Na Dinamarca, a social-democracia à prova
O milagroso sistema social dinamarquês, que equilibrava o país entre a flexibilidade para o empregador e a seguridade para o assalariado, não consegue se sustentar diante da pior recessão econômica desde 1930. Desemprego, restrição de direitos trabalhistas e discursos anti-imigrantes formam o conturbado quadro nacional
Vista do resto da Europa, a generosidade do Estado dinamarquês é de dar inveja: todo recém-nascido tem vaga garantida nas creches a partir dos seis meses de idade; a saúde é gratuita; os idosos recebem cuidado em domicílio; e os jovens têm direito a cinco anos de subsídio para seus estudos, aos quais se acrescenta, não importa qual seja a condição social de seus pais, um ano sabático, seja para descobrir o mundo ou, com mais frequência, para um reforço escolar para entrar na universidade.
A crise econômica mundial, porém, veio sacudir esse paraíso. A seguridade social, remédio milagroso contra o desemprego, conseguirá proteger os dinamarqueses contra a pior recessão que já enfrentaram desde a década de 1930? Bem, eles acham que é possível, caso consigam manter o melhor de dois mundos: flexibilidade para o empregador e seguridade para o assalariado. O patrão dinamarquês, assim como seu homólogo americano ou britânico, pode, sem prazo, indenização ou plano social, demitir seus empregados. Mas estes têm a garantia de receber uma compensação do Estado durante pelo menos quatro anos: ter acesso, se necessário, a uma formação profissional personalizada; e até mesmo de manter a forma física em uma academia de ginástica, como na agência de emprego Sydhavnen, em Copenhague.
Até o ano passado, o sistema funcionou sem grandes apuros e o desemprego seguia uma linha decrescente. Mogens Lykketoft, inventor do sistema quando era ministro das Finanças e, atualmente, deputado social-democrata no Folketing (o parlamento dinamarquês) é categórico: “É um sucesso, pois as empresas não hesitam em contratar. Sabem que podem se desvencilhar da mão-de-obra desnecessária sem prazo nem custos”.
De fato, quando o sistema foi implantado, em 1994, a Dinamarca contava oficialmente 300 mil desempregados (10% da população ativa). Sete anos mais tarde, eles eram menos de 100 mil e, em 2008, a cifra caiu para 47 mil. Isso, claro, antes que a crise mundial atingisse as margens do Báltico.
O International Institute for Management Development (IMD) da Suíça fez uma enquete, este ano, com 4 mil executivos de 57 países para seu World competitiveness yearbook 2009. Resultado: a Dinamarca é vista como o paraíso patronal, tanto pelo liberalismo de seu governo como por seu bom ambiente de negócios e sua paz social. A revista norte-americana Forbes1 a classifica como “o melhor país para os negócios”, antes dos Estados Unidos, segundo as empresas consultadas.
Os assalariados também não estão descontentes. De acordo com uma pesquisa realizada em 2006 pela Eurofound,2 uma fundação de Bruxelas encarregada de acompanhar a situação social na União Europeia, os assalariados dinamarqueses aparecem como os mais “satisfeitos” com sua situação, entre os dos 27 países-membros.
É compreensível. O pleno emprego é quase garantido e os salários aumentam rapidamente (4% em 2007-2008, logo antes da crise). “A flexisseguridade, como a chamamos, foi desenvolvida em um período de expansão, e essa é uma das razões de seu sucesso”, admite Holger K. Nielsen, presidente do Socialistisk Folkparti, agremiação política mais à esquerda.
Dependente do comércio internacional
Com o colapso mundial, a “flexisseguridade” começa a entrar em descompasso: a flexibilidade acelera enquanto a seguridade recua. Com 5,6 milhões de habitantes, a Dinamarca está forçosamente aberta e muito dependente do comércio internacional. Ou seja, muito vulnerável frente à recessão mundial.
