Navegando em águas turbulentas
Assim como os Estados Unidos sobreviveram à desventura no Vietnã e dela emergiram fortalecidos, eles estão aptos a superar o fiasco no Iraque. Embora momentaneamente desconcertado, o império americano continuará seu caminho, sob direção bipartidária e a pressão das mega corporações
Agora que o presidente George W. Bush é quase um passado ingrato, a estratégia de usá-lo como alvo de críticas cedeu lugar às especulações a respeito de como John McCain ou Barack obama moldarão a política externa americana, caso cheguem à Casa Branca.
O momento remonta a Calígula, o terceiro imperador romano, que, embora fosse um déspota cruel, tornou-se conhecido por indicar seu cavalo favorito, Incitatus, para ocupar um assento no Senado e, em seguida, promoveu-o a cônsul. Foi uma maneira perversa de sugerir que o Império romano já havia adquirido uma dinâmica própria, independente da extensa linhagem de pretensos césares.
Da mesma forma, com o impasse que os EUA vivem no Iraque e as tensões em todo o oriente Médio, o problema hoje é menos a mediocridade desastrosa de Bush – ou, comparando, a habilidade imperial de John McCain ou de Barack Obama – do que a potência crua do império, nascido da Guerra Hispano-Americana e transformado em Pax Americana depois da Segunda Guerra Mundial.
Assim como os EUA sobreviveram à desventura no Vietnã e dela emergiram fortalecidos, eles estão aptos a superar, aparentemente incólumes, o fiasco no Iraque. Embora momentaneamente desconcertado, o império americano continuará seu caminho, com a bênção divina, sob a direção bipartidária e a pressão das megacorporações.
É uma característica dos Estados imperiais maduros a convivência com equívocos custosos, pagos não pelas elites, mas pelas classes baixas e pela periferia. Como todos os impérios, esse também cairá. Não sabemos quando, mas certamente não ocorrerá da noite para o dia. Enquanto isso, predições sobre seu declínio são amplamente exageradas, especialmente em relação a um futuro previsível, no qual permanecerá como a única hiperpotência mundial.
O exército dos EUA é o mais forte que o mundo já conheceu e chega a ridicularizar os lendários impérios romano e Britânico. Preponderante no mar, no ar e no espaço – incluindo o ciberespaço -, Washington possui a capacidade admirável de proteger seu poder cobrindo distâncias enormes com uma velocidade incomum, conforme apropriado a um xerife autoproclamado, correndo para dominar ou explorar tanto as crises reais quanto as putativas em qualquer lugar do mundo.
Nas palavras do outrora secretário de Defesa Donald Rumsfeld, “nenhum canto do mundo é remoto o bastante, nenhuma montanha alta o bastante, nenhuma caverna ou bunker fundo o bastante, nenhum veículo rápido o bastante, para proteger os inimigos de nosso alcance”. Os EUA gastam pelo menos 25% de seu orçamento anual com defesa, aproximadamente a metade do que o resto do mundo combinado. ruim para a sociedade como um todo, isso é bom não só para o exército americano, como também para a economia do país, inclusive para suas grandes corporações e fabricantes de armas que florescem – e lucram – mundo afora.
O investimento é suficiente para que, em vez de estabelecer territórios coloniais à maneira clássica, os EUA assegurem sua hegemonia com cerca de 700 bases do
exército, da marinha e da aeronáutica em cem países, além de pelo menos 16 agências de inteligência.
Para resumir em uma frase: o mundo inteiro é o quintal dos americanos. e, se o seu domínio militar não tem rival, tampouco o tem sua economia gigantesca, sua cultura sincrética e sua ciência.
Apesar dos imensos déficits fiscal e comercial que periodicamente enlouquecem seu sistema financeiro e repercutem globalmente, a economia americana permanece robusta e acerta o passo na “destruição criativa”, desrespeitando os custos sociais, sejam domésticos ou em países estrangeiros.
