Mutações na comunicação
O século XXI traz grandes transformações nos meios de comunicação. O controle sobre TVs, rádios e jornais por conglomerados empresariais que se pautam pela lógica do mercado. As novas tecnologias criam também espaço público para uma infinidade de iniciativas que desaguam, por exemplo, na internet
A realização da Iª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), pela mobilização política que já provocou, marca o início de um novo tempo na formulação de políticas públicas para as comunicações no Brasil.
As grandes mudanças que ocorrem hoje na própria organização capitalista dos meios de comunicação, implicam dizer que a democratização da comunicação não poderá reduzir-se, simplesmente, a reformas na configuração atual, posto que esta configuração atual já é ultrapassada.
Nos principais países capitalistas, o número de residências que ainda recebem apenas sinal de TV aberta é declinante, em alguns chega a zero. Em 2006, de um total, em todo o mundo, de 1,1 bilhão de residências com TV, 480 milhões já haviam aderido à TV paga1. Ao mesmo tempo, se expandem os novos meios. Em 2006, o número de assinantes de serviços de banda larga no mundo atingiu 276 milhões, sendo 55 milhões nos Estados Unidos e 27 milhões no Japão. No rastro da banda larga, a publicidade na internet subiu de 4,6% para 6,4% do bolo publicitário mundial total, entre 2004 e 20062. Além disso, as redes sociais já se tornaram um amplo espaço de práticas e consumo de entretenimento e acesso à informação (78 milhões de usuários do Yahoo!, em 2006), logo também de atração publicitária e arranjos de negócios.
No Brasil a TV paga só atinge 10% das nossas residências e a banda larga nem isso, embora cerca de 10 a 15% da população brasileira, sobretudo jovens, tenham acesso diário à internet, seja em casa, seja em lan houses, na escola ou no trabalho3.
A expansão desses novos meios em detrimento da TV aberta deverá se acelerar, como aliás já bem o sabem os empresários da radiodifusão4, induzindo novos agenciamentos sociais e culturais em amplas camadas da sociedade brasileira.
Os debates da Confecom deveriam, pois, mirar para a construção de um novo projeto democrático para as comunicações brasileiras. Um novo projeto teria que articular demandas históricas a novas demandas, gerando uma síntese que seria a contraposição democrática e popular ao atual programa do capital para as comunicações no mundo e no Brasil.
Emergência de um novo cenário
Quando pensamos em comunicações, a identificamos com a radiodifusão e telecomunicações – além da imprensa escrita. No entanto, os movimentos da cidadania que demandam a democratização das comunicações costumam ignorar as realidades políticas e econômicas das telecomunicações, restringindo suas demandas à radiodifusão. No geral, os críticos das atuais políticas de comunicação enfrentam o seu caráter unidirecional, monopolizado e tecnologicamente orientado para permitir a comunicação ponto-massa (uma emissora que fala para a multidão que ouve ou vê).
As comunicações são hoje compreendidas como um serviço de natureza pública, por isso fortemente regulamentado pelo Estado, quando não diretamente controlado, e fornecido pelo Estado. No Brasil, a rigor, esse modelo somente aportou nos anos 60 do século XX, consequência de nosso atraso econômico e social até então, tendo sido consagrado pelo Código de Comunicações de 1962.
A partir dos anos 80, o modelo começará a ser submetido a poderosas pressões reformistas. Na origem dessas pressões estão as próprias mudanças profundas que se dão no padrão capitalista de acumulação: o regime dito “fordista” é ultrapassado por um novo regime de acumulação, denominado “flexível” por alguns autores5, “informacional”, por outros6, ou ainda “reticular” por terceiros7. Seja qual for o nome e seus significados teórico-metodológicos, é fato que o capitalismo mudou e, no arrastão da mudança, levou consigo aquele velho modelo de comunicação que ele mesmo elaborara nas primeiras décadas do século passado.
