ANTROPOLOGIA
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Na trilha de Lévi-Strauss
Aos 26 anos, ainda em ascensão no meio acadêmico, o antropólogo francês visitou diversas tribos no Centro-Oeste brasileiro e vivenciou experiências que o marcariam para sempre. Mais de 7 décadas depois, seguimos seus passos e vimos de perto como estão hoje as quatro principais sociedades indígenas estudadas por eleJader Lago
Há um ano, o mundo perdia um dos seus mais importantes pensadores contemporâneos. Em quase 101 anos de vida o franco-belga Claude Lévi-Strauss construiu uma vasta obra cAlcada principalmente no estruturalismo. Um universo de oposições que analisava diferentes áreas do conhecimento humano, da arte e filosofia à música e ecologia.
Mas muito antes de se tornar conhecido mundialmente, aos 26 anos, ele veio ao Brasil para ser professor da então recém-criada Universidade de São Paulo. Aqui, teve a oportunidade de comandar duas expedições pelo interior do país.
Entre 1935-1936 viajou pelo Mato Grosso para estudar dois grupos indígenas, os Kadiwéu e os Bororo. Com o sucesso dessa primeira viagem, concebeu um plano ainda mais ambicioso: cruzar o Cerrado no final de 1938 em busca dos Nambikwara e chegar até a Amazônia, onde encontraria os lendários Tupi, que encantaram os exploradores franceses Jean de Léry e André Thévet quase 400 anos antes dele.
No interior do Brasil, seguimos seus passos1 e vimos de perto como estão hoje as quatro principais sociedades indígenas estudadas por ele. Uma viagem pelo tempo que começa próxima à fronteira com o Paraguai.
Primeira Expedição (1935-1936)
De trem pelo interior de São Paulo até o Mato Grosso do Sul, Lévi-Strauss partiu para o trabalho de campo acompanhado da sua primeira mulher, Dina. Na bagagem, uma câmera 8 milímetros e muita ansiedade. “Estava em um estado de excitação intelectual intensa. Sentia-me revivendo as aventuras dos primeiros viajantes do século XVI. Por minha conta, descobria o Novo Mundo. Tudo me parecia fabuloso: as paisagens, os animais, as plantas…”2.
Depois de três dias de viagem, começou a ter contato com o estilo de vida do interior do Brasil. Andando a cavalo pelo Pantanal, Lévi-Strauss conhece os caboclos da região. Toma chimarrão e tereré com eles enquanto recolhe todas as informações possíveis sobre os Kadiwéu. A fama desses destemidos índios cavaleiros ameaçava o sucesso da empreitada, já que para os moradores locais a “expedição parecia-lhes previamente condenada”3.
Ignorando as previsões negativas, a viagem segue por mais alguns dias até seu destino. Passando pela Serra da Bodoquena, Lévi-Strauss se abriga das chuvas nas cavernas da região, um verdadeiro paraíso para ele, um apaixonado pela geologia. Lévi-Strauss dizia ter três “amantes”: “a geologia, Marx e Freud. Essas três coisas explicam que para conseguir entender os efeitos aparentes, da superfície, é necessário compreender quais são os movimentos mais profundos de todas as coisas”4. Uma lição fundamental para um observador que chega pela primeira vez numa tribo indígena.
Na aldeia Nalike, Lévi-Strauss enxergou muito além da tradição guerreira Kadiwéu. Num ambiente dominado por homens e seus cavalos, analisou a delicada arte feita pelas mulheres em seu próprio corpo. “Acredito que isso foi determinante em tudo o que eu escrevi posteriormente sobre a arte dos povos ditos primitivos em geral e a arte da minha própria sociedade”5.
Nalike não existe mais. Em seu lugar, surgiu uma fazenda, mas não muito longe dali, está a aldeia São João, na área rural do município de Porto Murtinho (MS).
A tradição guerreira continua presente em entusiasmadas corridas a cavalo realizadas em dias de festa. Mas e as mulheres pintadas? Num primeiro momento, não vemos nenhuma.
Com um pouco mais de conversa, muitas delas se animam. Em cerca de uma hora, preparam o jenipapo para a tinta. Todos se reúnem e começam as pinturas. Crianças, mulheres e velhos desenhando complexos arabescos em folhas de papel e no próprio corpo. Voltamos com centenas de desenhos com alguns temas que lembram os vistos por Lévi-Strauss. A virtuosidade não é a mesma, mas a tradição continua forte, e cada família ainda guarda um estilo próprio.
A preocupação dos Kadiwéu com a cultura é tão grande e necessária quanto a preservação de suas terras.
