Nas ruas, a volta do povo.
O que até agora era chamado, com desdém, de “a rua árabe” se transformou em “povo”, mesclando todas as classes sociais e todas as faixas etárias. Será essa uma nova “Primavera Árabe”, esperada há tanto tempo, desde a vitória sobre as forças coloniais britânicas e francesas?Georges Corm
Desde 18 de dezembro de 2010, data na qual Mohammed Buazizi se imolou pelo fogo, em uma cidadezinha do interior da Tunísia, reapareceu um personagem que parecia ter se volatilizado do cenário político árabe há décadas: os cartazes agitados por centenas de manifestantes em Tunis, no Cairo, em Bagdá, em Manama, Benghazi, Sanaa, Rabat, Argel e em outros lugares falam em vontade do “povo”. O que até agora era chamado, com desdém, de “a rua árabe” se transformou em “povo”, mesclando todas as classes sociais e todas as faixas etárias. As reivindicações são simples e claras, sem nada a ver com qualquer jargão ideológico, nem com qualquer tentação de demagogia, religião ou de particularismo. Em uma linguagem despojada e direta, os enérgicos slogans vão direto ao alvo: de um lado, a reivindicação de liberdade política, de alternância de poder, de fim da corrupção, do desmonte dos órgãos de segurança; de outro, a exigência de dignidade social e, portanto, de oportunidade de emprego e salários decentes.
Será essa uma nova “Primavera Árabe”, esperada há tanto tempo, desde a vitória sobre as forças coloniais britânicas e francesas, que de comum acordo com Israel se voltaram contra aquele que era, em 1956, o símbolo da resistência, o Egito de Gamal Abdel Nasser, anti-imperialista e terceiro-mundista? Aquele período chegou ao fim de modo brutal em 1967, com a derrota dos exércitos do Egito, da Síria e da Jordânia frente a Israel e, em seguida, com a morte prematura do carismático líder Nasser, em setembro de 1970. Entre 1975 e 1990, mergulhado no caos e na violência, o Líbano se transformou no primeiro exemplo negativo de destaque, com uma profusão de milícias armadas e de exércitos estrangeiros, sem falar da ocupação israelense. Caso ao qual se seguiram outras situações sangrentas, com ênfase para a Argélia e Iraque. Isso permitiu que os regimes no poder se revelassem cada vez mais autoritários, outorgando a si mesmos o papel de guardiães da estabilidade política. O espectro da “libanização”, e em seguida o da “iraquização”, tornou-se onipresente.
Outros acontecimentos pesaram como chumbo sobre as sociedades árabes. As ideologias de identidade baseadas no islamismo substituíram o nacionalismo anti-imperialista e laico. Podemos localizar sua fonte na promoção ativa do salafismo, difundido entre as monarquias petrolíferas do Golfo, especialmente o wahabismo saudita. O nacionalismo árabe foi acusado de todos os males, e a solidariedade pan-islâmica vista como uma solução para todos os problemas. Isso foi o que tentou fazer, durante a década de 1970, a Organização da Conferência Islâmica (OIC), criada sob a liderança da Arábia Saudita e do Paquistão, e que eclipsaria o Movimento dos Países não Alinhados e a Liga dos Estados Árabes, paralisada por querelas internas. No final daquela década, Riad e Islamabad conseguiram mobilizar setores da juventude pela jihad contra as tropas soviéticas no Afeganistão. Esse jihadismo seria em seguida transferido para a Bósnia, para a Chechênia e finalmente para o Cáucaso. Uma parte desse movimento se tornou takfirista, isto é, voltaria sua atenção para outros muçulmanos, considerados infiéis. Seu herói intelectual seria Sayyied Qotb;1 e seu herói militar e guerreiro, Osama Bin Laden.
A revolução iraniana
Outra identidade ideológica, a da revolução iraniana, também teve um impacto sobre o mundo árabe. Muito diferente do wahabismo, por seu tom xiita e pela adoção de alguns princípios constitucionais modernos, ela reivindica o papel de herdeira do anti-imperialismo e do socialismo do período da anterior, mas com uma linguagem islamizada. Outra característica, um virulento antissionismo. A guerra lançada por Saddam Hussein contra o Irã em 1980, para tentar reduzir a nova influência de Teerã no Oriente Médio, se transformou em novo ponto forte de distensão, uma pista falsa que perdura até hoje. De fato, ela provocou a invasão iraquiana do Kuwait em 1990, a liberação pela coalizão militar ocidental e, doze anos depois, a invasão americana do Iraque, em 2003. Isso fez com que, então, a sociedade iraquiana mergulhasse em um comunitarismo exasperado, em uma corrupção multifacetada e em uma violenta desintegração.
