenvolvendo os eixos de memória e verdade e de reparação. As repetições de graves violações de direitos humanos produzidas pelo governo Bolsonaro estão fortemente ligadas ao não desenvolvimento dos eixos de responsabilização dos crimes pela justiça brasileira e de criação de mecanismos de não repetição por parte das instituições de Estado.
O governo de 2019 a 2022 é aquele que, durante o período constitucional em vigor desde 1988, mais repetiu, e de forma muito intensa, práticas da ditadura militar de 1964-1985. Foi acusado de crime de genocídio no Tribunal Penal Internacional em 2021 pelos atos e omissões contra os povos indígenas e pelas ações praticadas na pandemia de Covid-19, além de, ao longo de todo governo, também ter sido denunciado na Organização dos Estados Americanos (OEA) e na ONU por violações de direitos humanos. Esse governo foi também condenado por crimes de lesa humanidade em 2022 pelo Tribunal Permanente dos Povos. O governo Bolsonaro chegou ao seu final atentando contra a cidadania, a democracia, as instituições de Estado e o estado de direito, plantando ao longo de quatro anos de governo raízes profundas de intolerância e ódio em nossa sociedade, contra segmentos sociais, seus direitos e instituições da república.
Depois da tentativa de golpe de Estado, ocorrida em janeiro de 2023, temos hoje o desafio de avançarmos em duas frentes no processo de justiça transicional para haver um fortalecimento da democracia e da cidadania no Brasil. Precisamos instaurar um processo de justiça de transição para o período recentíssimo de repetições de violência do Estado, tendo o governo Bolsonaro como foco central para aplicação simultânea dos quatro eixos da justiça de transição. Isso não significa virar as costas para a aguerrida luta dos familiares de mortos e desaparecidos, entidades de direitos humanos e Ministério Público Federal, que seguem até os dias atuais buscando a efetivação da justiça de transição pelas graves violações de direitos humanos praticadas na ditadura. Também não substitui a necessidade apontada pela CNV de que o Estado brasileiro dê sequência na apuração das barbaridades praticadas ininterruptamente contra os povos indígenas desde 1500.

A decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) de 2010, manteve a impunidade dos crimes praticados na ditadura militar em desrespeito ao ordenamento jurídico internacional do qual o Brasil é parte. É fundamental seguirmos com o processo de justiça transicional referente ao período da ditadura militar, buscando superar os efeitos de impunidade criados pela Anistia de 1979, fazendo o Estado cumprir integralmente a sentença da Corte IDH e a efetivação das recomendações da CNV, como também iniciar o quanto antes um procedimento exclusivo e paralelo de justiça de transição para apurar os fatos ocorridos entre 2019-2022.
A responsabilização dos crimes cometidos entre 1964-1985 jamais conseguiu superar o mecanismo de impunidade imposto pela anistia de 1979, mesmo depois de o Brasil ser condenado a fazê-lo pela Corte IDH, sendo um elemento gerador de repetições e estímulo à atuação inconstitucional por setores das Forças Armadas em nosso país. O eixo da não repetição segue também à margem das atitudes do Estado e oculto em todo o processo histórico recente. A mudança de conduta das práticas dos agentes do Estado mediante a revisão de procedimentos e a criação de mecanismos de não repetição ainda tem seu desenvolvimento, em conjunto com os demais eixos, realizado de forma muito tímida, pontual, para não dizer ineficaz e inexistente.
O impacto dessa fragilidade do processo transicional no Brasil é a vulnerabilidade da democracia, das instituições de Estado e da cidadania, pois vivemos em permanentes ciclos de instabilidades democráticas e repetições de graves violações de direitos humanos, que se modulam em abrangência e violência a depender das forças políticas que saem vitoriosas a cada ciclo eleitoral, promovendo situações como as vividas pela sociedade brasileira entre 2019 e 2022 com a eleição de Jair Bolsonaro, levando a extrema direita, fascista, ao centro do poder político no país, retomando conceitos e modos de agir da ditadura militar, na certeza da impunidade.