Apesar de viverem numa das mais antigas Terras Indígenas do país (concedida por D. Pedro II após a participação dos Guaikuru na Guerra do Paraguai) parte dos 532 hectares foi arrendada durante anos para fazendeiros da região. Depois de muita luta para recuperar quase toda a área original, os Kadiwéu ainda aguardam a regulamentação da Funai (Fundação Nacional do Índio) para projetos de parceria em pecuária, atividade que estaria de acordo com suas tradições e ajudaria na subsistência das três aldeias da região (Alves de Barros, São João e Tomásia). “Estamos mais unidos do que nunca! A parceria pecuária criaria um boi orgânico. Isso poderia financiar a preservação do meio ambiente que ainda está intacto na Terra Indígena”, afirma Francisco Matchua, diretor da Associação Indígena Kadiwéu.
O problema da manutenção, demarcação e preservação das Terras Indígenas é comum a todas as sociedades estudadas por Lévi-Strauss.
Com os Bororo, a questão é ainda mais grave. Quando os estudou, em 1936, o antropólogo ficou realmente impressionado com o que viu. “Diante de uma sociedade ainda viva e fiel à sua tradição, o choque é tão forte que desconcerta: nessa meada de mil cores, que fio se deve seguir primeiro e tentar desembaraçar?”6.
Foram dias passando por pontes precárias e navegando pelo rio São Lourenço até chegar às aldeias do rio Vermelho. Lá, durante algumas semanas, pôde observar de perto os rituais de um povo que seria determinante em toda a sua obra, da divisão da aldeia com os casamentos cruzados à complexa relação entre vida e morte. Com os Bororo, Lévi-Strauss “se sentia imerso pela riqueza e fantasia de uma cultura provavelmente excepcional”7.
Localizadas principalmente no município de Rondonópolis (MT), as aldeias Bororo ainda realizam rituais que chamam a atenção pela riqueza e complexidade. Testemunhar um funeral Bororo é uma experiência fascinante, porém restrita a poucos observadores.
O ritual pode durar meses e a captação de imagens fica limitada às pessoas próximas da família. Por isso, conheço essa cerimônia por meio do apoio do cinegrafista Paulinho Kadojeba, um Bororo que consegue aliar a paixão pelo audiovisual com a divulgação da cultura de seu povo. “Fico muito emocionado com as gravações. Depois, quando assisto novamente na ilha de edição, volto a lembrar da sensação de estar lá testemunhando tudo”, disse-nos depois.
A semelhança dessas imagens com o material filmado por Lévi-Strauss é gigantesca. No momento do “marido”, quando os homens carregam sobre a cabeça um grande círculo feito com folhas de Buriti, as imagens antigas podem ser perfeitamente sincronizadas com a música executada no ritual de 2009, na Aldeia do Garça.
No entanto, as mudanças são muito maiores do que aparentam. Os Bororo hoje possuem um território descontínuo e cerca de 300 vezes menor que o original.
A aldeia Jarudori, por onde Lévi-Strauss passou, foi invadida por fazendeiros e tornou-se uma cidade. Agora, além de ainda lutarem pelo reconhecimento de suas terras, os Bororo correm o risco de serem prejudicados por obras de infraestrutura, como a hidrovia Araguaia-Tocantins e a Ferronorte.
Organizar os funerais com a participação de toda a tribo e divulgar essas imagens é uma maneira de fortalecer as tradições e dar ainda mais voz às suas reivindicações. “Os primeiros contatos com os Bororo datam de 1719. É muito tempo de contato e o que mais dá orgulho para eles é poder viver a sua cultura. É isso que dá vitalidade e é isso que faz com que eles não se confundam com um grupo qualquer”, afirma a professora Sylvia Caiuby Novaes, chefe do departamento de Antropologia da USP (Universidade de São Paulo).
Segunda Expedição (1938-1939)
Com o rico material recolhido durante sua primeira viagem, Lévi-Strauss estava pronto para uma empreitada ainda maior. “Eu queria ir além e, muito ingenuamente, eu diria estupidamente, pensei: ‘vou encontrar gente ainda mais selvagem’. Fui para essa região do Brasil de que não se sabia nada na época, onde eu esperava encontrar selvagens ainda mais intactos, mais intrinsecamente selvagens, por assim dizer8.”
Comandando sua segunda expedição, ele partiu de Cuiabá em direção ao norte do Mato Grosso. Foram juntos 31 bois, diversas mulas, um caminhão e corajosos homens viajando durante meses pela Linha Telegráfica – um percurso que Cândido Rondon e seus soldados haviam desbravado 30 anos antes dele, numa verdadeira epopeia. “É engraçado porque a imagem que temos dele é a de um senhor austero, cercado de livros e fichas de trabalho. Mas o que ele fez no Brasil foi um trabalho de explorador! Isso demandava muito tempo, energia e planejamento. E isso para um intelectual, um filósofo, não é fácil. Acho que ele tinha certo prazer nisso”, analisa Philippe Descola, diretor do Laboratório de Antropologia Social do College de France.
No imenso planalto mato-grossense, viviam diversas tribos, entre elas os temidos Nambikwara, que haviam entrado em conflito com missionários protestantes seis anos antes da chegada de Lévi-Strauss.
