Na Flórida, muitas maneiras de recomeçar
Sem emprego e despejada de suas casas por não pagar a hipoteca, parte da população dos Estados Unidos busca meios para sobreviver à crise econômica. De plantação de maconha à fundação de um movimento de ocupação de prédios inspirado nos sem-terra do Brasil, tudo aparece como alternativa para superar as dificuldades
É um casarão de cartão postal: tem garagem, gramado para churrasco e mastro para hastear a bandeira dos Estados Unidos. Uma residência como milhares de outras em Lehigh Acres. “À venda”, anuncia a placa na entrada. “Invendável”, corrige Tom1, um risonho colegial de 17 anos. O gramado está coberto de lixo, e a porta da garagem foi substituída por um tapume improvisado. Quanto ao mastro, ele não ouve mais o estalar das cores vermelha e azul desde que o banco despejou seus proprietários, em 2007. De lanterna na mão, Tom dá a volta na casa e para diante de uma janela bloqueada com duas tábuas em forma de cruz. “Vem, é por aqui.” Assoviando, ele levanta uma das ripas e desliza pra dentro da cozinha.
Um forte odor de mofo recebe os visitantes: é vestígio da inundação que aconteceu quando a pia foi arrancada, no dia do despejo. “Meu tio e a mulher dele quebraram tudo quando foram embora”, explica nosso guia. “Todo mundo faz isso, é normal. É a única maneira de se vingar um pouco desses salafrários dos banqueiros.”
Descoberta pelo feixe luminoso de sua lanterna, uma página de calendário representando um pôr-do-sol em uma praia da Flórida repousa entre os escombros. Atrás da cozinha, uma escada conduz a um pequeno porão, onde Tom revela seu pequeno empreendimento: dez plantas de cannabis regadas por um gotejador e iluminadas por lâmpadas fluorescentes.
“É uma época formidável para fazer negócios. Nunca passei por um período tão excitante!”, regozijava-se o bilionário Donald Trump, no dia 15 de abril, na rede de televisão CNN. O fato de que a crise oferece oportunidades a quem sabe aproveitar também não escapou a Tom, que reivindica ser um “jovem empreendedor independente”. Seu pai, técnico de construção civil, perdeu o emprego depois que Lehigh Acres, o interminável subúrbio de Fort Myers, na costa oeste da Flórida, se transformou em uma zona em declínio. Sua descida ao inferno dos embargos imobiliários chegou a receber até as honras da imprensa nacional. “Seja bem-vindo ao sonho americano, mas em marcha a ré”, ironizou o New York Times.2
Todavia, durante o boom especulativo do início dos anos 2000, as casas ali eram disputadíssimas. “Não era um subúrbio, mas uma cidade cogumelo, que passou de 30 mil para 80 mil habitantes em três anos”, recorda Edward Weiner, arquiteto, membro da câmara de comércio local. “Mas nós subestimamos a ambição dos bancos, que quiseram ganhar dinheiro demais, e a dos especuladores, sejam eles do Brooklyn, da Alemanha ou da Venezuela, que compraram casas na planta sem se preocupar com os locatários que viveriam dentro delas. Hoje, eles deixam as construções apodrecer em pé. Cerca de 20% das 10 mil casas construídas na época nunca foram habitadas. Agora os bancos ficaram mais prudentes, mas estão obstinados em desalojar os proprietários endividados. Isso é absurdo, porque os despejos acabam desvalorizando todas as casas ainda habitadas da vizinhança. Os bancos colocam as pessoas na rua para recuperar aquilo que eles sabem que não vão conseguir revender.”
Agora, uma casa que saía por US$ 300 mil em 2004, sofre para encontrar comprador por menos de US$ 100 mil. Otimista, Edward Weiner nota, entretanto, que o número de despejos operados em março (2.100) foi ligeiramente inferior ao de fevereiro (2.300). “A retomada é para daqui a 18 meses, no máximo”, afirma.
Enquanto isso, os serviços continuam desaparecendo aos milhares. A taxa de desemprego quase quadruplicou em dois anos, passando de 3,5%, em março de 2007, para 12%, em março de 2009. A combinação das perdas de trabalho e dos foreclosures (embargos de bens imobiliários hipotecados), aliada ao urbanismo típico da classe média americana – uma fileira de casas plantadas a boa distância uma da outra, em dezenas de quilômetros de asfalto sem pedestres, entrecortadas aqui ou ali apenas por uma igreja, um centro comercial ou um terreno de golfe desativado –, favoreceu as vocações de… plantação. “As casas vazias se prestam a isso”, destaca Tom. “Na do meu tio, além de tudo, eles não cortaram a eletricidade. O banco não consegue revendê-la, então por que não torná-la útil para alguma coisa? Eu passo de tempos em tempos para verificar se está tudo bem. Se os tiras aparecerem, não vão saber que sou eu.”
