Mulheres Apinajé: saberes e conhecimentos através de gerações
As mulheres Apinajé atuam nas frentes culturais, territoriais, educacionais e sociais e para essa conversa apresentaremos uma linhagem de mulheres da aldeia São José liderada pela anciã Itelvina Dias, de 96 anos de idade reconhecida por todo o povo por ser uma das guardiãs da cultura
Amazonidas
Somos filhas da ribanceira Netas de velhas benzedeiras, Deusas da mata molhada,
Temos no urucum a pele encarnada,
Lavando roupa no rio, lavadeiras,
No corpo o gigado de carimbozeiras,
Temos a força da onça pintada,
Lutamos pela aldeia amada,
Mas, viver na cidade não tira o direito de ser,
Nação, ancestralidade, sabedoria, cultura,
Somos filhas de Nhanderú, Senerú, Nhandecy
O Brasil começou bem aqui […]
Não nos sentimos aculturadas,
Temos a memória acesa, E vivemos na certeza de que nossa aldeia
Resistirá sempre ao preconceito do invasor,
Somos a voz que ecoa.
Resistência? Sim senhor!
Márcia Wayna Kambeba
Este artigo se aporta no diálogo entre os saberes de mulheres não indígenas e indígenas, que acontece pela disponibilidade de troca e de aprendizagem. Vale dizer que as mulheres indígenas Apinajé são mulheres amazonidas que sofrem e lutam para a manutenção de seus territórios. As mulheres do povo indígena Apinajé salvaguardam e demonstram os saberes e conhecimentos através das gerações.
Essa troca de conhecimentos aconteceu na aldeia São José, uma das aldeias centrais por realizar as principais festas, reuniões e rituais. As mulheres dessa etnia passaram por várias mudanças socioculturais, políticas e educacionais ao longo das últimas décadas. Hoje elas estão ocupando funções de lideranças, participando de reuniões dentro e fora do território materno para resolver demandas sociais da etnia, como na área da saúde, da educação e territorial.
No território mencionado, várias aldeias são chefiadas por mulheres, mostrando as novas dinâmicas sociais e atuações políticas que elas estão exercendo no contexto atual. As mulheres organizam encontros e reuniões para fortalecer os conhecimentos tradicionais, saberes, rituais e atuações políticas. Um desses encontros é o Troca de Saberes, que ocorre com frequência e é sobre a quebra o coco babaçu, prática comum no norte do Tocantins, região conhecida como Bico do papagaio, território caraterizado por babaçuais. O objetivo do encontro é passar os conhecimentos tradicionais para as novas gerações, além de mostrar a importância do coco babaçu para a cultura. A palmeira e o babaçu são matéria-prima para a produção de: azeite de coco, carvão, coberturas das casas, artesanatos (abanos, esteiras, cofos) e outros utensílios para a cultura. Durante o encontro, as mulheres anciãs falam e mostram para as mais jovens o uso de cada utensílio feito das palmeiras e do coco babaçu, desde a retirada da mata até o produto final, como no caso do azeite de coco.
Durante os encontros, as anciãs repassam os conhecimentos das plantas medicinais, sementes e raízes para a geração mais jovem, explicam o uso de cada uma e o tempo certo de cultivar, além de trocar as sementes.
A liderança da aldeia São José, Itelvina Dias, de 96 anos, é reconhecida por todo o povo por ser uma das guardiãs da cultura e por deter conhecimentos e saberes tradicionais, como rituais de batizados e festas. Segundo Itelvina, atualmente os Apinajé não estão praticando todos os rituais e festividades da cultura, além de não cultivar as roças como antigamente.
Para as roças dar certo é preciso tratar bem as plantas para espantar o karõ, espírito que acaba com a roça. No meu tempo eu acordava bem cedo e ia cuidar da roça de toco, nós botava uma roça grande para todo trabalhar, plantava muita coisa: abóbora, batata, amendoim, feijão, arroz. (Anciã Itelvina Dias, 2019).
