Na Itália, uma rebelião antieuropeia?
A Itália tirou da Grécia o posto de mau aluno da União Europeia. Ao elevar a importância das despesas sociais, sua lei orçamentária para 2019 infringe o dogma da austeridade. A Comissão Europeia ameaça com sanções e critica o populismo. Tal interpretação, cômoda para desqualificar qualquer desobediência, não permite captar as orientações do novo governo
Desde a chegada ao poder da coalizão formada pela Liga e pelo Movimento Cinco Estrelas (M5S), em 1º de junho, a Itália vem inquietando os comentaristas políticos europeus. Enquanto alguns se alarmam com a dureza das políticas migratórias do ministro do Interior, Matteo Salvini, outros denunciam as escolhas econômicas que ignoram as regras da União. “Populista”, “fascistizante”, “aliança de extremos”: na maior parte das mídias, a atrelagem Liga-M5S é descreditada. A esquerda, presa entre a denúncia dos desvios autoritários e xenofóbicos do governo e certa simpatia pela rebelião que ele move contra Bruxelas, acha-se numa situação delicada. O fato de um grande país como a Itália decidir ignorar as injunções da Comissão Europeia não deveria alegrar todos os adversários da austeridade? Parte da resposta está na natureza do compromisso assumido pelas duas agremiações que partilharam o poder, mas não tinham vocação para governar juntas em razão das diferenças entre suas bases sociais e seus programas.
A vida política italiana, como a de vários outros países europeus, por muito tempo opôs um bloco de esquerda a um de direita. O primeiro reunia principalmente funcionários públicos, intelectuais, operários e empregados com pouca qualificação; o segundo tinha pequenos e grandes empresários, artesãos, comerciantes e trabalhadores autônomos. A partir de meados dos anos 1990, essas alianças, que misturavam classes sociais diferentes, enfrentaram uma instabilidade cada vez maior, em grande parte devida à dificuldade de conciliar o apoio à construção europeia (forte entre as classes médias e altas) e a satisfação das expectativas dos grupos mais pobres.1 O bloco de esquerda se esfacelou em 2007, com a criação do Partido Democrata sobre as ruínas da esquerda comunista e da Democracia Cristã. O da direita se desfez em 2010, quando da ruptura entre Silvio Berlusconi (Força Itália) e Gianfranco Fini (Aliança Nacional).
Num contexto de crise ao mesmo tempo política e econômica, o projeto de uma nova coalizão “para além da direita e da esquerda” se afirmou: um “bloco burguês” que agregava o conjunto das classes médias e altas, unido no apoio incondicional à construção europeia. A certidão de nascimento desse bloco coincidiu com uma carta enviada pelo Banco Central Europeu a Roma, em 2011, ditando-lhe as orientações de sua política econômica. Essa carta provocou diretamente a queda do quarto governo de Berlusconi e fez o tecnocrata Mario Monti, ex-executivo do banco Goldman Sachs, assumir a presidência do Conselho. Assim, o bloco burguês governou por sete anos a Itália, com Monti, Enrico Letta, Matteo Renzi e Paolo Gentiloni, sucessivamente. O fracasso dessa aliança explica a vitória da Liga e do M5S. Enquanto o PIB a preços constantes da Itália caía 10% entre 2008 e 2017, a precarização e a pauperização de boa parte da população abriam um espaço de oposição que essas duas formações se apressaram a ocupar. É um espaço amplo e socialmente heterogêneo, no qual ganham voz expectativas diversas e até certo ponto contraditórias.
Abolição do Jobs Act?
Os grupos que se opõem ao bloco burguês podem ser esquematicamente divididos em duas categorias. De um lado, o eleitorado popular afligido pelas terapias de Bruxelas e não raro seduzido pelo tom social do programa do M5S: operários, assalariados com pouca qualificação, trabalhadores precários, aposentados vivendo no limite da pobreza. De outro, as classes médias – artesãos, comerciantes, pequenos empresários, empregados de nível médio das companhias privadas, profissionais liberais… –, que adotaram o neoliberalismo por causa de suas promessas de promoção social e que, apesar das ameaças de empobrecimento, continuam fiéis a ele. Esses eleitorados se juntam, mas em proporções diferentes, no seio da base social do M5S e da Liga.
