“Não tínhamos dinheiro nem para comprar um bebedouro”
Há cerca de dez anos, ser socialista nos Estados Unidos ainda era um trabalho para abnegados. A candidatura de Bernie Sanders nas primárias democratas de 2016 – quando ele surpreendeu as expectativas, mas perdeu a indicação para Hillary Clinton – tornou essa opção menos ingrata, assim como testemunha a narrativa de uma nova experiência militante
“Quando foi que todo mundo virou socialista?”, perguntou recentemente, na capa, a revista New York. Para muitos jovens norte-americanos, constatava esse periódico da moda, “apresentar-se como socialista parece mais sexy que exibir qualquer outro qualificativo”.1
A mudança pode surpreender. Durante a segunda metade do século XX, era preciso ser masoquista para se dizer adepto dessa corrente. Além do risco de ser desprezado ou ridicularizado, tal declaração colocava a pessoa à margem da cena política. Juntei-me aos Socialistas Democratas da América (Democratic Socialists of America, DSA) em 2007, ainda adolescente. Essa era, na época, a maior organização “socialista” dos Estados Unidos, a única representada no seio da Internacional do mesmo nome (saiu em 2017). O movimento contava com apenas 5 mil membros, num país, o mais capitalista do mundo, de 327 milhões de habitantes.
Na época, nossas reuniões aconteciam geralmente em casas de particulares ou em locais que nos eram cedidos de graça. Na assembleia, frequentemente com cerca de dez pessoas, viam-se alguns jovens, como eu, mas sobretudo militantes com mais de 60 anos e ninguém da geração intermediária. Aprendemos a cantar a Internacional, ouvíamos relatos dos filhos de comunistas ou veteranos da Nova Esquerda dos anos 1960 e 1970. Cultivávamos a mesma linguagem, a mesma luta, mas estávamos totalmente deslocados. Trabalhei, durante um verão, na sede nacional em Nova York, num imóvel que partilhávamos com executivos elegantíssimos. Não tínhamos dinheiro para comprar um bebedouro e ter água fresca: íamos encher nosso copo com água morna na pia dos banheiros, sob o olhar zombeteiro de nossos vizinhos. Os socialistas democratas da América pareciam sobreviventes, e nos acostumamos a essa situação.
O partido dos DSA nasceu de uma cisão do Partido Socialista da América (Socialist Party of America, SPA), um grupo outrora influente cujo representante mais emblemático continua sendo Eugene Debs (ver artigo na pág. anterior) e que, no início dos anos 1970, contava apenas com algumas centenas de membros. Abalado por divisões quanto à atitude a tomar diante da Nova Esquerda, do Partido Democrata e da Guerra do Vietnã, o SPA cindiu-se em três em 1972. Sua ala direita fundou os Sociais-Democratas, EUA (Social Democrats, USA), dirigidos por Bayard Rustin, um militante típico do movimento pelos direitos civis que foi consultor de Martin Luther King. Profundamente anticomunista, essa organização se contenta em ser um grupo de pressão que procura, sem sucesso, influenciar decisões sindicais. A ala esquerda criou o Partido Socialista, EUA (Socialist Party, USA). Ela perpetua a tradição de Debs, apresentando-se de forma independente nas eleições. Mas, se Debs conseguiu perto de 1 milhão de votos em 1912, seu sucessor de 1976 obteve apenas 6.038, e o de 2012, 4.430. Por fim, a corrente centrista se uniu em um Comitê de Organização dos Socialistas Democratas (Democratic Socialists Organizing Committee, DSOC), liderado por Michael Harrington. Segundo esse professor de Ciência Política e militante socialista de longa data, a natureza antidemocrática das leis eleitorais norte-americanas – entre outros obstáculos – torna vã qualquer tentativa de apresentar candidatos independentes nas eleições. Harrington propugnava então pela união dos movimentos sociais (estudantes, voluntários…), dos sindicatos e do Partido Democrata para formar uma coalizão social-democrata à europeia, em um país cuja cultura política ignora esse termo. O DSOC acabou por se fundir com o New America Movement [Movimento Nova América], organização herdada da Nova Esquerda, tornando-se os Socialistas Democratas da América em 1983.