Novas condições econômicas e culturais permitiram emergir um novo padrão nas comunicações baseado na audiência fragmentada, na pluralidade da oferta e, até certo ponto, na interatividade. Para suportar essas novas condições, desenvolveram-se as tecnologias digitais, as transmissões via cabo ou satélite e, mais recentemente, as comunicações portáteis e móveis em tecnologia “celular”. O somatório dessas condições e processos será o fenômeno conhecido como “convergência digital” ou “convergência de mídias”, extinguindo as distinções entre “telecomunicações” e “radiodifusão”.
O processo produtivo (logo, econômico) das comunicações envolve três etapas bem distintas: produção e organização de conteúdos; emissão, transmissão e entrega desses conteúdos organizados; desenvolvimento, fabricação e venda dos equipamentos e sistemas necessários ao processo.
No modelo anterior, essas etapas podiam estar integradas e verticalizadas – e, geralmente, o eram. Nos Estados Unidos, por exemplo, o monopólio da AT&T controlava diretamente a pesquisa, a fabricação e a operação dos seus sistemas, daí a prestação de todos os serviços de telecomunicações fornecidos sobre eles. O fabricante de rádios e sistemas Westinghouse era sócio da cadeia de radiodifusão NBC. No Brasil, a rede Globo e outras redes de televisão se ocupavam e se ocupam de todas as fases intrínsecas à produção do seu negócio: produção de programas, organização da programação, emissão e transporte. Só não se envolvem na produção dos equipamentos.
No modelo emergente, está ocorrendo uma mais clara divisão de trabalho entre os vários agentes, coerentemente às novas condições do capitalismo “flexível”. É claro que esses agentes atuam de maneira articulada e até coordenam suas ações, mas constituem, cada um, campos empresariais e de poder político distintos, às vezes contraditórios.
A indústria de tele-equipamentos é um ator decisivo já que desenvolve as soluções tecnológicas que permitirão o acesso aos conteúdos. A indústria de telecomunicações encarrega-se do transporte e da entrega do sinal e quase sempre do “empacotamento” daqueles conteúdos. Com isso, os grandes produtores e programadores de conteúdos “liberam-se”, por assim dizer, da “necessidade&r
dquo; de deter algum canal de transmissão. Os maiores produtores mundiais, hoje em dia, como o grupo Time-Warner, o Disney ou a alemã Bertelsmann, não detém meios de transmissão: seus diversos canais de programação chegam às suas enormes audiências em todo o mundo através das redes de cabo ou satélite da Comcast, da Sky ou, no Brasil, entre outras, da Net. A BBC não detém o seu canal de transmissão, logo não é mais uma emissora: sua programação chega à sua audiência através dos canais da Crown Castle. Tanto quanto o Yahoo!, Google ou Microsoft não precisaram controlar redes de banda larga para se tornarem os maiores conglomerados de internet8.
Numa ponta, a produção de conteúdos pode ser plural, até infinita. Qualquer um pode virar produtor. O número mundial de blogueiros já ultrapassa 100 milhões. É cada vez mais fácil produzir e programar para WebTV ou Webrádio, sem necessidade de licenças estatais. Pode-se afirmar que, hoje em dia, desde grandes organizações como a FIFA ou, no Brasil, o “Clube dos 13”, até um professor em sala de aula, um padre em sua igreja, um especialista palestrando em algum auditório, um grupo de moradores reunidos em sua associação de bairro, sem esquecer obviamente os estúdios de Hollywood ou o Projac da Globo, pode-se afirmar que todos somos produtores de conteúdos para transmissão por algum meio.
Na outra ponta, a audiência pode dispor de uma quase infinita gama de escolhas. Ela se fragmenta e se segmenta nas possibilidades de navegar pela internet e escolher sítios ou blogs da preferência de cada um, nas centenas de canais especializados de televisão (notícias, filmes, documentários, esportes, femininos, masculinos, infantis etc.), nos canais de “vídeo sob demanda” (VSD) e, cada vez mais, nas possibilidades abertas para a recepção e mesmo interação em trânsito através do “celular”, do iPod ou do iPhone.