Ela também contou que, no seu tempo de mocidade, a festa da Tora Grande – um ritual que marca o fim do luto – era praticada seguindo todas as etapas: cantos, danças e pinturas. As festas duravam até trinta dias, pois as pessoas cultivavam uma roça extensa para alimentar todas as pessoas que participavam.
A festa da Tora grande era realizada com muita gente, todo mundo participava, criança, jovem e velho, nós passava a noite dançando e cantando hoje em dia os jovens não gostam de participar dos cantos da cultura (Anciã Itelvina Dias, 2019).
Os casamentos e batizados eram realizados seguindo os partidos da etnia que são o Kolti (Sol) e Kolre (Lua), os padrinhos colocavam o nome dos afilhados seguindo a tradição. Os casamentos duravam até dois dias, com muita festa, pinturas e comidas. Os casais eram aconselhados pelos mais velhos. Itelvina demonstra tristeza por ver vários conhecimentos e saberes da cultura deixando de ser perpetuado, mas quando tem oportunidade de falar com a comunidade aconselha os mais jovens a buscar esses conhecimentos.
Silvana Dias, neta de Itelvina, tem 42 anos é artesã, quebradeira de coco. Ela aprendeu com sua mãe e avó a quebrar coco babaçu, fazer carvão, produzir artesanato, colares e brincos de miçangas. Silvana não gosta de cantar e dançar nas festas culturais, mas participa dos eventos de trocas de saberes, confecções de artesanato e organizações das festividades.
Desde pequena, trabalho na roça com os meus parentes, cuido das plantas, faço carvão, e das plantas para remédio. Antigamente, nós plantava uma roça grande de arroz, feijão, milho, batata e fava. Hoje, as pessoas quase não botar roça de toco, mas quando dá certo eu boto com meu esposo. (Silvana Dias, 2019).
Atualmente, sua família planta poucos alimentos para o consumo, cultivando uma pequena horta no quintal e uma roça. Na confecção de artesanatos são as mulheres que ensinam para a geração mais jovem o manuseio desses artefatos. Silvana aprendeu a fazer abano, esteiras, cofos e outros utensílios da palmeira do coco babaçu com a sua mãe e avó, ela ensina seus/suas filhos/filhas, irmãs e sobrinhos/as a fazer artesanato. Contudo, muitas mulheres mais novas não têm interesse em aprender a produzir o artesanato da etnia Apinajé.
Os saberes e conhecimentos de plantas e raízes medicinais são mais comuns entre as mulheres anciãs. Silvana conhece algumas plantas e raízes e seus benefícios à saúde, mas sua mãe e avó que detêm esses conhecimentos. Ela costuma ir ao mato buscar coco babaçu e algumas raízes quando algum parente está doente e sempre menciona que sua filha adolescente não tem interesse em participar dos encontros, que ocorrem no território, para aprender sobre as plantas nativas, as medicinais e a dos cultivos nos quintais.
Delinan Dias, 31 anos, neta de Itelvina e irmã mais jovem de Silvana, percebeu que ainda é tempo de aprender e vem aprimorando seus saberes ao fazer esteiras e cofos com sua mãe, desde criança sabe fazer colares de miçangas, faz pinturas corporais em festas que ocorrem no território, como na corrida de Tora. Ela não aprendeu a quebrar coco babaçu e nem cultivar roças. Sua mãe a colocou para estudar, assim dedicava boa parte do tempo aos estudos e participações de eventos no território.
Trabalho na escola já um tempo, fui professora da língua e agora sou auxiliar administrativa. Aqui na aldeia gosto de jogar bola, assistir TV, cuidar da casa, fazer pulseiras, colares e anel. Vendo para algumas pessoas, quando tem festa em outra aldeia gosto de ir, meus filhos também gosta. Agora que tem internet na escola, ficou com gente se comunicar e ficar sabendo das notícias. (Delinan Dias, 2019).
