Não se volte contra o oprimido, mas contra o opressor
As classes dominantes sempre criaram maneiras de fomentar o ódio entre as classes subalternas
Um grande problema interpretativo que se irrompe como um óbice ao progresso das forças produtivas é a ideologia dominante que dissemina a ideia de que o oposto do trabalhador é o preguiçoso, ou como é chamado ordinariamente, o “vagabundo”, ou até mesmo, o criminoso, sobretudo, o ladrão urbano.
Esse raciocínio ocorre porque o capitalismo esconde sua interpretação original sobre o que é trabalho. De acordo com o sociólogo francês Bernard Friot, o capitalismo “identifica a produção apenas com as atividades realizadas dentro de um enquadramento de subordinação a um empregador proprietário do instrumento de trabalho, em vista da valoração de um capital”.[1] Ou seja, o trabalho deve estar subordinado ao capital.
Se não há capital não há trabalho. Levar as crianças para a escola, lavar a louça da janta, ou arrumar a casa, não se constituem em trabalho porque não há o seu contraposto: o capital. A relação que move o modo de produção capitalista resume-se no conflito entre capital e trabalho, portanto, os que estão em oposição ao trabalhador não são aqueles que sofrem e se violam fora do mercado de trabalho, mas o capital, ou melhor, aqueles que detêm o capital. A dialética está entre capital/trabalho e não trabalho/preguiça ou trabalho/criminalidade. Nela está a origem de todo o distúrbio social. O capital está para o trabalho assim como o trabalho está para o capital, de modo que o favorecimento de um acarreta no prejuízo do outro inexoravelmente.
O maior exemplo do que estou dizendo são as medidas para solucionar a crise econômica. No sistema capitalista, para salvar as grandes fortunas, aumenta-se o desemprego e muda-se as leis trabalhistas para que quando as empresas se recompuserem, os trabalhadores recontratados aceitem submeterem-se a uma situação ainda mais deteriorada. As soluções para a crise foi em favor do capital, logo contra o trabalho.
É lógico que a ideologia dominante não vai fomentar essa perspectiva e sustentará a fórmula de que a criminalidade é a principal questão que prejudica o trabalho. As notícias dos jornais salientam que o aumento da violência enfraquece o comércio, gerando desemprego. Assim, os trabalhadores canalizam toda a sua ira para o combate à criminalidade. Mas, por outro lado, a burguesia sempre usa de meios paliativos para combatê-la, porque sabe que a violência urbana é um instrumento útil para conter as revoltas sociais antissistêmicas.
A massa trabalhadora irá se juntar à classe dominante para eliminar um suposto mal comum, fazendo a solidariedade entre os trabalhadores se voltar para o ódio aos excluídos do processo conduzido pela própria burguesia. A violência que o cidadão comum sofre na escuridão das noites cariocas, ou em plena luz do dia, é política. Trata-se de uma forma fortuita de administrar a solidariedade entre os trabalhadores através de uma frase vazia: “bandido bom é bandido morto”. Esse procedimento manipulador é importante para se manter as relações sociais de produção, porque é mais que óbvio que da exploração do trabalho nasce, naturalmente, a solidariedade entre os explorados, nas palavras de Karl Marx: “a solidariedade dos homens não é uma frase vazia, mas uma realidade, e a nobreza da humanidade irradia sobre nós a partir das figuras maltratadas pelo trabalho”.[2]
A ideia que sustenta a oposição entre trabalho e criminalidade apoia-se, ainda, nos países europeus capitalistas onde os índices de violência são baixíssimos e, portanto, as condições de vida dos trabalhadores são mais dignas que em outras regiões onde a situação é mais crítica. No entanto, as classes dominantes desses países não precisam da criminalidade para se manter no poder, mas da exploração dos países onde reina o banditismo e a delinquência. Empresas dinamarquesas como a Lego (que recentemente propôs a alteração do material de seus brinquedos) ou norueguesas precisam sugar o trabalho e as riquezas naturais de outros países para manter as relações sociais confortáveis em seus respectivos países. A alienação do povo de lá é diferente do povo daqui, mas se combinam, isto é, sustentam uma lógica que permite o funcionamento do sistema-mundo.
As classes dominantes sempre criaram maneiras de fomentar o ódio entre as classes subalternas. Na Idade Média, as pessoas eram instigadas a denunciar os vizinhos que apresentassem um comportamento adverso da religião dominante, sob a acusação de bruxaria ou de judaísmo. No Brasil dos finais do Império e do início da República, falava-se das classes perigosas, descendentes de escravos, em sua maioria, que desafiavam a política de controle social. Nos Estados Unidos dos inícios do século XX, o negro era visto como o grande inimigo, causador do desemprego e dos problemas sociais que se desenrolaram após a abolição da escravidão e da extensão dos direitos civis. Na Europa de hoje, o imigrante voltou a ser hostilizado, sendo acusado de roubar o emprego dos nacionais fazendo renascer os partidos de extrema-direita no continente.
Aqui no Brasil e, em outros países latino-americanos, as classes dominantes agenciam a criminalidade ideologicamente para administrar a sua dominação, definindo-a, por meio de um grande controle midiático, como a causadora de toda a desgraça social. Impulsionados pelo consumismo, vamos nos direcionando contra os excluídos e nos distanciando do verdadeiro algoz do trabalho, a ganância do capital que gera um trabalho cada vez mais indigno, assim como a criminalidade dos que não se vendem ao capital, porém contribuem para a sua dinâmica.
Portanto, a criminalidade não é uma consequência negativa do sistema capitalista, ela é parte fundamental desse sistema. Parece que as elites leram os ensinamentos do padre Antônio Vieira que dizia não “ser muito apaixonado do medo, acho melhores raízes ao temor que à esperança”, quando agenciava, em seu “Sermão de São Roque”, de 1644, o medo para consolidar, assim, o poder de D. João IV. O poder precisa gerenciar o medo. Sem o temor à criminalidade, o proletariado teria medo do quê? Provavelmente da classe dominante. Um medo que, ao longo do tempo, poderia se transformar em revolta, levando o mundo burguês ao colapso…
*Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
[1] Bernard Friot, Chega de lutas defensivas, Le Monde Diplomatique Brasil, dez. 2017.
[2] Karl Marx, Manuscritos econômicos-filosóficos, São Paulo, Martin Claret, 2005, p.156.