Nada como um dia após o outro dia
No documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo Para o Mundo, lançado no último dia 16 de novembro na Netflix, quando nos são apresentadas as trajetórias de cada um dos integrantes, sentimos que o encontro do grupo foi uma maneira de escapar da política de controle da natalidade negra nos anos 80
Diferentemente de outros gêneros musicais que tiveram no seu meio ambiente motivos de “inspiração” para suas criações, o desespero de entes desaparecidos, as desapropriações violentas do Estado, a queda de barracos e famílias misturados com a lama, ou as constrangedoras ossadas de pessoas torturadas e mortas pelos militares, apresentou ao RAP um inimigo concreto, o articulador da desestruturação de muitas das famílias às quais esses próprios Mc’s pertenciam.
Quando um camburão arrastou o corpo de Cláudia pelas ruas do Rio de Janeiro, assistimos atônitos a uma “cerimônia de matrimônio” bizarra entre a república e o ódio, que poucos anos mais tarde levaria ao altar um presidente que contribuiria ativamente no extermínio de mais de 600 mil pessoas, devido sua omissão no enfrentamento à pandemia que nos cobriu. A vida é um desafio.
No documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo Para o Mundo, lançado no último dia 16 de novembro na Netflix, quando nos são apresentadas as trajetórias de cada um dos integrantes, sentimos que o encontro do grupo foi uma maneira de escapar da política de controle da natalidade negra nos anos 80. Nesse período, a violência inserida no cotidiano da zona sul se expressava como uma espécie de extensão dos anos mais fatais que o Brasil viveu sob regime militar. Assistir Eliane Dias, empresária do grupo, relatar com detalhes as cenas de brutalidade policial que presenciou sobre dois dos integrantes, assemelha-se com declarações de vítimas que trouxeram a público as denúncias de violação dos direitos humanos.
No decorrer do tempo, essas e outras experiências traumáticas gestaram no grupo ao menos dois dos discos mais influentes no comportamento do público naquele fim de século: Raio X Brasil, de 1993, e Sobrevivendo no Inferno, lançado após um intervalo de 4 anos. Ao passo que a música Homem na estrada “desbloqueou” o acesso dos Racionais Mc’s a todas as periferias e programas de rádios, o álbum seguinte exigiria do “Public Enemy brasileiro” o consciencioso afastamento dos palcos, devido a uma onda insuportável de violência que adentrou suas apresentações.
Nada como um dia após o outro dia. Foi no seu retorno às ruas que os Racionais Mc’s se reajustaram ao novo tempo do mundo: uma periferia quebrada, moída a pau, cheia de necessidades a serem supridas, um apetite pelas novas tecnologias, por novos meios de vida, que marcaria em um de seus principais discos a forte impressão dos sonhos do continente negro que são as favelas e as cadeias.
Estávamos com fome, e mesmo assim, naquele ano de 2002, vestimos a camisa, pintamos as vielas, cobrimos de bandeiras o chão para onde voltou campeã a seleção brasileira, e após 13 anos de luta, elegemos Lula presidente do Brasil. Por isso é significativo que no álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), a primeira faixa intitulada Sou + você, seja uma mensagem aos sobreviventes, um “Vamo acordar! Vamo acordar!” que ainda ecoa alto nas nossas cabeças 20 anos após seu lançamento.
Aquele salve da cadeia em Vida Loka Pt 1, chama a nossa atenção para a vida: se o amigo estava preso, significa que não era mais um nome a integrar a lista de óbitos que aparecia em álbuns anteriores: essa relação direta com a periferia, faz com que seus discos permaneçam como um entendimento profundo das raízes do preto e do pobre brasilieiro.
Negro Drama transformou para sempre a maneira como o preto no Brasil enxerga a si mesmo, o que talvez explique porque cada nova apresentação dos Racionais Mc’s signifique uma espécie de julgamento contra a sociedade brasileira, diante de um público ou “júri” completamente inflamado. Imediatamente os racistas perceberam o poder das músicas e, sendo assim, interditaram por um período suas apresentações públicas. Inimigos públicos?
Os últimos anos nos marcaram com perdas profundas tanto no âmbito pessoal quanto no público: quando derrubaram nossos líderes, como a deputada Marielle Franco, caímos também. Foi em “tudo, tudo, tudo vai, tudo é fase irmão”, de Vida Loka Pt 2, que nos amparamos.
Hoje, celebremos os “quatro pretos mais perigosos” do país estarem vivos em terra inimiga, como fala KL Jay. Fazendo do sentimento de insatisfação engasgado no peito do povo, uma arte capaz de guiar uma legião (negra) que busca no candomblé, na umbanda, na igreja, no baile, nas salas de aula das universidades públicas e em cada uma das músicas do grupo, a fórmula mágica da paz que preservará cada uma de nossas vidas negras. Ogun yê, Jorge.
Diego Jandira é violonista, cientista social graduado pela Unifesp e criador do projeto Violão Negro Brasileiro.