Na origem do ódio ao imposto
A mobilização na França contra os impostos sobre os combustíveis pôs em evidência um sentimento de injustiça fiscal expresso, sobretudo, pelos assalariados subalternos e pelos pequenos autônomos. Em um país onde o imposto continua sendo uma alavanca para a redistribuição, como explicar que ele seja contestado por quem está no ponto mais baixo da escala social?
“Chega de impostos”, “Macron Tio Patinhas”, “Ir trabalhar se tornou um luxo”, “Direita, esquerda = impostos”, “Basta de extorsão, a revolta do povo poderoso levará à revolução”… A variedade de slogans gritados durante as manifestações dos “coletes amarelos” (motoristas de carro) que bloquearam os principais eixos de circulação de veículos da França para protestar contra a alta dos impostos sobre os combustíveis, em 17 de novembro, evoca ao mesmo tempo um movimento politicamente mutante e um ódio voltado contra um objeto bem preciso: os impostos, fundamento do Estado social.
Ao longo do século XX, as classes populares se mantiveram relativamente distantes da questão fiscal. A instauração do imposto de renda progressivo, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, suscitou antes de tudo uma rebelião das profissões liberais, dos trabalhadores independentes e dos camponeses, unidos em associações de contribuintes.1 Depois, com exceção do período da Frente Popular (1936-1938), o tema da injustiça fiscal continuou a ocupar apenas um lugar marginal no movimento operário, em comparação, sobretudo, com as reivindicações salariais ou a defesa do emprego. Mesmo o caráter iníquo das taxas indiretas sobre o consumo, como a Taxa sobre o Valor Agregado (TVA), que representa cerca de metade das receitas fiscais quando o imposto de renda representa apenas um quarto, raramente mobilizou sindicatos e partidos de esquerda.
Após alguns anos, contudo, a contestação do imposto recobrou ânimo, a ponto de se impor como a aposta principal das lutas contra a austeridade. Em Portugal, em maio de 2010, dezenas de milhares de pessoas se manifestaram contra a alta de impostos e os cortes orçamentários. Um ano depois, na Espanha, centenas de milhares de “indignados” se mobilizaram contra o rigor orçamentário, as privatizações e o aumento da TVA – que havia passado de 4% para 21% para o material escolar. Na Grécia, assalariados dos setores público e privado saíram às ruas a fim de protestar contra os cortes de salários e a injustiça fiscal. Alguns meses depois, operários franceses de fábricas agroalimentares, ameaçados de demissão, se uniram ao movimento dos “bonés vermelhos” lançado pelos agricultores e pequenos empresários para pôr em xeque a ecotaxa.
A inversão de termos do debate fiscal decorre, inicialmente, das políticas públicas. Com o agravamento do desemprego em massa e a intensificação da concorrência internacional, os governantes foram aos poucos evitando interferir na repartição primária das rendas entre salários e lucros. Em alguns anos, a questão social, formulada em termos de partilha de benefícios, cedeu lugar a uma questão fiscal, instrumentalizada para aliciar o eleitorado popular. Em 2007, o slogan de Nicolas Sarkozy, “Trabalhar mais para ganhar mais”, e seu projeto de desoneração fiscal das horas extras seduziram numerosos empregados e operários. Cinco anos depois, a promessa de impor uma taxa de 75% sobre a parte das rendas que ultrapassasse 1 milhão de euros por ano permitiu a François Hollande dar um colorido popular a seu programa, mas a medida foi concebida de maneira tão precária que o Conselho Constitucional não teve trabalho algum para impugná-la. Em 2017, Emmanuel Macron utilizou também a supressão da taxa de habitação para contrabalançar sua imagem de candidato das elites, antes de anunciar finalmente que ela se estenderia por mais três anos.
Essa politização da questão fiscal implica um notável paradoxo: os membros das classes populares são hoje os que mais criticam o nível de taxação, embora sejam os que mais se beneficiam do sistema distributivo garantido pela arrecadação. O fator geográfico acentua essa desconfiança: quanto mais longe o cidadão se encontra das grandes cidades, mais se considera injustamente taxado, com os habitantes das zonas rurais e suburbanas se mostrando os mais críticos do sistema fiscal, por oposição aos parisienses. Após vários anos de políticas destinadas a favorecer o acesso à propriedade, muitas famílias modestas, que se endividaram para adquirir sua casa, arcam além disso com os aumentos regulares do imposto predial, que compensam o corte nos repasses do Estado às coletividades locais. Em certas áreas, o sentimento de injustiça nasce da degradação dos serviços públicos e dos problemas de mobilidade agravados pelo fechamento de linhas férreas.2 Tudo acontece como se os moradores dessas zonas, que fazem a maior parte de seus trajetos em veículos motorizados e sofrem na carne a alta dos preços dos combustíveis, vissem desaparecer diante de seus olhos as instituições que, do correio à escola, passando pela estação ferroviária, representam a concretização local do dinheiro socializado pelos “impostos”.