A involução da identidade religiosa também criou fortes tensões em vários países árabes. O caso extremo foi o da Argélia, entre 1991 e 2000. Em todo o mundo árabe, o espantalho islâmico consolida os poderes estabelecidos e a onipotência de sua polícia, o que convém tanto aos países europeus quanto aos Estados Unidos. Os sangrentos e espetaculares ataques de Nova York e Washington, atribuídos a Bin Laden e à Al Qaeda, em setembro de 2001, abriram um fosso ainda mais profundo. Eles fortaleceram regimes classificados de “moderados”, em virtude de sua política externa se acomodar ao molde dos temores da ordem do dia na Europa e nos Estados Unidos, abstendo-se de qualquer crítica às repetidas violências israelenses contra os palestinos e os libaneses. O único objetivo da diplomacia ocidental passou a ser o eixo sírio-iraniano – rebelde aos olhos de Washington e apoiador dos dois focos de resistência a Israel, o Hamas e o Hezbollah, respectivamente na Palestina e no Líbano. Nessa paisagem sombria e enrijecida, como alguém poderia ter previsto revoltas populares da magnitude à qual se tem assistido?
Vista grossa
Na Europa e nos Estados Unidos, a cegueira de observadores no mundo árabe foi total, tanto no que diz respeito às questões econômicas, quanto às sociais. Ninguém tinha do que reclamar, enquanto as grandes empresas multinacionais pudessem continuar fazendo lucrativos negócios, no quadro da liberalização progressiva das economias árabes, em curso durante as últimas três décadas, e enquanto os governos e seus comparsas locais pudessem continuar acumulando fortunas gigantescas, beneficiando-se da indústria do luxo, na Europa ou em outro lugar qualquer, sem falar do mercado imobiliário das grandes cidades. Uma vez satisfeitos os dogmas neoliberais, os novos empresários árabes – milionários do lucro fácil do petróleo, incubados nas esferas governamentais – foram considerados o melhor sinal da “modernização” das economias árabes. Ex-militantes nacionalistas árabes ou marxistas convertidos ao neoliberalismo e ao neoconservadorismo americano. O dinheiro do petróleo dominava a mídia árabe.
Todo o resto foi negligenciado: as estatísticas alarmantes de desemprego, muito acima da média mundial, especialmente entre os jovens; a fuga de cérebros; os fluxos migratórios crescentes; a manutenção de grandes bolsões de analfabetismo; as favelas gigantescas; o poder de compra extremamente baixo de expressivas camadas da população, desprovidas de qualquer tipo de assistência e cobertura social; a corrupção generalizada; e a gestão anárquica do setor privado – ele mesmo, um grande corruptor e muitas vezes objeto, como na Tunísia, da atividade predatória dos mais altos dignitários do poder. Por trás das taxas de crescimento relativamente altas, em anos recentes, e das reformas destinadas a obter boas notas de classificação, das agências financeiras internacionais e da União Europeia, a realidade social e econômica é bastante diferente.2
Os investimentos privados locais, ou aqueles oriundos dos milionários da receita do petróleo, estão migrando para o setor fundiário de luxo e para o turismo, assim como para a distribuição comercial, as telecomunicações e o setor bancário, onde ocorreram muitas privatizações (ler artigo deSamir Aita, pág. 38). As Bolsas de Valores e os preços dos imóveis foram valorizados, enriquecendo ainda mais os grupos privados de natureza familiar e clientelista. O crescimento das fortunas tem sido desproporcional, se comparado à baixa produtividade das economias, cujo potencial é pouco ou nada explorado. O investimento na agricultura, indústria ou serviços de alto valor agregado (computadores, eletrônicos, indústrias e pesquisa médica, energia solar, resíduos [lixo], meio ambiente, gestão da água etc.) é extremamente baixo. Os laboratórios de pesquisa e desenvolvimento são praticamente inexistentes no setor privado, que investe apenas em atividades de baixo valor agregado, que tenham taxas muito elevadas de lucro, e não apresentem risco financeiro.
A qualidade da evolução da economia real nunca interessou nem aos governos locais nem às instituições e países que os apoiam.3 A emigração é incentivada como solução para o crescimento da população e para o desemprego. Ela é elogiada por toda a literatura de organizações internacionais como sendo uma rápida correção da pobreza, apesar da ausência de evidências do impacto positivo da migração nos países exportadores de mão de obra.4 Esse conjunto de agentes contenta-se em criar microcréditos que, apesar de úteis como elemento atenuador da pobreza, na verdade nunca conseguiram reduzi-la efetivamente.