Em 30 de janeiro de 2023, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) apresentou um relatório preliminar sobre a omissão do Estado na preservação dos direitos humanos do povo Yanomami, que documenta ações similares às usadas nos ciclos passados ocorridos durante a ditadura militar e a Nova República. Para a justiça de transição as denúncias do genocídio do povo Yanomami praticado pelo governo Bolsonaro são também denúncias sobre a repetição de conduta criminosa do Estado brasileiro fartamente documentada nos ciclos violentos anteriores contra esse povo indígena, expondo parte das barbaridades vividas pela sociedade brasileira entre 2019-2022, que nos colocam em uma encruzilhada, pois ou mudamos agora a forma de atuar com a justiça de transição, ou estaremos fadados a repetir esse ciclo perverso de ataques à democracia, à cidadania e à vida em um futuro próximo.
Seria correto historicamente afirmar que uma das razões da repetição e da não efetividade da não repetição está na decisão do STF de reconhecer a anistia aos torturadores ao julgar a ADPF 153. Isso em relação aos crimes de lesa humanidade durante a ditadura militar. Contudo, em relação aos camponeses e povos indígenas, tanto antes como durante e depois, a não repetição (vale dizer a continuidade da criminalidade no campo e nas terras indígenas) também está ligada à não justiça.
Trabalharmos em duas frentes a justiça de transição, abordando em paralelo esses dois períodos, que se relacionam apesar da distância no tempo, nos fará destravar a responsabilização de quem cometeu esses crimes (eixo 2) e avançar na criação de mecanismos de não repetição (eixo 4), uma vez que nos possibilitará enxergar mecanismos e condutas similares usadas entre 1964-1985 e 2019-2022 que serviram ao cometimento de graves violações de direitos humanos, garantindo a impunidade e promovendo a repetição da violência em nosso presente, favorecendo um reposicionamento da atuação dos três poderes da república em defesa do Estado democrático de direito, da diversidade cultural brasileira e do respeito à condição pluriétnica existente em nossa sociedade.
Dos poucos mecanismos que a sociedade logrou construir no período da redemocratização até hoje, o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), por exemplo, criado somente em 2013, enfrenta em sua atuação a repetição constante da sabotagem do Estado para o desenvolvimento dos trabalhos de punição e erradicação da pratica de tortura no país, agravadas durante o governo Bolsonaro.
É preciso chamar a atenção também para a forma como várias forças políticas expressam a justiça de transição, sob o lema Memória, Verdade, Justiça e Reparação, que também deixa de lado o princípio da simultaneidade da aplicação dos 4 eixos, fundamental para obtenção de uma efetiva transição das práticas autoritárias enraizadas em nossa sociedade.
Nessa formulação a memória é tratada como um eixo em si e a busca da verdade outro, gerando uma deficiência na aplicação dos conceitos da justiça transicional, uma vez que fica de fora a não repetição como eixo a ser desenvolvido, com a falsa ideia de que a não repetição é resultado direto do desenvolvimento dos três eixos contidos no lema.
O Estado brasileiro precisa avançar na justiça de transição e romper com as resistências internas no Executivo, Legislativo e Judiciário, que produzem uma separação da aplicação de seus eixos de trabalho. Seguir atuando contra os crimes praticados na ditadura militar é fundamental, mas olhar para os crimes praticados no governo Bolsonaro é imprescindível.
Marcelo Zelic é membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e coordenador do Armazém Memória. Foi um dos responsáveis pela inclusão do estudo de graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas na Comissão Nacional da Verdade. Colaboraram com o artigo Ana Catarina Zema e Gilney Viana.
[1]Ver item 29 do relatório final da CNV sobre o histórico e a sentença do caso Gomes Lund x Brasil, denunciado em 1995 na Organização dos Estados Americanos (OEA). Disponível em: https://www.docvirt.com/docreader.net/ComissaoVerdade/5843
[2]Consulte no Armazém Memória a biblioteca com todos os relatórios produzidos pelas comissões da verdade instauradas no Brasil concomitantes à Comissão Nacional da Verdade. Acesso em https://www.docvirt.com/docreader.net/ComissaoVerdade/17803.
[3]Dados tabulados para a Comissão Camponesa da Verdade por Gilney Amorim Vianna, para reunião de 09/02/2023 e divulgados na carta convite do evento.