A vitória dos dois partidos não resulta de uma estratégia de política econômica global e coerente, que nenhum deles jamais elaborou. Depois das eleições de março de 2018, o M5S chegou a declarar que governaria com qualquer partido (inclusive o Democrata), menos com o Força Itália… ao qual a Liga está associada desde a década de 1990 – uma aliança que, de resto, nunca foi rompida formalmente e continua a governar todas as regiões do norte do país. Reunidos numa coalizão pouco natural e sem uma estratégia partilhada, o M5S e a Liga proclamam uma unidade fundada em compromissos sem cessar as renegociações, mas pondo de lado o tema da imigração: ambos acatam a mesma linha repressiva, que os leva notadamente a guerrear contra as ONGs operantes no Mediterrâneo.
No entanto, a ação do governo mostra muito claramente que o espaço do compromisso possível entre o M5S e a Liga se situa no interior da trajetória neoliberal que a Itália segue desde os anos 1990. A vontade expressa no curso da campanha pelo M5S, de abolir o Jobs Act de Renzi,2 desapareceu rapidamente: já não se cogita voltar ao contrato de prazo indeterminado (CPI) com “proteção crescente”, que prevê, em caso de demissão sem justa causa, uma indenização correspondente a dois meses de salário por ano trabalhado (e não mais, como prescrevia o artigo 18 do Estatuto dos Trabalhadores, a obrigação de reintegrar o assalariado). O objetivo de limitar os contratos precários foi revisto por baixo. Aprovado pelo Conselho de Ministros no verão, a pedido do M5S, o “decreto dignidade” reduziu de três para dois anos o período durante o qual é permitido renovar CPIs. Ele também reintroduziu a obrigação, para o empregador, de explicitar o motivo do recurso a um CPI, mas – e isso é decisivo – apenas em caso de renovação. Como deixa claro a Confederação Italiana dos Sindicatos de Trabalhadores (CISL, na sigla italiana), essa restrição poderia, paradoxalmente, aumentar a precariedade:3 em vez de se justificar, muitos empregadores iriam contratar novos assalariados.
Os recuos em matéria de luta contra a precariedade se manifestam igualmente pela reintrodução dos vouchers. Esses papéis pré-pagos, que permitem remunerar um trabalho ocasional, se disseminaram durante os anos Renzi por meio do Jobs Act. A fim de evitar um referendo que o revogasse, o governo Gentiloni suprimiu o sistema em março de 2017. Graças à Liga e ao M5S, os vouchers estão de volta a setores importantes como a agricultura e o turismo. No combate às relocalizações, um tema de destaque na campanha do M5S – o “decreto dignidade” – continua também a meio caminho. Ele obriga as empresas que contam com financiamentos públicos a devolvê-los se, nos cinco anos após sua obtenção – o texto inicial, antes do acordo, previa dez –, elas transferirem suas atividades para outro país. A medida parece audaciosa, mas apenas os financiamentos concedidos a título de “investimento produtivo” entram em pauta (a maioria vai para pesquisa e desenvolvimento). No conjunto, o “decreto dignidade” justifica o julgamento crítico da Confederação Geral Italiana do Trabalho (CGIL, na sigla italiana), perplexa ante a “grande distância entre o que se anunciou e o que se decidiu”, lamentando a “falta de coragem” e “a ausência de um projeto global de reorganização das leis do trabalho”.4
A medida principal do M5S em matéria de proteção social, a “renda cidadã”, também passou por algumas transformações. Primeiro, na amplitude: estimado durante a campanha eleitoral em 17 bilhões de euros, o financiamento que acabou previsto não passa dos 9 bilhões de euros. Em seguida, na natureza: inicialmente apresentada como uma renda de base incondicional, essa alocação lembra, no fim das contas, a renda universal de atividade proposta por Emmanuel Macron na França. Ela servirá não apenas para fundir o conjunto dos auxílios já existentes, mas também para aumentar a pressão sobre os desempregados: os beneficiários serão privados dela caso recusem três ofertas de emprego. O líder do M5S, Luigi Di Maio, explicou que não se trata de “dar dinheiro a quem passa o dia estirado num sofá”, mas de “preparar os cidadãos para que eles possam trabalhar”.5
A curto prazo, essa indenização aumentará o poder de compra dos mais pobres, mas obrigará os desempregados a aceitar condições de trabalho degradantes, sob pena de perderem toda a ajuda social, e isso terá por efeito, a médio prazo, comprimir os salários. Indício adicional de desconfiança com relação às classes populares, a renda será creditada numa carteira de uso controlado, para evitar que seja gasta “em cigarros e loterias”. No momento em que definia os contornos dessa prestação nem tão universal assim, o governo anunciava outra reforma, imposta pela Liga: uma anistia fiscal com vistas a reduzir os processos ao limite de 500 mil euros (100 mil euros por ano de taxação no período de 2013-2017).
