Música negra para um mundo em chamas – 50 anos de ‘Expensive Shit’
Há algo de mais caro, mais nojento e mais obsceno que a prisão de um homem por fumar uma planta? Há algo mais imundo que um regime que vigia as fezes de seus artistas?
Há cinquenta anos, em uma cela abafada na Nigéria militarizada dos anos 1970, um homem prendia o próprio intestino por mais de dez dias. Acusado de posse de maconha, sem provas, vigiado por carcereiros do Estado, o músico Fela Kuti engole o suposto flagrante diante da polícia. Recusa-se a entregar seu corpo como prova. Recusa-se a ser humilhado. Quando finalmente excreta, o exame vem negativo. Dessa recusa nasce Expensive Shit, um dos álbuns mais subversivos da história da música popular africana. E uma síntese lírica de tudo que o capitalismo tenta apagar: a liberdade do corpo, o poder do som, a coragem da palavra.
O disco, lançado em 1975, continua a cheirar — não a excremento, mas a insurreição. Nas suas duas faixas, Fela transforma o cotidiano da repressão em ataque rítmico. Ele ri da polícia. Ele ridiculariza o Estado. Ele arrasta os tambores com a malícia de quem sabe que o corpo é território de guerra. Ele sopra o saxofone com a ira contida de um continente saqueado, vendido, colonizado e traído pelas suas elites. O título do álbum não é só provocação: é denúncia. Há algo de mais caro, mais nojento e mais obsceno que a prisão de um homem por fumar uma planta? Há algo mais imundo que um regime que vigia as fezes de seus artistas? A merda de Fela, então, não era dele: era a da própria sociedade. Ele apenas a devolveu.
Expensive Shit nasce no calor de uma Nigéria em transe. A ditadura militar que sucedeu a guerra civil e o colapso da república vivia do petróleo e da violência. Os generais, vestidos com suas fardas ocidentais e suas promessas nacionalistas, engordavam o Estado ao mesmo tempo em que matavam a alma do povo. Em vez de libertação, vieram a censura, a fome, a privatização dos sonhos. O capital internacional, ávido pelas riquezas nigerianas, penetrava pelas bordas dos novos bancos, das multinacionais, das igrejas evangélicas americanizadas. Enquanto isso, a música de Fela nascia da sarjeta, do gueto, do ritual. Não era música para consumo. Era música para guerra.
Mas era também música para o mundo. Fela Kuti ousou misturar. Misturou o iorubá com o inglês, o funk americano com os tambores ancestrais, o jazz com os rituais da aldeia. O afrobeat não nasceu puro: nasceu mestiço, elétrico, planetário. E foi nessa mistura que ele revelou o universal do dominado. Se a globalização prometia um mundo sem fronteiras, Fela mostrou que só há universalidade verdadeira quando ela nasce do chão, da terra, do som pisado com os pés nus. Sua música rompeu o cerco colonial que separava o que é “popular” do que é “erudito”, o que é “ocidental” do que é “africano”. Ele devolveu ao mundo uma África que não se curva — mas que dança.

Filho de uma militante feminista anticolonial e de um intelectual anglicano, Fela Anikulapo Kuti nasceu em 1938, na Nigéria colonial e se formou como músico em Londres, antes de se radicalizar politicamente nos Estados Unidos durante os anos 1960, em contato com os Panteras Negras. De volta à África, fundiu música e militância em um projeto de libertação cultural e política, criando o afrobeat como forma de insurreição estética. Sua obra, com mais de cinquenta álbuns, é atravessada por letras combativas, sátiras ao poder e exortações à consciência negra e à autonomia dos povos africanos. Fela não era apenas um artista: era um revolucionário que escolheu o palco como trincheira e o som como estopim.
Fela não apenas cantava contra o regime — ele o enfrentava com o próprio corpo. Foi preso mais de duzentas vezes, espancado, censurado, teve sua casa invadida e incendiada, viu sua mãe ser assassinada por soldados. Ainda assim, não recuou. Cada prisão era um disco novo. Cada agressão era transformada em batida. Cada perda era traduzida em brado. Sua arte não foi uma fuga da realidade, mas um mergulho feroz nela. Fela fazia da música uma crônica urgente do presente, onde cada nota era um protesto, e cada show, um levante. Ele transformou a dor em groove, a opressão em dança, a raiva em catarse coletiva.