Por ora, os EUA continuarão a liderar as pesquisas, desenvolvendo patentes no campo da cibernética, biologia molecular e neurociência. Sem dúvida, sua ascendência é facilitada por universidades e laboratórios de pesquisa custeados pelos setores público, privado e corporativo, que estabelecem postos avançados sobre os outros países e, ao mesmo tempo, atraem cérebros do mundo todo.
Expansão cultural
Não é de surpreender que o país tenha colheitas desproporcionais de prêmios Nobel, não somente em economia mas também nas ciências naturais. o inglês americano expandiu de forma impressionante e tornou-se a segunda língua da nova geração de internautas. esse fenômeno é ao mesmo tempo causa e efeito da importância das multinacionais ligadas ao governo americano, bem como da indiscutível dianteira assumida pelos EUA na última revolução global das comunicações.
Nutrido pelo poder das corporações, o consumo americano e sua cultura popular penetraram os mais remotos rincões do planeta. Para o bem e para o mal, o Wal-Mart e o McDonald?s, a Disneylândia e o rock, os esportes de arena e os seriados de televisão, distraem a plebe com pão e circo. Por toda a periferia em mudança, Washington, Wall Street e K Street [1] juntam suas forças às das elites e regimes locais.
Esse império não é sui generis. Tem semelhanças significativas com impérios do passado na avidez por recursos naturais críticos, mercados de massa e postos estratégicos avançados. Por sua vez, o povo americano sente o papel considerável que ocupa com a persistência de seu império e se regozija com isso. Claro, alguns estratos sociais se beneficiam mais dos espólios dessa potência do que outros.
É inegável também que o império tem reservas extraordinárias de poder “duro” e “suave” para persistir em seu intervencionismo mundo afora. Apesar do envolvimento horrível no Iraque, os EUA podem se utilizar de verbas e vontades para salvar as aparências.
Há, de fato, um déficit de tropas de combate para grandes operações convencionais em terra. e também uma incoerência estratégica decorrente das últimas investidas irregulares contra forças insurgentes, terroristas e guerrilhas, por todo o oriente Médio e África oriental. Mas essa situação provavelmente será remediada, ao menos em parte, pelo aumento de contratações privadas de mercenários armados e civis, preferencialmente a baixos salários, vindos do Terceiro Mundo.
Quanto à estratégia de intervenções militares, ela clama por uma atualização. A doutrina de contra-insurgência do search and destroy (buscar e destruir), que fora talhada de forma imperfeita para se adequar à era das guerras internas do Vietnã, precisa ser revista. Já as investidas inspiradas no shock and awe (chocar e atemorizar) permanecem não
somente um recurso de última instância, mas também a cólera reservada para casos de conflitos preventivos e preemptivos.
Ao mesmo tempo, Washington mascara naturalmente seu próprio interesse imperial com declamações sobre a promoção altruísta de direitos civis, de bem-estar social,
de libertação feminina e da necessária democracia para toda a humanidade. Entretanto – e desconsiderando partidos -, para a elite americana no poder existe uma prioridade absoluta: até a implosão da União Soviética, tratava-se de massacrar o espectro comunista; desde 11 de setembro, trata-se de massacrar a serpente do islamismo radical.
Justamente por isso, James A. Baker III, político republicano, e Lee H. Hamilton, democrata, não têm dúvidas de que Washington continuará tentando ditar as leis no
oriente Médio, como tem feito desde 1945. O relatório preparado pela Comissão bipartidária Baker-Hamilton, do Grupo de estudos do Iraque, publicado em 6 de dezembro de 2006, é explícito: “Mesmo depois que os estados Unidos retirarem todas as brigadas de combate do Iraque, será mantida uma considerável presença militar na região, com nossas poderosas tropas dispostas no Kuwait, Bahrein e Qatar, e aumentada a presença no Afeganistão”.