A reconversão dos foreclosures em estufas clandestinas tem dado trabalho às autoridades. Em 2008, a polícia de Lehigh Acres apreendeu mais de 3 mil plantas de cannabis. Mas, segundo os policiais, é impossível revistar cada uma das cerca de 1.500 casas vagas, dispersas em um território quatro vezes maior que Manhattan. “As pessoas estão cada vez mais pobres, o que aumenta muito o tráfico de drogas e a delinquência juvenil”, reconhece o tenente da polícia, Richard O. Dobson. “A isso se acrescenta o fato de que as casas perderam 70% de seu valor. Latinos de Miami aproveitam então para comprá-las e cultivar sua marijuana. Não há uma semana sem prisões e já muramos mais de uma centena de casas. Mas não podemos controlar tudo.” Quando lhe contamos as declarações do tenente Dobson, Tom dá de ombros. “A polícia coloca tudo nas costa dos cubanos. Eu conheço um bocado de gente da região que pratica o mesmo business.”
Impotente para lutar contra a proliferação das plantações, a polícia chamou os habitantes para ajudar, por meio de um programa batizado com o bucólico nome de Weed and seed (erva e semente). “O Weed é para os bad guys [os caras maus]”, rosna o policial. “Seed, em compensação, remete à ideia de implicar a comunidade, primeiro distribuindo alimentos e roupas para ela, depois a convidando a nos chamar quando vê alguma coisa suspeita.” Tom faz uma careta de quem não está convencido: “Eles acham que vão controlar o problema distribuindo manteiga de amendoim e encorajando as denúncias. Mas não se pode impedir pessoas que não têm mais nada de querer sair dessa situação. Meus pais talvez consigam manter a casa, porque minha mãe ainda tem emprego. Mas eles já sabem que não poderão pagar meus estudos. Então, para garantir meu futuro, eu tinha de escolher entre a erva e o exército. Escolhi a erva”.
Os dois filhos de uma vizinha fizeram uma opção diferente: um se engajou nos fuzileiros navais e o outro na Marinha. Suas fotos emolduradas reinam sobre o escritório da mãe, Pamela Kaye, diretora adjunta do Lehigh Community Services, instituição de serviço social da cidade. “Eu me orgulho dos meus meninos”, diz ela.
“De qualquer modo, eles tinham que partir. Depois que nossos vizinhos mais próximos foram expulsos, não nos sentimos mais em segurança. Meu marido quer comprar um fuzil, mas eu não gosto de armas de fogo.”
Kaye coordena o projeto de ajuda alimentar integrado ao programa Weed and seed: pacotes de leite, doces, massas, arroz, potes de manteiga de amendoim – “um produto muito nutritivo”, diz ela, com um ar jovial. Entre outubro de 2008 e abril de 2009, sua equipe distribuiu essas conservas a 1.245 famílias. “Algumas não têm mais água nem eletricidade”, destaca. “Os que perderam a casa dormem no carro, refugiam-se na casa de pessoas próximas ou vão não se sabe para onde, pois não há albergue para aqueles sem domicílio fixo em Lehigh Acres. Nós ajudamos como podemos, mas não há orçamento para isso; nós só trabalhamos graças às doações e ao voluntariado.”
Na pequena sala de espera do Lehigh Community Services, um quinquagenário atarracado, com o rosto queimado de sol, aguarda examinando os prospectos. Jimmy trabalhou durante 27 anos como bombeiro, antes de ser despedido, há uma semana.
É a primeira vez que solicita ajuda alimentar. “Minha casa foi construída com minhas próprias mãos, ninguém vai tomá-la de mim”, diz ele. “Mas, mesmo assim, estou endividado até o pescoço, por causa dos empréstimos que tive de fazer para cobrir dívidas mais antigas. A crise veio como uma martelada: de um dia para o outro, tudo tinha acabado.”
E o programa de retomada da economia do presidente Barack Obama? Ele não obriga os bancos a renegociar seus empréstimos para as famílias superendividadas? “Isso funciona para quem tem renda, não para quem não tem nada”, retruca Jimmy. Kaye concorda: “No caso das pessoas que vêm aqui, nenhum banco aceitou renegociar seus empréstimos. E há quem ainda fique espantado de que as famílias expulsas de casa expressem sua cólera destruindo o imóvel. Foi o que nossos vizinhos fizeram, e eu não os culpo”.