Em 2007, o país exportava metade de seu produto interno bruto. “A exportação é o setor que dá o tom aos outros, nas negociações sociais”, explica Klaus Rasmussen, da Danish Industry, a principal organização patronal. E sua música não é nada harmoniosa para os assalariados do setor privado, os mais numerosos. A atividade no setor diminuiu cerca de 20% no último ano e o número de falências bateu novos recordes, mês após mês. A mais espetacular foi a que levou ao chão a companhia aérea de baixo custo, Sterling Airways.
Outras empresas também estão recolhendo a vela, diminuindo os efetivos e cortando custos considerados supérfluos – nos 500 navios pertencentes à Maersk, desde o dia 1º de janeiro os marinheiros não têm mais direito a toalhas de papel. Em um ano, o desemprego mais que dobrou, atingindo 107 mil pessoas em julho de 2009, principalmente operários. Na construção civil, setor bastante debilitado, 27% dos pedreiros e 13% dos pintores estão sem trabalho, segundo a Federação Unida dos Trabalhadores Dinamarqueses (3F), que constata uma queda de 4% em seus afiliados desde janeiro de 2008. Em oito meses, o número de jovens com menos de 24 anos desempregados quadruplicou, segundo a Agência Nacional do Emprego (AMS), encarregada da política de emprego.
Na Dinamarca e na Suécia, ainda se aplica o velho modelo voluntarista: a adesão a um seguro-desemprego continua sendo facultativa. E como atingiram quase o pleno emprego no boom dos anos 2000, muitos jovens não acharam útil aderir. No fim do primeiro trimestre de 2009, 16 mil deles estavam sem emprego e sem seguro, o que equivale a três vezes mais que aqueles que tinham direito a ser indenizados. Eles tiveram de se contentar com a magra ajuda pública.
As negociações salariais iniciadas em março não anunciaram nada de bom. Segundo fontes patronais, no setor privado, um em cada dois assalariados não recebeu aumento em 2009, e um em cada três terá de aceitar o congelamento do salário.
Para o Conselho Econômico, isso se traduzirá por uma baixa do poder de compra da ordem de 2%. Muitos jovens casais que se endividaram para adquirir a casa própria veem a situação como uma catástrofe: as penhoras bateram, em maio, um recorde que não se via há 15 anos.
De acordo com o Danske Bank, maior banco do país e segundo da Escandinávia, os preços dos imóveis devem diminuir em 2009, “perto de 10% para as casas e o dobro disso para os apartamentos”3, o maior recuo na Europa depois da Grã-Bretanha e Irlanda. O jovem ministro dos Tributos, Kristian Jensen, número três do governo, pretende ser intransigente: o gabinete não fará nada em relação aos infelizes proprietários. “Eles vão ter de se virar”, deu a entender. Mais um sinal de que o Estado dinamarquês não é mais o que era antes.
Para o governo de centro-direita, que está no poder desde 2001, a principal ameaça é mesmo a financeira. A reforma fiscal, a ser aplicada em 1º de janeiro de 2010, baixa os impostos diretos, mas adia a alta para data indeterminada. De qualquer maneira, muitos encargos extras virão pela frente para famílias que já suportam uma taxa sobre mercadorias e serviços de 25% e que, em contrapartida, deveriam receber um modesto cheque anual equivalente a 100 euros por adulto e 40 euros por criança.
Essa estranha reforma fiscal que, segundo o planejamento, deve cobrir um déficit de 15 bilhões de coroas até 2015, claramente fragiliza mais um pouco o Estado, mas com a vantagem de agradar aos eleitores de direita e prepara o terreno para as próximas eleições legislativas, em novembro de 2011.
O governo de Loekke Rasmussen, composto por ministros liberais e conservadores, é minoritário no Parlamento. Sempre lhe faltam 25 votos para obter maioria, que são regularmente fornecidos pelo Dansk Folkeparti (DFP), o Partido do Povo Dinamarquês. Situado à direita do tabuleiro, esse partido explora, sem vergonha, a xenofobia, a hostilidade à União Europeia e a defesa dos aposentados. Morten Messerschmidt, 28 anos, seu cabeça de chapa nas eleições europeias do dia 7 de junho, denuncia a imigração como a maior ameaça contra o modelo social dinamarquês: “Nós devemos protegê-lo, pois somos um país pequeno, e nossa identidade é especial”, explica ele no Berlingske Tidende, um jornal diário conservador fundado há 260 anos. O discurso funciona: ele foi o candidato que recebeu mais votos.