Um Estado distante, próximo dos poderosos
Outra desconfiança em relação ao fisco se inscreve numa conjuntura singular, marcada por uma sucessão de escândalos. Em 2010, descobriu-se que Liliane Bettencourt, a mulher mais rica da França, sonegou do fisco mais de 100 milhões de euros e financiou a campanha eleitoral de Sarkozy. Veio em seguida o caso Jérôme Cahuzac, ministro do Orçamento de François Hollande, encarregado da luta contra a fraude fiscal e que confessou em 2013 manter uma conta secreta na Suíça no valor de 600 mil euros – depois de negá-la. Paralelamente surgem escândalos midiáticos. Os episódios LuxLeaks, SwissLeaks, Offshore Leaks, Panama Papers e Paradise Papers põem às claras os esquemas de evasão fiscal de multinacionais, dirigentes políticos, celebridades do esporte e do mundo do espetáculo. Essa sequência faz a igualdade perante o imposto parecer uma fábula contada em livros de direito, pois o mundo agora se divide em duas categorias: de um lado, os contribuintes comuns, que não devem medir esforços para salvar as finanças; de outro, os poderosos, que conseguem escapar às coerções fiscais sem nunca ser realmente incomodados (Bettencourt, falecida em 2017, nunca foi processada; Cahuzac, condenado a quatro anos de prisão, permanece em liberdade).
As experiências práticas acumuladas pelas classes populares em contato com as administrações acentuam a percepção de “dois pesos, duas medidas”. Os contribuintes menos afeitos ao manejo da linguagem abstrata do fisco contam frequentemente com os agentes do Estado para ajudá-los a preservar seus direitos.3 Ora, a diminuição do número de funcionários deteriora as relações nos balcões de atendimento. De 2005 a 2017, os governos suprimiram mais de 35 mil empregos no conjunto da administração das finanças públicas, principalmente entre os agentes encarregados de atender o público. Nas áreas rurais, os horários de abertura se reduzem e, nas zonas urbanas, as filas de espera se alongam, castigando os contribuintes pouco habituados às operações digitais e que preferem o contato humano. E isso sobretudo quando se trata de pedir isenções, isto é, de demonstrar a impossibilidade material de pagar a taxa de habitação, o imposto predial ou a taxa de televisão. Com o aumento do desemprego e da precariedade, o número desses pedidos passou de 695 mil em 2003 a 1,4 milhão em 2015. Mas as chances de convencer o cobrador de impostos variam conforme a classe social: segundo nossa pesquisa, realizada em 2017, entre os contribuintes que acionaram a administração, 69% dos membros das classes superiores ganharam a parada, contra 51% dos provenientes das classes populares.
Às questões burocráticas acrescentam-se os efeitos da crise. Para os assalariados e os pequenos trabalhadores independentes, cujo poder de compra se estagnou ou regrediu, impostos e taxas parecem menos a contrapartida dos serviços públicos do que uma despesa suplementar. Sua percepção de iniquidade redobra: além da incapacidade de pagar as somas exigidas, existe a convicção de que esse dinheiro serve apenas para enriquecer “os que estão por cima”. Após a crise de 2008, a desagregação do tecido industrial e as supressões de emprego lançaram uma luz crua sobre a impotência dos dirigentes, que não podem se opor às deslocalizações (transferência de empresas para o exterior). Outrora considerado uma garantia de proteção, o Estado surge agora como uma instância distante, a serviço dos poderosos.
Além disso, nas pequenas empresas, particularmente expostas à concorrência internacional, o imposto figura quase sempre como ameaça direta à segurança no emprego. Essa percepção, espicaçada pelo estribilho jornalístico dos “encargos que sobrecarregam o custo do trabalho” e pelas comparações tendenciosas com a Alemanha, abrem caminho a reaproximações entre empregados e patrões, notadamente quando se trata de questionar os impostos e o excesso de regulamentações.