Uma mãe cubana entreabre a porta, visivelmente constrangida, à procura de comida. Do lado de fora, seu marido e as duas crianças esperam no carro, com um cartaz “à venda” colado no vidro traseiro. “Coitados”, suspira Kaye. “Quando se perde a casa, ainda se pode dormir no carro. Mas quem perde também o carro está arruinado. Sobretudo aqui, onde as distâncias são tão grandes e os ônibus tão raros.”
Bastará, no entanto, uma visita ao Plattner’s, revendedora de carros usados, para constatar que esse não é um caso isolado. “Há mais pessoas querendo vender que comprar”, lamenta um funcionário, que cita o “mercado saturado”.
Contudo, o estudante, o policial, o arquiteto, o trabalhador desempregado e a assistente social compartilham a convicção de que a crise não pode se agravar ainda mais e que, amanhã, tudo será melhor. Jimmy foi convencido: “A Flórida é um estado dinâmico, a economia irá necessariamente reagir”. “Eu sou otimista, a construção vai se reerguer”, garante também o tenente Dobson. “Daqui a alguns meses, eu vou achar emprego, e só cultivarei erva para meu consumo pessoal”, conclui Tom, às gargalhadas.
Embora desconcertante, será que esse otimismo é totalmente infundado? Certamente não, a julgar pela profusão de sítios na internet propondo que uma clientela francesa venha “comprar e investir na Flórida”. Com 549.414 embargos imobiliários em 2008, que a colocam em segundo lugar entre os estados americanos mais afetados pela crise, só ficando atrás da Califórnia, a Flórida apresenta de fato “imensas possibilidades para os investidores”, além de “oportunidade de diversificação de investimentos a preços claramente inferiores aos praticados na Europa”, como anuncia o sítio monappartamiami.com. “Uma casa com piscina na Flórida? Um sonho enfim acessível, com 20 mil euros de entrada”, alegra-se o capfloride.com, cuja página inicial exibe um banner com este desinibido conselho: “Tire proveito da crise norte-americana”.
Brigitte Bénichay soube antecipar o convite. Instalada em Miami há 20 anos, ela é diretora da Rich Homes of Florida, apresentada como “a primeira agência imobiliária norte-americana dirigida por francófonos”. A seu ver, a crise apresenta, em primeiro lugar, o imenso mérito de ter eliminado alguns de seus concorrentes.
“Em 2004, vendíamos qualquer coisa, a qualquer um: as pessoas faziam fila às 5 h da manhã para comprar um apartamento. Os preços enlouqueceram! Na época, todos os franceses de Miami queriam se tornar agentes imobiliários. É preciso dizer que é muito fácil abrir uma agência nos Estados Unidos: basta conseguir uma licença que se resume a um teste de múltipla escolha. Mas houve abusos e fraudes. Eu conheci um colega que foi embora deixando uma dívida de US$ 40 milhões. A crise permitiu purgar o sistema, fazer a separação entre os bons e os maus.”
É verdade que ela ganha “um pouco menos de dinheiro hoje que no momento do boom”, como admite no terraço de um café de South Beach, o bairro atraente de Miami. Mas não se queixa. Sua clientela, 100% francesa, não se limita mais apenas aos donos de pequenas e médias empresas (PME) e aos quadros superiores. O botim dos bons negócios se democratizou: “Todo dia recebo mensagens de pessoas que dispõem de um orçamento inferior a US$ 150 mil, aposentados, comerciantes… Nunca tive tantos clientes pobres!”, solta Bénichay em uma explosão de riso. “Ah, a Flórida, ela sempre nos faz sonhar.”
“Retomar a terra”
Assim como seus colegas gestores de fortunas, a dona da Rich Homes of Florida pode encarar o futuro com confiança: “Estamos com 1,7 milhão de embargos imobiliários no conjunto dos Estados Unidos, e estima-se que isso continue até 2012”. Ela diz se sentir “muito à vontade com a mentalidade americana, que não tem uma relação sentimental com as coisas”. Quando alguém é despejado de sua casa, outro acha normal aproveitar a situação. Como se diz por aqui: “Eu pago minhas contas, é o que vale”.