O novo partido lutou pelo pleno emprego, combateu o apartheid na África do Sul e aplaudiu, no começo dos anos 1980, os governos socialistas da França e da Grécia. Mas isso não teve nenhum efeito sobre um Partido Democrata que, nessa época, operou uma brusca virada à direita, rompendo com o espírito do New Deal e sua vontade de desenvolver o Estado de bem-estar social. Willy Brandt, então líder do Partido Social-Democrata alemão, dizia que Harrington poderia governar um país europeu. Mas, como escreveu o jornalista conservador William F. Buckley, ser o mais eminente socialista dos Estados Unidos é mais ou menos como ser “o prédio mais alto de Topeka, no Kansas”.2 Quando Harrington morreu, em 1989, poucos meses antes da queda do Muro de Berlim, o socialismo e mesmo a social-democracia haviam praticamente desaparecido do cenário político. Privados de seu comandante e mal conseguindo angariar novos recrutas, os DSA se contentavam com viver a duras penas.
Durante esse tempo, em Vermont, a algumas centenas de quilômetros de nossas pequenas localidades nova-iorquinas, Bernie Sanders se preparava para criar um novo foco de resistência. Sua carreira política começou no anonimato e, como a de Harrington, dentro do que restara do Partido Socialista da América. Estudante nos anos 1960, ele lutou ao lado dos trabalhadores nova-iorquinos e pelos direitos civis, mas acabou deixando seu Brooklyn natal para se instalar no Estado rural de Vermont. Sua primeira experiência eleitoral, em 1972, refletiu a confusão da esquerda norte-americana da época: só obteve 2,2% dos votos em uma eleição parcial para o Senado. Mas isso não impediu o tenaz Sanders de continuar a fustigar “o mundo de Richard Nixon, dos milionários e bilionários que ele representa”. “Vivemos num mundo onde 2% da população possui mais de um terço da riqueza pessoal nos Estados Unidos”, martelava já naquela época.3 Essas palavras singelas acabaram por impressionar os eleitores. Após um início de carreira semeado de fracassos, Sanders conquistou a prefeitura de Burlington em 1981, apresentando-se como “socialista independente”.
Seu discurso, centrado nas desigualdades, alimentou uma popularidade local que por fim o levou a Washington, à Câmara dos Deputados (1991 a 2007) e depois ao Senado (a partir de 2007). No momento de enfrentar Hillary Clinton nas primárias democratas de 2016, o senador de Vermont ainda era, contudo, pouco conhecido no plano nacional; seu programa audacioso (seguro-doença para todos, universidade gratuita, salário mínimo de US$ 15 por hora…) e seus discursos insistentes contra as desigualdades seduziram milhões de norte-americanos, que em sua maioria jamais tinham ouvido falar em socialismo, mas estavam dispostos a apoiar uma política capaz de priorizar suas necessidades. Derrotado por sua rival, o senador socialista ainda assim conseguiu 11 milhões de votos. Em poucos meses, ele tirou o socialismo norte-americano do torpor, remontando às suas raízes: a luta de classes e uma base classista.
O contexto social desempenhou um papel determinante nesse renascimento. Desde a crise financeira de 2008, a raiva provocada pelo poder das grandes empresas e pela estagnação dos salários precipitou o retorno dos movimentos de protesto: longa greve dos assalariados do setor público no Wisconsin e movimento Occupy Wall Street em 2001, mobilização dos trabalhadores de fast-food pelo aumento do salário mínimo em 2014, greve dos professores e enfermeiros em 2018, para só citar alguns. Publicações acompanharam essa renovação, tentando definir uma linha política clara à esquerda do Partido Democrata. A revista Jacobin, fundada em dezembro de 2011, viu o número de seus assinantes triplicar nos dez primeiros meses de 2016, por ocasião da campanha de Sanders, e chegar a 15 mil. A maior parte dos novos leitores é formada por jovens de menos de 30 anos, com frequência filhas e filhos das classes superiores ou de membros das profissões liberais. Na internet, não é raro ver esses convertidos atacarem o Partido Democrata e a mídia dominante, exibindo o pictograma da rosa, símbolo de sua adesão ao movimento socialista. Nas últimas primárias democratas, Hillary pagou caro por isso. Em 4 de novembro de 2016, poucos dias antes do confronto eleitoral com Donald Trump, várias dezenas de socialistas democratas – entre os quais o autor destas linhas – tomaram distância da candidata democrata: “Na prática, fazer campanha por Clinton implica convencer os eleitores de que ela e seu partido evoluíram para sugerir algumas medidas (atacar o setor das finanças, opor-se aos maus acordos de livre-comércio, aumentar o salário mínimo nacional para US$ 15 por hora, defender e aperfeiçoar a seguridade nacional etc.), sabendo que, muito provavelmente, eles não farão isso. Os socialistas não devem escolher esse caminho, que poderia anular os esforços para construir uma base após as eleições, pois, o mais das vezes, a tentativa de ‘exigir dos democratas uma prestação de contas’ não leva a nada”.4 Essa postura provocou um áspero debate à esquerda, com os representantes do Partido Comunista dos Estados Unidos considerando, por exemplo, que a necessidade de derrotar Donald Trump obrigava todos a se alinhar com Hillary Clinton.
