Na Nicarágua, a sobrevida do sandinismo
Em 2006, a FSLN chegou outra vez à presidência. Para que isso fosse possível, fez uma série de acordos políticos criticados por muitos de seus simpatizantes. Três anos depois, as contradições continuam: ao mesmo tempo em que o país entrou na Alba, mantém firme suas alianças pragmáticas com a burguesia e a Igreja
“Eu não me renderei. Esperarei vocês aqui. Quero uma pátria livre ou a morte.” Não faltou coragem na resposta de Augusto César Sandino à carta de um chefe militar americano que ameaçava persegui-lo sem parar caso ele não depusesse suas armas. A Nicarágua já havia sofrido várias invasões dos Estados Unidos: a primeira, entre 1854 e 1856. A Grã-Bretanha também tentou tomar o controle de sua costa atlântica. Naquela época, as duas potências consideravam esse território da América Central essencial para a construção de um canal interoceânico – o que finalmente aconteceria no Panamá em 1914.
Em 1909, sob o pretexto de ajudar a eliminar as tensões políticas e militares na Nicarágua, o secretário de Estado americano Philander C. Knox enviou tropas ao país. Os soldados retornaram para os Estados Unidos apenas em 1925. No ano seguinte, mais de 5 mil marines desembarcaram novamente na Nicarágua, onde permaneceram até 1933. A razão, desta vez, seria a presença de “agentes bolcheviques mexicanos” querendo conquistar a nação.
Sandino era um desses “agentes”. Mesmo se dizendo liberal, em 1927 ele pegou em armas para combater não apenas o ocupante estrangeiro qualificado de “imperialista” ou ainda de “bando de cocainômanos”, mas também a elite liberal-conservadora que o revolucionário definiu como opressiva, exploradora, racista e pronta a vender sua pátria. “Sandino retomou as ideias e a bandeira vermelha e preta dos anarco-sindicalistas mexicanos, além da análise de classes do salvadorenho Farabundo Martí1. Em seus escritos, ele expressava a necessidade da integração latino-americana, como havia sonhado Simón Bolívar, mas também a integração dos índios nas lutas políticas, sem excluir a aliança com as empresas nacionalistas a fim de enfrentar o imperialismo americano”, conta o sociólogo Orlando Nuñez.
Tutela americana
Perseguidas pela guerrilha modesta de Sandino, o “general dos homens livres”, as tropas invasoras se retiraram da Nicarágua no momento em que os Estados Unidos mergulhavam na Grande Depressão, pós-crise de 1929. Mas deixaram para trás uma Guarda Nacional dirigida por Anastasio Somoza, um militar formado nas academias americanas. Em 21 de fevereiro de 1934, Sandino, que aceitou negociar com o governo nacional, foi assassinado na saída de uma recepção oferecida pelo presidente Juan Bautista. Alguns anos mais tarde, Somoza reconheceu que a ordem para matá-lo foi dada pelo embaixador americano Arthur Bliss Lane.
Sob a tutela de Washington, instalou-se a ditadura dinástica dos Somoza – Anastasio (1936-1956), Luis (1956-1963), Anastasio Jr. (1967-1979) – que duraria mais de quatro décadas. Entretanto, as lutas anteriores não foram em vão. Em 1960, inspirados pelo triunfo da Revolução Cubana e guiados pelas ideias de Sandino, Carlos Fonseca Amador, Tomas Borge e outros intelectuais fundaram a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Durante muitos anos, os sucessos dessa guerrilha foram limitados, devido à falta de experiência de seus líderes na relação com a população rural. No entanto, os abusos da família Somoza, totalmente submissa aos interesses americanos, e a concentração do poder em suas mãos, mudaram a situação, provocando o descontentamento de uma fração da burguesia.
Esta classe acreditava que uma aliança com a FSLN poderia livrá-la do ditador e permitir que recuperasse o espaço político que lhe havia sido negado. A Frente, de seu lado, via nessa aproximação a possibilidade de atingir mais rapidamente seus objetivos. A união com os cristãos adeptos da Teologia da Libertação seria decisiva. E conforme a repressão crescia, nem mesmo o governo de Jimmy Carter (1977-1981) pôde continuar a apoiar Somoza. A insurreição armada triunfou em 19 de julho de 1979. A revolução sandinista suscitou uma admiração internacional.
Em menos de dez anos, a cruzada nacional de alfabetização empreendida pelo governo do jovem Daniel Ortega fez com que o analfabetismo caísse de 54% para 12%. A população pobre pôde, enfim, ter acesso ao ensino superior. Os cuidados médicos deixaram de ser privilégio de uma minoria. Os camponeses foram beneficiados com a reforma agrária. A nacionalização dos recursos estratégicos, a incitação à sindicalização e à organização em cooperativas dos pequenos e médios produtores foi, segundo Nuñez, “um processo de justiça social e de organização direta do povo, sem precedentes na história da Nicarágua”.