O DFP não precisa de ministros para estar no poder. A Dinamarca manteve um regime parlamentar, em que o Poder Legislativo dá o tom ao Executivo. Tudo acontece no Folketing e em suas 25 comissões parlamentares, onde são tomadas as decisões que os ministros devem executar à risca. “Nas reuniões ministeriais da União Europeia, o ministro dinamarquês deve ater-se às suas instruções, e apresentar-se à comissão do Folketing para mudá-las”, explica Gunnar Rieberholdt, ex-embaixador da Dinamarca em Paris e um dos artífices da adesão dos três países bálticos ao bloco, em 2004.
Nada mais simples para o DFP, com sua situação de grupo de intermediação no Parlamento, que multiplicar os golpes baixos e as provocações contra os 401.771 imigrantes recenseados em 1º de janeiro de 2009 e os dinamarqueses originários de países muçulmanos, da Turquia ao Paquistão ou à Somália, que chegaram no fim dos anos 1960 como refugiados políticos. Agora, uma obsessão habita o DFP: restringir por todos os meios o acesso dos imigrantes à proteção social. Desde 2002, a esposa de um imigrante perde seus direitos sociais se não tiver trabalhado pelo menos 300 horas em dois anos. Pretexto invocado: a libertação da mulher muçulmana da tutela de seu marido. Certamente com o objetivo de libertá-la ainda mais, o governo quer agora impor 450 horas!
O acesso à nacionalidade dinamarquesa é quase fechado. São necessários de nove a dez anos de permanência antes de poder candidatar-se e submeter-se a provas aprofundadas de dinamarquês. Em 2002, sob a influência do DFP, o Parlamento fez com que os exames se tornassem mais difíceis. Tanto é assim, que um teste organizado pelo Berlingske Tidende mostrou que um em cada dois dinamarqueses “originários”, formados no ensino secundário, é reprovado no exame. Registra-se também o endurecimento da política de reunificação familiar: o marido ou a esposa deve ter pelo menos 24 anos e “uma relação mais forte com a Dinamarca que com o país de origem do cônjuge”. Medida após medida, o governo reinventa a cada dia o estatuto dos metecos da Roma antiga, sob pretexto de coesão social.
Ravi Chandran, que chegou de Cingapura em 1992, e hoje é responsável por uma ONG especializada na ajuda às vítimas da Aids oriundas de minorias étnicas, conta as frustrações dos “new danes”, aqueles que não têm olhos azuis e cabelo louro: “Eles nasceram e se criaram aqui: a Dinamarca é seu único país, eles não têm outro.
Porém, eles ouvem os pais se queixando da sorte e veem a televisão compadecer-se da morte violenta de um dinamarquês de ascendentes dinamarqueses, enquanto ignora a dos outros. Eles se sentem batendo contra uma parede de vidro. Então, de tempos em tempos, isso explode, como em fevereiro de 2008, em Noerrebro!4”. Lally Hoffmann, jornalista de destaque e especialista em política estrangeira da TV2, a rede pública de televisão, mostra-se desolada com o clima de intolerância: “Eu não reconheço mais a Dinamarca da minha infância, sua imagem no mundo está muito degradada”.
O peso da extrema-direita
Uma crise revelou aos olhos do mundo e da Europa o peso da extrema-direita dinamarquesa no governo do país: as caricaturas do profeta Maomé publicadas por um jornal local, o Jylland-Posten, no fim de setembro de 2005. “O problema não foi a publicação, mas a recusa, por quatro meses, do então primeiro-ministro Anders Fogh Rasmussen, hoje secretário-geral da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), em receber os embaixadores dos 12 países muçulmanos que queriam conversar com ele”, explica Toeger Seidenfaden, editor-chefe do Politiken, o grande jornal dinamarquês que defende, quase sozinho, com unhas e dentes, a linha liberal tradicional.