A primeira filha de Delinan está aprendendo a fazer pinturas corporais com incentivo da mãe e aprendendo os cantos da cultura com sua avó, fazendo questão em participar das festividades no território. Ao acompanhar a família de Delinan na participação da festa da corrida de Tora em uma aldeia próxima da São José, ela fazia questão de explicar para os/as filhos/as mais jovens as etapas da corrida, desde a retirada da tora de buriti na mata até o momento final da corrida que encerrava com as brincadeiras no pátio da aldeia. Sua filha participou das danças e acolhimento dos corredores, além de pintar as pessoas kupẽ (não indígenas) que estavam prestigiando o evento. Delinan tem pouco conhecimento das plantas e raízes medicinais, sendo que conhece apenas as de fazer chás, as quais cultiva em seu quintal.
Na etnia Apinajé as diferentes gerações de mulheres possuem conhecimentos e saberes bem distantes em algumas situações. As mulheres anciãs, como Itelvina, são consideradas patrimônio imaterial por deter conhecimentos e saberes desse povo, como cantos, rituais, festas, cultivo e curas medicinais. Antigamente, as festas duravam vários dias, como a festa da Tora grande e casamentos, as roças eram cultivadas com mais expressividade, ocorriam cantos e veneração ao roçado, no dia das colheitas era organizada uma grande festa com toda a comunidade, onde havia comidas típicas da cultura, atualmente, vários pratos típicos não são preparados.
Os rituais de cantos duravam vários dias e toda a comunidade se juntava para cantar e dançar, alguns nomes Apinajé são predispostos para ser cantores, assim alguns homens e mulheres desde crianças aprendem os cantos da cultura.
Usar a metodologia da história oral de vida e realizar pesquisas de campo na aldeia e na cidade nos possibilitou vários olhares e percebemos as trajetórias socioespaciais e múltiplas funções que as mulheres exercem no território, delineando mudanças sociais no tocante de gênero na etnia Apinajé. As mulheres estão exercendo funções de chefia e buscando, através do estudo, exercer funções no território, como professoras, enfermeiras e dentistas. Elas estão saindo para outras cidades como: Araguaína (TO), Tocantinópolis (TO) e Goiânia (GO) para fazer cursos superiores, mostrando as novas dinâmicas e espacialidades.
Destacam essas mudanças de gênero nas culturas indígenas após os contatos interétnicos, nesse sentido, as mulheres indígenas Apinajé estão fazendo uso de tecnologia, itens da moda, produtos industrializados, produtos de beleza e outros elementos que fazem parte da realidade do contexto urbano, demostrando que as suas trajetórias socioespaciais na cidade, é marcada pelas compras recorrentes para o consumo.
Contudo, ainda no cotidiano da aldeia São José na Terra Indígena Apinajé, as mulheres e especificamente as mulheres da família da matriarca Itelvina, cuidam da casa, do quintal, das plantas, galinhas, patos e vacas. Elas fazem pulseiras, brincos colares, anéis, esteiras, cofo e abano, além de realizar um pequeno comércio na cidade e outras aldeias desses itens. O cuidado da roça é das mulheres, mais os homens que limpam e ajudam a brocar na época certa, algumas mulheres quebram coco babaçu, tiram azeite e fazem carvão, observei que Silvana realiza essas atividades em seu cotidiano na aldeia. Estabelecendo a dualidade de ser mulher indígena em contexto interétnico, intercultural e bilingue.
Kênia Gonçalves Costa, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura e Território (PPGCult), vinculada ao Colegiado de Licenciatura em Geografia e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Práticas e Saberes Agroecológicos (NEUZA) da Universidade Federal do Tocantins (UFT) Campus Araguaína. É doutora, Mestre, Licenciada e Bacharel em Geografia pela Universidade Federal de Goiás. Atua como docente/pesquisadora no curso de Licenciatura Intercultural Indígena (Núcleo Intercultural de Educação Indígena Takinahaky) e do Laboratório de Estudos de Gênero, Étnico-Raciais e Espacialidades (LaGENTE-IESA-UFG) da Universidade Federal de Goiás. Contato [email protected]
Carina Alves Torres, mestre do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura e Território, Universidade Federal do Tocantins, campus de Araguaína (PPGCult/UFT). Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Tocantins, campus de Tocantinópolis. Contato [email protected]