Em um mundo do trabalho desconstruído, em que os empregadores recorrem de bom grado à terceirização, a contestação do imposto pode também se exprimir pela voz de jovens ativos, mas sem diplomas, empregados e operários duramente atingidos pelo desemprego e a precariedade. Para muitos, a individualização do trabalho se fez acompanhar pela erosão das solidariedades coletivas, favorecendo uma espécie de desfiliação: bem longe da estabilidade oferecida pela condição de funcionário, esses trabalhadores nutrem certo ressentimento pelo Estado e seus agentes, que gozam de uma proteção à qual eles não têm direito. Para os mais afetados pela crise, o estatuto de trabalhador independente representa uma saída possível. Ora, essa perspectiva de promoção vem acompanhada, muitas vezes, por um discurso que denuncia o “excesso de encargos”. A imagem da pequena empresa sufocada pelas exações sociais e fiscais tornou-se o contraponto de um Estado distante e indiferente às dificuldades encontradas in loco. À valorização do trabalho como fonte de dignidade e de remuneração merecida acrescenta-se a estigmatização da assistência, financiada pelos impostos. A desestabilização de faixas inteiras do universo dos assalariados subalternos contribuiu assim para alimentar, nas classes populares, uma desconfiança crescente em relação ao imposto, em nome da salvaguarda do emprego a todo custo.
A confiança traída das classes populares nas fontes de financiamento do Estado social ficou por muito tempo ausente dos debates sobre os problemas fiscais. Quando ela se manifesta durante as campanhas eleitorais, os governantes cuidam mais de preservar a aceitação do imposto pelas classes médias – um grupo social com o qual se identifica a maioria dos eleitores – e altas. Desde o início dos anos 1980, observa-se a multiplicação dos nichos fiscais que permitem reduzir o imposto de renda, enquanto a TVA permanece a mesma para todos os consumidores e as taxas sobre os combustíveis aumentam sem que haja nenhuma isenção (salvo para os profissionais do transporte). Doações a partidos e associações, empregos não presenciais ou aluguéis, trabalhos de renovação energética: são outros tantos mecanismos de isenção fiscal que permitem aos contribuintes, em contrapartida, deduzir valores, dando até a oportunidade aos mais afortunados de otimizar seus negócios.
Presente aos empresários
Esses abatimentos influem sobre a avaliação do nível de tributação. Segundo nossa pesquisa, os contribuintes que se beneficiam de ao menos um nicho fiscal têm 1,4 menos chance que os outros de achar que “a França é um país onde se paga muito imposto”. A dramaturgia midiática encenada no outono em torno do desconto na fonte revelou, de resto, um governo pronto a se mobilizar para garantir esses dispositivos, que beneficiam os mais prósperos: o primeiro-ministro Édouard Philippe decidiu finalmente que 60% de alguns créditos de imposto seriam pagos em janeiro de 2019, e não mais seis meses depois, como previsto de início.
Paralelamente, a maioria adotou outras medidas tendo em vista os mais ricos, como a ampliação do Pacto Dutreil,4 que autoriza os proprietários de empresas a legar suas ações, por doação antecipada ou por morte, com exoneração da maior parte ou mesmo da totalidade dos direitos sucessórios. Foi uma dádiva que passou totalmente despercebida, não sendo objeto de nenhum cálculo preciso; a ampliação desse nicho fiscal, que já custa a cada ano cerca de 500 milhões de euros às finanças públicas, representaria ganhos bastante substanciais para os beneficiários.
Durante todo esse tempo, jornalistas e responsáveis políticos voltam sua atenção para os “coletes amarelos” e se perguntam: mais vale preservar o ambiente ou asfixiar os motoristas? Se ainda é muito cedo para avaliar o que virá depois desse movimento, seu primeiro mérito é ter trazido à luz o sentimento de injustiça fiscal que fermenta há anos no seio das classes populares.
*Alexis Spire é sociólogo, diretor de pesquisa do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS) da França e autor de Résistances à l’impôt, attachement à L’État. Enquête sur les contribuables français [Resistências ao imposto, apego ao Estado. Pesquisa com os contribuintes franceses], Seuil, Paris, 2018. Esse estudo se baseia num questionário apresentado, em 2017, a uma amostra representativa de 2.700 pessoas e numa pesquisa qualitativa com contribuintes encontrados junto a balcões das repartições.