Longe de ser uma ação desastrada, a recusa de Rasmussen foi deliberada, e a defesa da liberdade de expressão era apenas um pretexto que mal dissimulava o que era um segredo de polichinelo nos meios políticos de Copenhague: Pia Kjaersgaard, ex-assistente em domicílio, eleita para o Folketing em 1984 e todo-poderosa dirigente do DFP, havia vetado a audiência.
Diante das tendências direitistas da opinião pública, a esquerda fica pouco à-vontade. Social-democratas, socialistas e social-liberais hesitam em contestar com muita firmeza a política xenófoba da maioria. “O governo foi eleito e reeleito nos acusando de ser complacentes com os estrangeiros”, defende-se Mogens Lykketoft, que perdeu a presidência do Partido Social-Democrata em novembro de 2007. “Nós temos muito trabalho a fazer: é necessário que os dinamarqueses lembrem que a esquerda sempre foi melhor que a direita no plano social. Mas isso ainda não aconteceu.”
Existe consenso para ampliar o modelo social dinamarquês? “Em duas gerações, uma infeliz faixa de areia na periferia da Europa tornou-se um país de fartura”, escreve Knud J. V. Jesperen, o historiador oficial da rainha da Dinamarca, a popular Margrethe II, em seu livro clássico sobre o país.4 A igualdade de outrora deu lugar a um sentimento novo: o egoísmo da classe média, que não quer mais pagar “para os outros” e reclama a plenos pulmões uma baixa nos impostos. Ela já foi parcialmente satisfeita com a reforma fiscal, mas não irá parar aí. No fim de maio, os 98 prefeitos do país dilaceraram-se na partilha fiscal imposta às comunas mais ricas em benefício das menos abastadas, e 40 deles exigiram uma revisão para limitar essa benfeitoria. Indignados, 27 prefeitos de comunas pobres pediram que a proposta fosse retirada.
Definições no horizonte
Ao mesmo tempo, o Cepos e o Coin.dk, filiais de think tanks neoconservadores norte-americanos, estabeleceram-se em Copenhague e popularizaram a baixa dos impostos como solução para todos os problemas.
As empresas também se esquivam do jogo fiscal. O imposto sobre os benefícios das companhias foi reconduzido a 25%. Quase não há imposição sobre o capital e o patrimônio e as famílias arcam com o essencial do financiamento das despesas sociais, por meio de impostos indiretos particularmente pesados, que explicam o alto custo de vida no país.
Como nem a direita nem a esquerda consideram pedir um esforço extra, o estreitamento do Estado se anuncia, inelutavelmente, no horizonte. O governo atual pretende reduzir de quatro para dois anos o período de seguro-desemprego, que já teve teto estabelecido em 2 mil euros por mês, em 2006. Em função da crise, a proposta saiu de cena por tempo indeterminado. “Podemos adiar o problema em alguns anos, não é o momento de mudar as coisas”, admite K. Rasmussen, da organização patronal Confederation of Danish Industry.
Há outros meios que não a redução de serviços para gastar menos: a seguridade do emprego. “Em 1993, houve uma ruptura ideológica”, analisa o professor Jorgen Goul Andersen, da Universidade de Aalborg, no centro do país. “A seguridade social parou de ser prioridade, em prol de outro objetivo, a redução do desemprego estrutural.” Houve um endurecimento das condições para receber a indenização de desemprego e multiplicaram-se as obrigações (encontrar pelo menos quatro empregadores por semana, participar de atividades de formação, não faltar aos encontros com o job officer, aceitar mudar de residência e de função etc.). Assim, se inicialmente, no espírito de seus promotores social-democratas, essa política deveria permitir requalificar a mão de obra, ela acabou se revelando um estratagema para obrigar os desempregados a arrumar o mais rápido possível um trabalho. O workfare (bem-trabalhar) substituirá o welfare (bem-estar) no modelo social dinamarquês de amanhã?
*Jean-Pierre Séréni é jornalista.