Mulheres pretas que fazem história
Dandaras, Octavias, Tulas, Edites, Elizandras e Glórias estão por aí se movimentando… Parafraseando Angela Davis, e assim, movendo todo mundo junto
Em uma cidade predominantemente masculina e branca, é de suma importância discutir os nomes dos logradouros e espaços públicos. Na Zona Sul de São Paulo, como o Campo Limpo e o Jardim Mitsutani, pode-se exemplificar a predileção por uns (sobretudo brancos) em detrimento de outras (especialmente, negras).
Entre a Avenida Cantos do Amanhecer, em homenagem à obra de estreia do poeta Virgílio Brígido, e a Rua Prudêncio do Amaral, poeta padre (ou padre poeta), há um equipamento educacional denominado homonimamente CEU (Centro Educacional Unificado) Cantos do Amanhecer!
São, aliás, duas referências masculinas, dentre tantas outras do entorno. Só no próprio Jardim Mitsutani (algumas): Rua Jorge Afonso (pintor português), Rua Domingos Sequeira (pintor português), Rua Michelângelo (pintor italiano), Rua Josep Bernard (escultor francês), Rua Zeferino Brasil, poeta gaúcho.
Patriarcais e – pasmem – muitas europeias, essas são denominações não muito antigas: cerca de 40 a 50 anos. A exceção, nesse bairro, desses homens masculinos é Koto Mitsutani. Mas não se enganem: a homenagem decorre mais de ser esposa de Magoichi Mitsutani, cujas terras loteadas originaram o bairro, do que por mérito da mulher em si!
Heranças do patriarcado (?)
Para ter uma ideia do quão patriarcal a cidade de São Paulo é, quando se trata do nome de rua (e, também de avenidas, viadutos, pontes e praças), segundo o Acervo Histórico Municipal, sobra homem e falta mulher. Existem cerca de 48 mil logradouros públicos, dos quais apenas 13% se dedicados a mulheres, muitas vezes santas católicas.
A seleção de santas na denominação de vias, por exemplo, vai muito além da tradição católica (religião predominante por muito tempo); ela diz mais sobre a rotulação do papel que se esperava da mulher (e que ainda se espera): o de submissão ao longo da História brasileira (e do mundo).
A desigualdade, facilmente observada no Dicionário de Ruas de São Paulo, pode ser explica pela mentalidade normalizada de ter o homem como figura central da sociedade ao longo dos séculos. (Mas isso ainda, suscita discussões: Roberto Marinho, empresário – não jornalista –, por exemplo, virou nome de uma via importante da capital em 2003.)
Essa mentalidade patriarcal persiste em nomeações recentes da região. Em relação aos logradouros do entorno: Conjunto Habitacional Monet (pintor francês), nos anos 1990, ou EMEF Jornalista Paulo Patarra; e ainda CEU Cardeal Dom Agnelo Rossi (religioso brasileiro, filho de italianos) – um dos primeiros CEUs da cidade.
Um cenário mais feminino e preto(a)
Na atualidade, o cenário tem mudado nas últimas décadas, especialmente, deste século. Referenciação feminina a equipamentos públicos tem sido mais frequente; ao mesmo tempo, tem-se buscado homenagear pessoas (especialmente mulheres) que têm a ver com o território em que se inserem os logradouros ou os estabelecimentos estatais.
Dona Octavia
No Jardim Maria Sampaio (bairro vizinho ao Mitsutani), há uma unidade educacional da rede estadual dos Anos Iniciais (1° ao 5° ano), que foi, justamente, denominada como Escola Estadual “Professora Octavia Candido dos Santos” (DECRETO Nº 62.685, DE 10 DE JULHO DE 2017).
Dona Octavia foi uma educadora negra cuja atuação como docente e, também, como vice-diretora da Escola Estadual Deputado Hugo Lacorte Vitale, teve suma importância para a comunidade escolar. Além de uma servidora pública exemplar, Dona Octavia se tornou uma referência para toda a comunidade do entorno.