Os revolucionários viam em seus aliados burgueses um modo de legitimar seu governo no exterior, imaginando que assim evitariam o ostracismo ou a agressão. “A revolução devia demonstrar que era democrática e católica, ou seja, sem riscos para os interesses dos Estados Unidos e da Europa”, continua Nuñez. Não poderiam estar mais equivocados: eleito presidente em 1981, Ronald Regan chegou a declarar que a Nicarágua era o “problema número um” de segurança nacional. Alguns meses antes, em abril de 1980, a quase totalidade dos membros da oligarquia nicaraguense havia se retirado da Frente. Unida à elite somozista, a burguesia apoiou os planos de desestabilização da revolução. Em Honduras, El Salvador e Costa Rica, militares e mercenários americanos e cubano-americanos2 conduziam as forças contrarrevolucionárias, os “contras”, até a fronteira com a Nicarágua.
“Ateus”, “belicistas”, “comunistas”, “regime totalitário exportador da revolução”, “traficantes de drogas” etc. Esses eram os termos utilizados pelo jornal nicaraguense La Prensa em sua campanha internacional de difamação da revolução. A economia de guerra provocou penúrias alimentares e desacelerou os programas de desenvolvimento social, causando mal-estar entre setores da população. Os sandinistas tinham parte da responsabilidade na consolidação dos “contras”, pois uma fração da população rural não recebeu bem a prioridade dada à formação de fazendas do Estado e interpretou o apoio às cooperativas como uma concorrência desleal. A partir de setembro de 1983, a ameaça permanente tornou o serviço militar obrigatório. Atualmente deputado da FSLN no Parlamento Centro-Americano, o ex-combatente Jacinto Suárez admite: “Nós não soubemos gerir a relação com o campo e quando, hoje, falamos com os ex-dirigentes dos ‘contras’, percebemos que cometemos grandes erros”.
Apesar da destruição que provocaram – 29 mil mortos no final do conflito –, os “contras” fracassaram militarmente. Em 1984, os sandinistas obtiveram ampla vitória nas eleições presidenciais e legislativas, e Washington mergulhou em escândalos: em 1986, veio à tona a vendas de armas ao Irã e o tráfico de cocaína institucionalizado pela Central Intelligence Agency (CIA) a partir da Colômbia para financiar os “contras”. Em 1987, os americanos foram condenados pela Corte Internacional de Justiça de Haia por destruir os portos da Nicarágua.
Derrota nas urnas
Embora a conjuntura fosse favorável à FSLN, a capital nicaraguense Manágua estava econômica e humanamente esgotada. Chegava então o momento das negociações entre sandinistas e “contras” e da convocação de novas eleições. Candidata de Washington e das forças antissandinistas reagrupadas em uma coalizão, a União Nacional de Oposição (UNO), Violeta Chamorro venceu em 25 de fevereiro de 1990. Durante a campanha eleitoral, os sandinistas tinham o apoio de 53% da população. Mas, de acordo com Suárez, um acontecimento inesperado e mal administrado iria mudar a situação: “A intensidade da guerra tinha diminuído graças às negociações com os ‘contras’ e, como consequência, o número de mortos também. Via-se, enfim, o final do túnel. Porém, quando o Panamá foi invadido, a embaixada americana em Manágua foi cercada pelos tanques. Os sandinistas saíram às ruas armados, em sinal de solidariedade a esse país. Dois dias mais tarde, numa outra pesquisa de opinião, havíamos caído para 34%. E aí era impossível reverter a tendência: a ideia de uma nova guerra amedrontou as pessoas”.
Ainda no poder por algumas semanas, os sandinistas assinaram um protocolo de transição com Violeta Chamorro. Embora os Estados Unidos tenham se oposto, o novo governo aceitou que eles mantivessem o comando das Forças Armadas, da polícia e dos serviços de segurança, que foram sendo desmantelados pouco a pouco. Ao permanecer no controle desse aparato, os sandinistas impediram que ele se tornasse instrumento de repressão.
Dissolvidos, os “contras” se reintegraram com alguma dificuldade ao tecido social nicaraguense. Os novos governantes e a oligarquia começaram a combater os acordos e a privar a população das conquistas da revolução. Chamorro colocou a Nicarágua na era neoliberal. As empresas transnacionais, em particular as americanas, mas também as europeias e as asiáticas, beneficiaram-se com isso. A oligarquia financeira se dedicou à dilapidação dos bens do Estado e à especulação econômica. “Em poucos anos, eles quase liquidaram a burguesia nacional, já enfraquecida e ainda não consolidada, e fecharam o horizonte dos pequenos e médios produtores do campo e da cidade. Mergulharam a Nicarágua na pior crise econômica, social e financeira de sua história”, conta Nuñez. A partir de 1990, três presidentes – Violeta Chamorro, Arnoldo Alemán e Enrique Bolaños – praticamente destruíram o que a revolução havia construído. Os salários perderam até um terço de seu valor, o subemprego chegou a 45% e a miséria atingiu muitos nicaraguenses.