A má notícia é que ainda não existe almoço grátis. Esta aparentemente infinita liberdade mediática continua sendo organizada pelo capital para gerar lucros para o capital. É necessário comprar, da indústria fabricante, aparelhos terminais de acesso, fixos ou móveis (televisores, computadores, “celulares”), para tanto produzir quanto receber essa profusão de conteúdos. E esses aparelhos são vendidos a diferentes preços, pois cada preço corresponde a possibilidades maiores ou menores de produção e recepção de conteúdos pelos seus usuários. Logo, já se começa a perceber aí uma distinção por renda das pessoas interessadas, no limite excluindo os sem-renda. No Brasil, a maioria…
É necessário também assinar algum serviço de acesso: TV por assinatura, serviço de banda larga, serviço móvel celular etc. Os preços podem não ser “módicos” – e, no Brasil, não são – além de, mais uma vez, poderem ser diferenciados conforme as possibilidades do “pacote”, assim também distinguindo as classes de “consumidores” e os não consumidores…
Por fim, boa parte dos conteúdos chega até os usuários apoiada por publicidade, sobretudo quando são conteúdos ditos “grátis”. Já era assim na radiodifusão comercial. A aparência gratuita e livre encobria e encobre o custo publicitário embutido nos preços dos produtos, logo pago por todos os “consumidores” e, mesmo, pelos não-consumidores – preço esse pago exatamente na forma miserável de exclusão do consumo por falta de renda para comprar algo cujo preço unitário é majorado pelo custo publicitário embutido.
Seja para alargar a rede de assinantes, expandir as vendas de aparelhos terminais ou, pura e simplesmente, seduzir anunciantes, toda aquela cadeia produtiva precisa de audiência. Precisa que os conteúdos oferecidos sejam capazes de chamar a atenção ou o interesse de milhões de pessoas, número que deve ser tanto maior, quanto mais essa audiência de milhões divide-se e subdivide-se por centenas e centenas de canais de TV, portais de internet, sítios de relacionamento etc. Por isso, a cadeia funciona também como filtro, filtro social, filtro político. Por um lado, ela tem interesse em atrair a maior quantidade possível de produtores de conteúdo e promover aqueles produtores cujos conteúdos sejam “monetizáveis”. Na outra ponta ela quer vender para quem tem poder de compra, para quem também pode se tornar “consumidor” dos produtos, das marcas, dos espetáculos que anuncia, divulga, dissemina.
Direito negado
Essa nova organização produtiva das comunicações revogou o princípio de serviço público que, mal ou bem, norteavam as leis e normas vigentes até os anos 80 do século XX. Não por acaso, em todo o mundo, inclusive no Brasil, assistimos, ao longo da década 1980 e 1990, a substituição da legislação existente desde os anos 1920 (no Brasil, desde 1962) por novas legislações de natureza “neoliberal”. O objetivo dessa novas regras (no Brasil, a Lei do Cabo de 1995 e a Lei Geral deTelecomunicações, de 1997) tem sido o de abolir as amarras que controlavam os monopólios ou oligopólios, inclusive os estatais ou públicos, deixando-os livres para se inserirem nessa nova organização dos negócios, conforme suas possibilidades e seus interesses, bem como, principalmente, permitir a emergência e consolidação de novos e poderosos “global players” (Google, Microsoft, News Corp, Time-Warner, Telefônica, TIM etc.) .
O primeiro desafio que está posto é recuperar o princípio de serviço público, logo o direito à comunicação, que vem sendo posto de lado pelas novas regulamentações. O segundo desafio, decorrente do anterior, é construir uma proposta que leve em conta essa nova configuração capitalista do processo de produção e distribuição de conteúdos.