“Desde esse incidente e alguns outros que se seguiram, o clima que reinava ao longo da Linha manteve-se tenso”, avaliava Lévi-Strauss9. O primeiro contato com esses índios era cercado de apreensão e acabou ocorrendo em um cenário que parecia ter saído de um Mundo Perdido.
O acampamento Nambikwara ficava ao lado de uma cachoeira de 90 metros. Era “Utiariti, posto da Linha Telegráfica à beira do rio Papagaio, onde uma balsa frágil demais impossibilitaria a passagem de caminhão. Em seguida, começaria a aventura”10.
A balsa continua no mesmo lugar, os Nambikwara, não. Eles vivem a cerca de 100 km dali, no município de Sapezal (MT).
Lévi-Strauss realizou com eles seu maior trabalho de campo, viajando com diferentes grupos durante meses pelo Cerrado. Ao contrário da fama que possuíam, eles encantaram o antropólogo pela sua simplicidade.
“Ele encontrou formas de humanidade marcadas pela ternura. Pode parecer uma palavra ridícula, mas ele mesmo a utilizava”, lembra Françoise Héritier, antropóloga e ex-diretora do Laboratório de Antropologia Social do College de France. O contraste chamou sua atenção, já que eram “populações pequenas e com poucos objetos. Uma fragilidade e nudez cultural que o tocou profundamente. Lévi-Strauss costumava dizer que se tratava da humanidade em estado puro”, completa Anne-Christine Taylor, diretora do departamento de Ensino e Pesquisa do Museu Quai Branly, em Paris.
Isolados em uma pequena área preservada, os Wakalitesu – primeiro grupo Nambikwara estudado por Lévi-Strauss – ainda possuem a simplicidade que tanto chamou a sua atenção. Mas sua fragilidade também impressiona.
A bucólica paisagem do Cerrado descrita por Lévi-Strauss foi transformada por gigantescas plantações de soja que cercam a aldeia. Para completar o quadro, a rodovia MT 235, que liga Sapezal a Campo Novo do Parecis, passa por dentro da Terra Indígena, escoando a produção agrícola da região.
Com muita sorte, nossa equipe chega à aldeia no dia da Festa da Menina Moça, a mais importante celebração para eles.
Os Nambikwara não revelavam seus nomes próprios, mas Lévi-Strauss os descobria por meio das crianças. Quando chegamos à aldeia, encontramos um de seus antigos informantes. Fotografado pelo antropólogo aos oito anos, Tito Wakalitesu lembra-se com clareza desse encontro. “Eu o conheci no norte de Juruena. Era um homem alto que perguntava muitas coisas na língua indígena”, diz.
Iluminados pela fogueira no meio da aldeia, todos participaram alegremente da festa.
Quase no final da cerimônia, o cacique Ari Wakalitesu afirma que a entrada de uma mulher na vida adulta representa muito para os Nambikwara: “É a chance de preservar nossa cultura e, com isso, defender a natureza que temos aqui. Devemos assegurar essa identidade cultural. Nunca nós iremos esquecer disso”.
Depois de meses viajando pelo Cerrado, Lévi-Strauss desbravou os rios e as corredeiras da Amazônia, onde encontrou um pequeno grupo Tupi-Kawahib que estava se desfazendo no sul de Rondônia. O tempo era curto e seu trabalho apenas serviu como base para outros estudos feitos posteriormente.
Os grupos Tupi-Kawahib acabaram sendo empurrados para o norte do Estado, principalmente pelas grandes fazendas de gado. Na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, os Amondawa formam um desses remanescentes. Relativamente isolados por cerca de 17 mil km2 de floresta, eles também começam a sofrer pela aproximação de garimpeiros e caçadores.
Depois de um dia inteiro andando pela mata em busca de alimento, os Amondawa, muitas vezes, retornam à tribo de mãos vazias. Suas flechas não encontram nenhum animal pelo caminho. Isso acontece porque alguns moradores da região, com modernas armas de caça, passaram antes deles pela floresta.
Revoltado com a situação, o cacique Tari Amondawa fez questão de chamar a nossa atenção para dizer que “antigamente a tribo não tinha tantas doenças. Isso acontece porque o mato está virando campo. Acabaram com nossos animais e peixes. O homem branco está se aproximando muito! Está se aproximando para quê?”.
Nas quatro sociedades indígenas que visitamos, a preservação das Terras está intimamente ligada à necessidade de reafirmação cultural, o instrumento mais forte que os índios possuem para lutar pelos seus direitos.
“Eu entendo que o Brasil tem a ambição de se tornar um país desenvolvido, o que ele já é em grande parte, mas existe uma contradição entre essa ambição e o respeito integral às culturas indígenas. É preciso dar a esses povos a oportunidades de fazerem, eles mesmos, suas escolhas. Isso representará uma força para o Brasil! As civilizações indígenas são uma chance para o Brasil conservar essa diversidade interior que é uma fonte de enriquecimento”, disse Lévi-Strauss11.
Jader Lago é produtor dos canais ESPN e diretor da série “Viajantes Radicais”.