Ao longo dos anos 1970 e 1980, Fela tornou-se a principal voz de oposição ao regime militar nigeriano. Seus discos, como Zombie, Coffin for Head of State e Sorrow Tears and Blood, expunham as vísceras do autoritarismo com uma franqueza que poucos ousavam. Criou uma estética política onde o sarcasmo, o ritual e o improviso se fundiam em performance. Em seus shows, não havia ensaio: havia transe. Não havia plateia: havia povo. Fela não queria plateia passiva, mas cúmplices na insurreição. Sua música ensinava a pensar com o corpo, a duvidar com os ouvidos, a lutar com os pés. O palco era seu quilombo. E o microfone, sua arma.
Fela fundou o Kalakuta Republic não como gesto performático, mas como necessidade vital. Criou um espaço onde pudesse viver com seus músicos, suas esposas, seus amigos e inimigos. Um espaço onde o som não fosse domesticação, mas convocação. Onde o corpo negro pudesse dançar sem pedir permissão. Onde as crianças pudessem ouvir a verdade sem a farda das escolas coloniais. Em Kalakuta, Fela fundou um país dentro do país — um país onde não havia bancos, mas havia batidas; onde não havia mercado, mas havia voz. Ele não queria fazer sucesso. Queria fazer sentido.
Por isso, Expensive Shit não é um disco apenas sobre um episódio caricato. É uma declaração política. É um tapa na cara do moralismo. É a ironia feita groove. É a linguagem da rua se vingando da linguagem do poder. Ao transformar a própria prisão em canção, Fela não buscava redenção: buscava contagiar. Sua música não quer salvar ninguém. Quer acordar. Quer irritar. Quer escancarar a farsa das elites africanas que, sob o discurso da modernização, apenas repetiam as práticas coloniais — agora com sotaque nigeriano, mas com alma europeia. Governantes negros, dizia Fela, podem ser tão brutais quanto os antigos colonizadores. E talvez até piores, porque agora falam a nossa língua.
Essa denúncia o insere de forma definitiva na história do movimento negro global. Como Malcolm X, como Angela Davis, como Abdias, Fela entendeu que não basta ter a pele negra — é preciso ter consciência de classe, e negra. Sua arte foi arma, sua voz foi martelo, sua banda foi quilombo. O que ele enfrentou na Nigéria era parte da mesma engrenagem que operava nas favelas do Brasil, nos guetos dos EUA, nas periferias de Joanesburgo. O racismo era global. A resposta precisava ser também. O afrobeat, então, tornou-se mais do que um gênero musical: virou linguagem insurgente da diáspora. Um idioma sem fronteiras para dizer basta.
Na outra faixa do disco, Water No Get Enemy, ele recita como quem reza. A água, diz ele, não tem inimigos. Ninguém pode viver sem ela. Todos a usam. Mas poucos a respeitam. A metáfora, longe de ser pacífica, é dura. O povo é como a água: explorado, necessário, esquecido. Podem tentar domesticá-lo, podem poluí-lo, podem vender sua força. Mas não podem extingui-lo. No coração do capitalismo, onde tudo vira mercadoria — inclusive os rios, os corpos, as almas —, a água resiste. E o povo também. A música vira o fluxo dessa resistência.
Cinquenta anos depois, Expensive Shit continua atual porque o mundo continua preso no mesmo banheiro. Os pobres ainda são criminalizados por existirem. A juventude negra ainda é perseguida por ser livre. O capital ainda transforma vida em lucro, som em produto, fé em mercadoria. A lógica da vigilância, do controle, da estatística, se refinou. O que antes era soldado agora é algoritmo. Mas a merda continua cara.
Fela Kuti ensinou que há mais verdade no ritmo do que no discurso. Que o corpo, quando dança, pode ser mais subversivo do que qualquer lei. Que a música pode ensinar a rir no escuro, a cuspir na cara do poder, a transformar vergonha em riso, riso em resistência. Expensive Shit é, ao fim, um manifesto de dignidade. Um lembrete de que o capitalismo pode nos tomar tudo — a terra, o tempo, o trabalho —, mas nunca conseguirá domesticar o som do tambor que pulsa de dentro.
Esse disco é um grito vindo do intestino do mundo. E, meio século depois, ainda fede — porque ainda é necessário.
Gabriel Teles é sociólogo.