Sustentar, em caráter de urgência, as pessoas de renda mais modesta e, ao mesmo tempo, prolongar a marcha neoliberal dos anos precedentes: tal é o compromisso que estrutura o orçamento divulgado em 15 de outubro. Para justificar essa atitude, o governo põe em destaque sua vontade de retomar a demanda e, portanto, o crescimento – embora os investimentos públicos (3,5 bilhões), que nessa perspectiva seriam bem mais eficazes, façam pálida figura perto das transferências de renda. Além da renda cidadã (9 bilhões), o orçamento prevê uma reforma da previdência a um custo de 7 bilhões de euros, a fim de amenizar em parte a impopularíssima Lei Fornero, mudando a idade de início da aposentadoria de 67 para 62 anos no caso dos que contribuíram por pelo menos 38 anos.
Como a renda cidadã, essa reforma contribui para satisfazer à demanda de amparo material da parte mais pobre do eleitorado, mas, simultaneamente, coloca à disposição das empresas uma mão de obra precária e barata. Com efeito, não sendo revogado o Jobs Act, a diminuição da idade de início da aposentadoria permitirá aos empregadores substituir assalariados com longo tempo de serviço e remunerações elevadas (mas, sobretudo, protegidos pelo antigo CDI e o artigo 18) por trabalhadores mais “flexíveis”. Outro motivo de júbilo para o patronato: o orçamento prevê um afrouxamento da fiscalização, por enquanto limitado aos trabalhadores independentes e às pequenas e médias empresas (PME), mas que deve se ampliar, segundo um mecanismo de flat tax (sistema de imposição de taxa única), ao conjunto do imposto sobre as empresas, dando vantagem sobretudo às rendas mais altas.
Um orçamento como os precedentes
Para financiar suas três principais medidas (renda cidadã, reforma da previdência e diminuição dos impostos), o governo anunciou privatizações6 que, mais a anistia fiscal, deverão gerar 8 bilhões de euros em 2019, bem como uma redução das despesas sociais da ordem de 7 bilhões de euros.7 Entretanto, essas receitas não bastam para cobrir as novas despesas e o orçamento de 2019 apresenta um déficit de 2,4%, três vezes mais que os compromissos do governo anterior e que as recomendações de Bruxelas.
Essa revisão com aumento do déficit público chama a atenção da mídia, que analisa em especial o discurso da Liga e do M5S, ansiosos por valorizar sua “ruptura” com o período precedente, mas também o do Partido Democrata, pronto a denunciar a suposta irresponsabilidade do novo governo. Já os elementos de continuidade são abordados com menos frequência. Contudo, o déficit previsto para 2019 se inscreve na linha dos anos precedentes (2,5% em 2016, 2,3% em 2017). Como acontece há vinte anos, ele se deve inteiramente aos encargos da dívida (3,8% do PIB). Se excluirmos esta última, as receitas fiscais ultrapassarão as despesas públicas em 1,4% do PIB. Não se poderia, então, recriminar o governo italiano por uma política “expansiva” alicerçada no inchaço dos orçamentos. De resto, a ideia de promover privatizações em troca da possibilidade de dar rédea solta ao déficit (até 2,9% e por cinco anos consecutivos) foi formulada por Renzi em julho de 2017.
O déficit italiano poderá provocar uma crise no seio da União Europeia? Os títulos da dívida pública representam parte importante do ativo dos bancos italianos. A elevação das taxas de juros, após os anúncios do governo, desvaloriza os títulos, o que talvez obrigue os bancos a uma recapitalização num mercado tenso, com repercussões no conjunto do continente. Além disso, a Itália, terceira potência econômica da Europa, não é a Grécia; tutelá-la significaria abalar o edifício da União. Desse ponto de vista, Bruxelas deveria, por ser de seu total interesse, recomendar o apaziguamento. Mas a Comissão Europeia escolherá o caminho da razão? A história recente justifica essa pergunta.
*Stefano Palombarini, economista, é autor (com Bruno Amable) de L’Illusion du bloc bourgeois. Alliances sociales et avenir du modèle français [A ilusão do bloco burguês. Alianças sociais e futuro do modelo francês], Raisons d’Agir, Paris, 2017.