O evento oficial ocorreu em 16 de setembro de 2017. Além da família, colegas de trabalho – as grandes idealizadoras –, amigos que abrilhantaram a solenidade, havia estudantes da unidade realizando apresentações, adolescentes de projetos de inclusão encantando o público presente e estudantes de escolas do entorno recitando poemas (inclusive da poeta e rapper Hayara Alves).
Marisa Dandara, Tula Pilar e Dona Edite: a trindade preta do CEU Cantos do Amanhecer
O CEU Cantos do Amanhecer tem três referências femininas: mulheres pretas, cujas histórias de vida, bem como seus trabalhos, inspiram mudanças necessárias para tornar o mundo melhor.
Um adendo imprescindível: poderiam ser quatro referências femininas e pretas no CEU Cantos. Rita – ou Ritinha, como carinhosamente todos a chamavam – ao falecer, motivou toda a comunidade escolar a se engajar na denominação da escola em sua homenagem.
A família, no entanto, ao saber que o sobrenome do então companheiro de Rita constaria do nome oficial do colégio, pediu para encerrar o processo (o que respeitosamente foi feito).
Marisa Dandara
Marisa Mateus dos Santos ou Marisa Dandara teve uma trajetória de lutas na região do Campo Limpo e do Município de Taboão da Serra. Marisa foi diarista, como muitas mulheres negras, mas, não aceitando a subalternidade que lhe foi imposta, tornou-se enfermeira e professora de Biologia.
Marisa virou Dandara. Fundou o Centro de Cultura Negra do Campo Limpo, foi membro atuante do CONEGRO de Taboão da Serra, uma das principais lideranças do feminismo da região, e também, uma referência na conquista de políticas públicas em prol da questão da Anemia Falciforme (que afeta de modo incisivo a população preta).
A Lei Nº 16.461, de 28 de junho de 2016, do município de São Paulo, denominou Teatro Marisa Dandara, “o próprio” do CEU Cantos do Amanhecer. A cerimônia de entronização da patronesse ocorreu em 24 de novembro de 2016, com representantes da gestora Maria de Fátima, mulher nordestina e grande idealizadora de tudo, da família de Marisa, do CONEGRO de Taboão da Serra e dos estudantes do CIEJA-Campo Limpo.
Tula Pilar
Tula Pilar Ferreira ou Tula Pilar foi uma das expoentes da literatura periférica paulistana. Escrevia seus poemas desde a adolescência, quando trabalhava como empregada doméstica; segundo relatos da própria Tula, havia patroa que, além de duvidar de sua competência poética, rasgava seus textos em verso e jogava fora.
Iniciou suas performances no Sarau da Cooperifa, quando ainda era em Taboão da Serra, mas ficou mais conhecida pelo engajamento no Sarau do Binho (os dois mais proeminentes do país). São de sua autoria muitos textos que inspiraram mulheres negras a escrever e declamar seus poemas.
Dentre as homenagens póstumas, há a AEL Tula Pilar, na EMEF CEU Cantos do Amanhecer, resultado do engajamento da professora da Sala de Leitura, Miran, da diretora Penha e da assistente de direção Cida, com amplo apoio de Elaine Lacerda, da Diretoria de Ensino de Campo Limpo, no ano de 2019.
Embora não esteja formalizada, sua primeira ação se deu naquele mesmo com ano, na Semana de Arte Moderna, por meio da encenação de A Comédia do Trabalho, sob a direção da professora Leila Jovino.
Dona Edite
Edite Marques da Silva ou como é conhecida nacionalmente, Dona Edite tem 82 anos. Sempre teve paixão por leitura, mas o destino quis que ela fosse perdendo gradualmente a visão entre a fase adulta e a meia idade, de modo que aos 39 anos praticamente não enxergava mais quase nada.
Deprimida inicialmente, Dona Edite redescobriu o prazer pela vida por meio do grupo de dança Flor de Lis, da Casa de Cultura M’Boi Mirim, e, depois, por meio da poesia. Passou a decorar e recitar poemas de autores do cânone, como Cora Coralina, e contemporâneos, como Sérgio Vaz.