Há alguns meses, no entanto, um ponto de vista menos conciliador se manifesta em Miami. No bairro negro de Liberty City, um dos mais pobres da cidade – e um dos menos interessantes aos olhos de Bénichay –, um coletivo batizado de Take Back the Land (“Retomar a Terra”) recupera à força casas expropriadas pelos bancos para alojar famílias desabrigadas. Até o dia de hoje, apenas dez habitações foram objeto de uma reaquisição durável. É verdade que os obstáculos são numerosos. “Em primeiro lugar, é preciso encontrar casas não muito danificadas”, indica Max Rameau, um dos fundadores do coletivo. “Mas a maior parte delas foi depredada por seus ocupantes no momento da expulsão. Nossa equipe efetua pequenos trabalhos, religa a eletricidade ou instala eletrodomésticos recuperados, mas não temos como fazer grandes obras. Depois, é preciso contar com a polícia de Miami, uma das mais detestáveis dos Estados Unidos. Nossa sorte é que a crise é tão grave que os policiais não têm tempo nem vontade de piorar as coisas. Eles sabem que o bairro está por trás de nós, e provocar uma rebelião não é a prioridade do dia.”
Nascido de pais haitianos, leitor de Franz Fanon e dos Panteras Negras, Rameau quase se alegra com a irrupção da crise, que, pelo menos em seu bairro, freou provisoriamente a voracidade imobiliária. Isso porque, a despeito dos vendedores de crack e das calçadas esburacadas, Liberty City não foi poupado pelo boom do início dos anos 2000. Uma prova disso é o terreno vago fechado com tapumes na esquina da 17ª avenida. “Em 2006, a prefeitura quis oferecer esse quinhão a promotores para a construção de apartamentos de luxo. Esse projeto inseria-se no processo de gentrificação3 que começou a roer Liberty City a partir dos anos 1990. A maioria dos bairros negros, nos Estados Unidos, sofreu a mesma evolução: os promotores chegam, compram a baixos preços, esvaziam os lugares, depois os revendem muito caro. Evidentemente, eles não enfrentam o coração do bairro, mas suas beiradas. Pouco a pouco, o bairro encurta, devorado em suas margens por uma nova população, geralmente branca ou negra aburguesada. É para lutar contra essa situação que criamos a Take Back the Land”, aponta Rameau.
No dia 23 de outubro de 2006, os militantes da Take Back the Land tomaram o terreno prometido aos promotores para construir cabanas de madeira destinadas aos desalojados da vizinhança. “Inicialmente, organizamos reuniões públicas para convencer os habitantes que se mostravam céticos”, conta Rameau. “Depois, criamos um grupo mais restrito encarregado de ir de porta em porta. Quando passamos à ação, as pessoas ficaram tão espantadas de ver que não estávamos blefando, que nos apoiaram maciçamente. É isso que explica que a prefeitura não tenha nos desalojado.”
Inspirando-se no movimento dos sem-terra brasileiros e das aldeias ashanti, na África do Sul, o coletivo implantou um local de convivência autogerido, onde apenas o álcool, as drogas e o assédio sexual eram proibidos. A “aldeia”, chamada de Umoja (“unidade”, em suaíli), prosperou por seis meses, até que um incêndio a destruiu, em uma noite de abril de 2007. “No dia seguinte, as escavadeiras haviam destruído tudo o que ainda estava de pé. Nunca houve inquérito.”4
O procedimento de retomar dos bancos o que eles tomaram espanta uma grande quantidade de americanos, e não apenas os agentes imobiliários, como mostram os comentários indignados lançados toda semana no blog de Rameau. “Tomar casas que não pertencem a vocês, vocês têm peito”, grita um internauta. “E por que não ir a um hotel e exigir que lhes ofereça um quarto gratuitamente?”
“Eles se aferram ao tabu da propriedade, o que não é coisa pouca neste país”, suspira o porta-voz da Take Back the Land. “É bastante curioso: a maioria das pessoas acha normal que tomem sua casa quando o banco rechaça você, mas tem muito mais dificuldade para aceitar que essa casa seja colocada novamente em uso para alojar famílias.”
E, no entanto, ele também se declara otimista, ainda que não seja pelas mesmas razões de Donald Trump: “Nossas ações começam a ter concorrentes, em Portland, Denver e na Califórnia. Somos minoritários por enquanto, mas as pessoas não têm outra escolha além de dar as mãos. É uma questão de sobrevivência. Talvez leve dez anos, mas estou convencido de que estamos às vésperas de mudanças sociais fundamentais”.
*Olivier Cyran é jornalista.