Esse doloroso retrocesso não encontrou freios. “A revolução não durou tempo suficiente para criar um novo sistema”, analisa Carlos Fonseca Jr., cujo pai fundou a FSLN. “Isso se deveu a realidades políticas, econômicas e à guerra que lhe foi imposta. A institucionalização da participação popular no exercício do poder não ocorreu. Se tivesse sido esse o caso, o neoliberalismo não teria destruído tão facilmente as conquistas sociais”, diz.
O movimento foi ainda mais devastador porque a resistência estava enfraquecida pelas violentas lutas internas que dividiam os sandinistas. Em 1994, quando do Congresso da FSLN, duas tendências se opuseram. Segundo Fonseca, “uns pregavam a renúncia ao anti-imperialismo, ao socialismo, ao caráter de vanguarda do partido. Outra corrente, conduzida por Daniel Ortega, expunha a necessidade de reajustar o programa, sem se afastar dos princípios ideológicos do sandinismo”. Esta última obteve 12 dos 15 postos de direção. Denunciando seu “autoritarismo”, a maioria dos dirigentes nacionais, dentre os que haviam sido ministros, e a maior parte dos deputados, deixaram a Frente para fundar o Movimento de Renovação Sandinista (MRS)3.
Em 5 de novembro de 2006, com 38% dos votos, Daniel Ortega e a FSLN chegaram à presidência da República. Para que isso fosse possível, fizeram uma série de acordos políticos, provocando interrogações, críticas e vivas reações no país, e entre muitos de seus simpatizantes e amigos no exterior (ver box).
No passado, os sandinistas haviam se aliado aos conservadores para julgar e prender por corrupção o ex-presidente Arnoldo Alemán. Desta vez, ofereceram a ele, condenado a 20 anos de detenção, um regime de prisão domiciliar, em troca da “neutralidade” do Partido Liberal Constitucionalista (PLC). Causaram também espanto ao assinar pactos de “não-agressão” com aquele que foi um de seus mais ferozes inimigos nos anos 1980: o cardeal Miguel Obando y Bravo. Confrontada pelo avanço das religiões evangélicas, a Igreja Católica tirou proveito e também entrou no jogo. Para muitos, esse pragmatismo atual dos sandinistas é duro de engolir.
Instalada oficialmente na presidência, a FSLN venceu em 105 municípios dos 146 existentes, quando das eleições municipais de 9 de novembro de 2008. Apesar das dificuldades, a saúde e a educação se tornaram gratuitas. Milhares de crianças retornaram à escola. Um plano de “fome zero” foi implantado com um milhão de refeições cotidianas sendo distribuídas nos centros educacionais.
Para garantir a soberania e a segurança alimentar do país, terras e empréstimos a juros muito baixos foram concedidos aos pequenos e médios produtores. Cerca de cem mil famílias camponesas se beneficiaram desse projeto, que é administrado por mulheres – consideradas mais estáveis para garantir a sobrevivência da família – e organizado em cooperativas. Elas pagarão 20% do empréstimo, sendo o restante capitalizado para permitir que se tornem independentes e produtoras de alimentos.
Programas sociais
Já o programa “usura zero” financia, com juros de 5% (enquanto o habitual é de 25%), uma parte dos 45% de nicaraguenses que trabalham por conta própria. Se os bancos entenderam isso como uma declaração de guerra, os comércios de calçados, móveis e vestuário, que se beneficiaram disso, podem oferecer produtos mais baratos ao consumidor. “Se a embaixada americana e a oligarquia nacional estão furiosas pela perda do leadership político, também o estão pela aproximação de muitos empreendedores nacionais com a FSLN”, observa Nuñez.
No seio da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA)4, a Nicarágua troca feijão, carne e gado pelo petróleo venezuelano5. A ALBA financia também uma boa parte dos programas sociais. Médicos cubanos operam gratuitamente os olhos de milhares de pessoas com equipamentos modernos enviados pela Venezuela. Uma campanha de alfabetização foi lançada com a ajuda do programa, também cubano, Yo si puedo.
Em fevereiro de 2008, o novo embaixador de Washington, Robert Callahan, chegou a Manágua. Sua presença reabriu as feridas. Nos anos 1980, esse homem era assessor de imprensa da embaixada americana em Honduras, tendo como chefe John Dimitri Negroponte. Na época, a CIA dirigia daquele país a minoria mais violenta dos “contras”. Hoje, preocupado com os avanços dos sandinistas, Negroponte apoia abertamente a oposição nicaraguense. Uma ingerência que levou o presidente Ortega a ameaçá-lo de expulsão, em fevereiro de 2009. Os representantes da elite e os antissandinistas replicaram então que o chefe de Estado “morde a mão daquele que lhe dá de comer”. Um comportamento que faria o general Sandino revirar-se na tumba.
*Hernando Calvo Ospina é jornalista.