Não cabe mais insistir num modelo superado. Seus problemas não derivam de “desfuncionalidades” ou “falhas” que poderiam ser corrigidas pela regulamentação pública. Essa não passa de uma visão funcionalista que ignora estarem os meios de comunicação e sua lógica produtiva a serviço do capital ou dos estados capitalistas, tendo lhes servido muito bem durante muitas décadas. No Brasil, foi um modelo bem-sucedido, para os seus propósitos, ao longo dos anos 1970-1990. Hoje em dia, a crise (em geral dissimulada) das emissoras de TV aberta e o medo explícito que revelam diante do “avanço das teles” atestam o seu esgotamento9.
Para garantir o direito à comunicação será necessário construir um novo marco normativo que, nas condições brasileiras, assegure uma espécie de “direito de passagem para os conteúdos “não-monetizáveis”, isto é, para toda aquela produção de origem popular que expressa a criatividade e diversidade cultural do nosso país e, sobretudo, a resistência de amplos segmentos do povo na redução de sua cultura aos limites estreitos e vulgares do mercado. Para isto, será necessário:
1) Estabelecer clara distinção normativa e empresarial entre os segmentos voltados à produção e programação de conteúdos e os segmentos voltados para o transporte e entrega de conteúdos. Não poderia haver, nem explícita, nem implicitamente, relações associativas entre um segmento e outro, inclusive nas frequências abertas (como já acontece no Reino Unido e em toda a Europa). Aliás, atualmente no Brasil, muitas emissoras de TV estão se tornando apenas programadoras e transportadoras, vendendo seus espaços para leilões de tapete, pastores eletrônicos etc.
2) Estabelecer que haverá uma ou mais de uma redes em regime público (estatais ou concessionárias privadas), inclusive no espectro aberto e no “celular”, submetidas, por isso, não apenas a obrigações de universalização e modicidade tarifária, como as de assegurar passagem para a produção e programação popular, comunitária, público-estatal, comercial independente etc., conforme cotas a serem definidas em lei e nas condições permitidas por plataforma (por exemplo, 33% das bandas de espectro; ou 1 para cada 10, ou 20, ou 30 canais no cabo ou satélite; ou 10% ou 20% ou 30% dos espaços de telas dos grandes portais comerciais; etc.).
3) Estabelecer que o Estado fomentará, financiará, apoiará, incentivará, defenderá, a produção popular, comunitária, comercial independente (em especial de pequenas e médias empresas), público-estatal para que possam adquirir reais condições de competir com a grande produção comercial nacional e estrangeira.
4) Estabelecer que vale para as “novas mídias” os mesmos princípios constitucionais que já valem para a radiodifusão, inclusive os de natureza cultural, educacional e ética previstos no artigo 221, para cuja observância se definirão os necessários mecanismos de controle social.
Para que não se repita, neste novo cenário em expansão, o destino da radiodifusão nos anos 1920, os movimentos populares precisam entender as transformações em curso e se prepararem para nelas intervir politicamente.
Até meados da década de 1920, o acesso ao espectro de radiofrequências era totalmente livre e mais de 6 milhões de pequenas rádios individuais, depois conhecidas como “radioamadoras”, chegaram a funcionar nos Estados Unidos.
Observando isso, Bertold Brecht propôs a organização de um sistema público de radiodifusão que consolidasse esse emprego interativo e radicalmente democrático da então nova tecnologia. O capital e o Estado capitalista trataram de abortar o processo, estabelecendo o modelo que conhecemos até hoje. Só que, hoje, os movimentos populares têm mais organização, experiência, participação e consciência do que naqueles tempos. Amplos e diversificados setores e segmentos sociais querem também se apropriar dos meios para, com eles, aprofundarem a democracia numa direção contrária à do mercado. A hora é agora. As condições estão dadas. Mas é necessário bem entendê-las.
*Marcos Dantas é professor na Escola de Comunicação da UFRJ. Doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, membro do Conselho Consultivo da Anatel e do Comitê Gestor da Internet-Brasil.