A questão é saber como os movimentos atuais conseguirão resistir a todo tipo de recuperação, inclusive às contrarrevoluções. Será longo e árduo o caminho do mundo árabe, de recuperação da dignidade e da liberdade, tanto internamente quanto no cenário internacional. A repressão pode ser feroz e a interferência externa pode aumentar, como já acontece atualmente no Bahrein e na Líbia, fazendo surgir o espectro da guerra civil. A Primavera Árabe se interromperá na Tunísia e no Egito? A Líbia se transformará em caso exemplar negativo, provocando o temor de prolongadas guerras civis e de intervenções externas de peso?
Os quatro “perigos”
O perigo principal desses primeiros passos de revolução é o desejo vivamente expresso pelos Estados Unidos e pela Europa de acompanhar as reformas democráticas que se esboçam. “Acompanhar” quer dizer, aqui, conquistar uma nova clientela, à força de [injeção de] euros e dólares. Ora, já não seria hora de os povos que iniciaram essa jornada assumirem o próprio destino, sem necessidade de que alguém o indique a eles, interferindo em seus assuntos internos? Os princípios republicanos e de cidadania herdados da Revolução Francesa foram popularizados na década de 1820 entre as elites do mundo árabe por diferentes textos de intelectuais, religiosos esclarecidos, ativistas de direitos humanos da primeira hora. Todos os pensadores dessa Nahda(Renascença) contribuíram para divulgar o progresso na liberdade na Europa. Sob a monarquia, o Egito teve uma movimentada vida parlamentar; o Iraque também, assim como a Síria republicana, da fase anterior à tomada do poder pelos oficiais do partido Baas; e o que dizer da Tunísia, cuja intelligentsiacontribuiu enormemente, no século XIX, para divulgar os princípios constitucionais modernos? Por isso, é urgente agradecer aos americanos e europeus por sua solicitude.
O segundo perigo reside na fraqueza das economias locais e em sua dependência, de múltiplas formas, em matéria de produtos alimentícios e de primeira necessidade. O paradoxo, aqui, é que todas essas economias têm dinheiro bastante para investir em uma dinâmica econômica nova; mas, em contrapartida, a implantação e a aplicação dessa dinâmica exige que se ataquem as raízes da economia de mercado de baixo valor agregado – que impera em toda parte –, passando a uma economia de produção plena, aproveitando os recursos existentes, naturais e humanos. Em vez de buscar ajuda externa, o objetivo deve ser atrair um grande número de talentos estrangeiros que, unindo seus esforços aos da população local, poderiam imprimir uma nova direção às políticas públicas, inspirando-se no modelo dos tigres asiáticos, sem depender nem se deixar condicionar pela ajuda externa.5
O terceiro perigo é o surgimento de contradições sociais entre as classes médias urbanas e as camadas mais pobres da população, rurais e urbanas, cuja unidade tem até agora feito o sucesso dos movimentos de protesto. Pode ser particularmente perigosa uma coalizão de interesses entre grupos econômicos privados e as classes médias, com o objetivo de reduzir as reivindicações das classes mais pobres, incluindo os trabalhadores. De comum acordo com os interesses externos da política econômica, ela poderia pôr a perder, progressivamente, todos os ganhos conseguidos até agora pela volta da população à cena política. As justas reivindicações salariais certamente serão atendidas, mas seria ainda melhor se o aparelho produtivo saísse rapidamente da esfera da economia financista, pouco produtiva e de baixo valor agregado, e se os investimentos estatais e privados se voltassem para setores inovadores, como a pesquisa e o desenvolvimento, a diversificação da economia afastada dos setores fundiário, financeiro, do comércio e da distribuição. É urgente proceder a uma revisão drástica dos sistemas fiscais, não só para alcançar a equidade fiscal, mas sobretudo para equalizar as taxas de lucro entre os setores de risco zero e de baixo valor agregado, e os setores que exigem que se corram riscos e que exista a capacidade de pesquisa e desenvolvimento.
Um último perigo, por fim, é o jogo que todos os chefes de Estado ameaçados jogaram até agora: os regionalismos e os tribalismos, as divisões entre sunitas e xiitas, entre cristãos e muçulmanos. Essas tendências centrífugas resultam mais do desconforto resultante de um desenvolvimento social econômico desigual, do que de oposições de identidade irredutíveis, de natureza antropológica e de essência íntima. Também nessa esfera, só a aplicação de um novo dinamismo econômico pode inviabilizar qualquer tentativa de explorar esses aspectos.