As suas performances poéticas e a sua história de vida são inspiração pra muita gente. A professora Mirian (acompanhada pela Diretora Cida), da EMEF Cantos do Amanhecer, iniciou uma mobilização para denominar como Sala de Leitura Dona Edite o espaço escolar da unidade destinado a essas aulas, o que ocorreu em 31 de agosto 2022, durante a Semana de Literatura da escola: “uma homenagem em vida!”, como explica Mirian.
Elizandra Souza
Elizandra Souza é poeta, escritora, contista, editora e jornalista. Idealizou o Mjiba, fanzine de poesia, que circulou entre 2001 a 2005. A partir de 2007 passou a publicar seus livros, tornando-se, também, uma das idealizadoras do Sarau das Pretas e da editora Mjiba.
Uma das vozes mais promissoras da literatura brasileira contemporânea, Elizandra Souza tornou-se a patronesse da Academia Estudantil de Letras (AEL) da escola EMEF Jardim Mitsutani I – Jornalista Paulo Patarra. Empossada em 2024, a AEL da unidade já leva seu nome desde 2023, quando, durante a Semana Literária, foi formalizado o convite.
A professora Paula Gentil, da Sala de Leitura Maurício de Sousa, foi a principal idealizadora da fundação da AEL Elizandra Souza, tendo a adesão da professora Érica Ferreira e, também, de toda a equipe escolar. A solenidade de posse da AEL ocorreu em 06 de novembro deste ano.
Glória Maria
No Jardim Mitsutani, em 21 de novembro de 2023, na Semana da Consciência Negra, a prefeitura de São Paulo inaugurou o Centro Educacional Infantil (CEI), unidade educacional que atende ao público infantil de 0 (zero) a 3 (três) anos, denominando-o como Glória Maria.
Glória Maria foi uma jornalista negra, da rede Globo de Televisão, cuja atuação foi muito representativa, pela competência na cobertura de assuntos variados (inicia a carreira no contexto da Ditadura Militar – 1964-1985). Tornou-se uma referência negra para uma geração inteira, principalmente de mulheres pretas.
É a única das mulheres homenageadas que não pertenciam ao território. Mas a homenagem a Glória Maria, a despeito das pretensões políticas de quem a realizou, foi justa pela história de vida dela; bem recebida pela comunidade. Glória se juntou, nestas bandas da cidade, a mulheres guerreiras, que decerto admiraria caso convivesse.
Uma versão diferente da história
É inconteste que uma única versão da história não é benéfica para ninguém. A hegemonia – branca, masculina, europeia – fez mal a toda a humanidade (a começar pelos próprios homens brancos, que a despeito do poder exercido, perderam tantas outras possibilidades de desenvolvimento; inclusive, a de não matar o planeta e a espécie humana).
(Re)Contar a história por outros vieses, em especial negro e indígena, oportuniza a possibilidade de ampliar a visão de mundo. É necessário dar nome à essas mudanças; caso queiramos de fato, passar do atual estado de coisas para outros cenários mais promissores.
Começar pelo respeito ao trabalho que as mulheres realizaram e ainda realizam; desde o invisibilizado nas residências até os de protagonismos nos diversos campos de atuação (social, cultural, esportivo, empresarial, político, dentre outros), substituindo nomes e, verdadeiramente, se colocando à disposição de aprender é um passo.
O aniversário do Teatro Marisa Dandara foi no dia 24 de novembro, a festa aconteceu em 23 de novembro – na FEIRÁFRICA CEU Cantos do Amanhecer –, mas o melhor presente que podemos entregar à memória dessa grande guerreira é valorizar as contribuições negras e afro-brasileiras para nossa evolução pessoal e, por conseguinte, social.
Fábio Roberto Ferreira Barreto é professor da rede municipal de ensino e mestre em literatura pela USP.