Logo após a eleição, ficamos agradavelmente surpresos. Receávamos ser responsabilizados pela derrota da candidata democrata por termos nos encarniçado tanto contra ela nos últimos anos. Isso não aconteceu. A mídia e os caciques democratas preferiram pôr a culpa nos russos. Os DSA, por seu turno, assistiram à chegada de uma torrente de novos recrutas e contam hoje com 50 mil membros. Após a eleição, o número de assinantes da Jacobin dobrou, passando de 15 mil para 36 mil em apenas dois meses. A midiatização de algumas personalidades e a superexposição de nossos membros nas redes sociais trabalharam sem dúvida a nosso favor.
O partido dos DSA está aberto a todos e a adesão pode ser feita pela internet. Como era de esperar, ele se tornou um refúgio onde anarquistas e comunistas se misturam com partidários de Sanders. Sua estrutura descentralizada permite às seções locais funcionar de maneira bastante autônoma, o que favorece uma grande diversidade de formas de participação: desde ajuda à criação de associações de inquilinos até uma mãozinha aos que precisam consertar o farol do carro, passando pelas grandes campanhas nacionais como “Medicare for All” (Assistência Médica para Todos, do nome do seguro-doença público destinado aos idosos).
Os DSA adquiriram também certo peso no cenário político, a ponto de representarem um adversário eleitoral cada vez mais duro de roer. Em Chicago, dos sessenta vereadores, seis pertencem ao movimento socialista. No plano estadual, socialistas foram eleitos para as assembleias da Virgínia e de Nova York.
Já no nível federal, a organização contribuiu ativamente, por ocasião do escrutínio de meio mandato de 2018, para a eleição de uma nova geração de democratas, cujo representante mais famoso é sem dúvida Alexandria Ocasio-Cortez, eleita pelo estado de Nova York para a Câmara dos Deputados. “AOC”, como é chamada, está mais próxima do Partido Democrata que a maior parte dos DSA. Ela não esconde suas convicções socialistas e, graças a seu carisma e hábil utilização das redes sociais, soube conquistar fama nacional, o que permite a nossos discursos ter enorme audiência, malgrado nossa fraqueza numérica. Desde 2016 e da campanha de Sanders, milhões de norte-americanos puderam assim conhecer nossas ideias.
Não obstante, começamos a perceber os limites de nossa capacidade midiática e daquilo que ela pode obter. Existe atualmente, nos Estados Unidos, um forte movimento de rejeição das desigualdades, que entretanto não é perfilhado pelos DSA. Sanders tem poucos vínculos com ele. Já Ocasio-Cortez procura transformar o Partido Democrata a partir de dentro. Enfim, os DSA lembram essencialmente os militantes brancos oriundos das classes médias.
Trata-se, pois, de nos fixarmos doravante em um movimento de classe. Os militantes estavam na linha de frente por ocasião das greves de 2018-2019, em escolas e hospitais. Intensificando essas ações sindicais e ativistas, eles esperam aumentar sua influência junto aos trabalhadores. Milhões de norte-americanos já estão convencidos da necessidade de uma mudança em grande escala. O movimento socialista não está mais, portanto, recebendo uma transfusão de sangue, embora apenas inicie sua convalescença.
Bhaskar Sunkara é fundador e diretor da revista Jacobin (Nova York), vice-presidente do Partido dos Socialistas Democratas da América e autor de The Socialist Manifesto. The Case for Radical Politics in an Era of Extreme Inequality [O Manifesto Socialista. A política radical numa era de extrema desigualdade], Basic Books, Nova York, 2019.
1 Simon van Zuylen-Wood, “When did everyone become a socialist?” [Quando foi que todo mundo virou socialista?], New York, 4 mar. 2019.
2 Capital do Kansas, Topeka é uma cidade de porte médio cujo edifício mais alto tem 117 metros.
3 Fala no rádio em 16 de outubro de 1973, citada por Michael Kruse, “Bernie Sanders has a secret” [Bernie Sanders tem um segredo], Politico Magazine, 9 jul. 2016.
4 “The Left is under no obligation to support Hillary Clinton” [A esquerda não tem obrigação de apoiar Hillary Clinton], In These Times, 4 nov. 2016. Disponível em: <www.inthesetimes.com>.