Baker e Hamilton buscaram ajuda nas melhores e mais brilhantes organizações e think tanks (grupo de especialistas) que afloraram desde o Vietnã para escrever seu
relatório. Várias dessas instituições, algumas que prepararam esboços parciais do relatório do Iraque, não escondem seu engajamento em um lado da história.
O Instituto de Paz dos estados Unidos, por exemplo, se autoproclama “uma instituição nacional independente, não-partidária, estabelecida e custeada pelo Congresso, cujos objetivos são ajudar a prevenir e resolver violentos conflitos internacionais, promover estabilidade pós-conflito e transformações democráticas, e aumentar a capacidade, as ferramentas e o capital intelectual para a construção da paz em todo o mundo”.
Atraindo administradores e conselheiros “igualmente do mundo da política pública e do setor privado”, o “bipartidário” Center for Strategic and International Studies foi outro assessor de peso. Seu objetivo, segundo a própria instituição, é “fazer avançar a segurança e a prosperidade globais em uma era de mudanças econômica e política, provendo critérios estratégicos e soluções práticas aos tomadores de decisão”. Entre seus membros há antigos e atuais diretores executivos de companhias como Time Inc., Coca-Cola, Merrill Lynch, Lehman Brothers, exxon Mobil e Morgan Stanley, além do último oráculo do “soft power”, o professor Joseph S. Nye, da Kennedy School of Government de Harvard.
Organizações parcialmente privadas trabalham no mesmo domínio. O International republican Institute, oficialmente não-partidário e presidido pelo senador John McCain, diz que pretende “fazer avançar a liberdade e a democracia por todo o mundo, desenvolvendo partidos políticos, instituições civis, eleições abertas, boa governança e o império da lei”.
Por sua vez, o National Democratic Institute for International Affairs, presidido pela antiga secretária de estado Madeleine Allbright, trabalha de maneira parecida “para fortalecer e expandir a democracia em todo o mundo”, provendo “assistência a líderes civis e políticos no avanço de valores, práticas e instituições democráticos”.
O custo do império
Sejam lá quais forem suas inclinações políticas, nenhum dos consultados pela comissão questionou rigorosamente os custos e benefícios políticos, econômicos ou sociais
do império para os EUA e para o mundo. E, mesmo se opondo em conselhos estratégicos e táticos, as discordâncias ocorrem mais sobre como assegurar, explorar e proteger o império do que sobre os valores, objetivos e ética que lhe são subjacentes.
Enquanto os neoconservadores pregam, de maneira ressonante, o credo da permanente “missão civilizatória” ocidental, os “indispensáveis” centristas bipartidários também o fazem à meia-voz desde 1945. E mesmo os mais ardentes críticos da hybris (descomedimento) dos neoconservadores não são antiimperialistas. Paradoxalmente, os termos “império” e “imperial” foram expurgados do discurso político americano e não há nenhum partido ou facção disposto a
falar a respeito.
Sublinhando que o papel dos EUA é “único” em um mundo no qual “poucos problemas podem ser resolvidos sem nós”, a secretária de estado Condoleezza Rice ingenuamente afirma que “os americanos se empenham na política externa porque devem, não porque querem. e essa é uma disposição saudável – é aquela de uma república, não a de um império”.
Assim também assevera o secretário de Defesa Robert Gates, para quem os EUA devem manter a “liberdade de ação para os global commons e o acesso estratégico a regiões importantes do mundo para satisfazer nossas necessidades de segurança”, o que envolve investir “um contingente da economia global para o pronto acesso a recursos energéticos”.
É bem característico o fato de que o apoio quase incondicional de Washington a Israel não seja criticado pelos censores centristas. Muitos neoconservadores se opõem a toda ligação rígida entre o brejo iraquiano e o impasse israelo-palestino, mas o grupo de estudos do Iraque ressalta que os estados Unidos “não podem atingir seus objetivos
no oriente Médio, a menos que lidem diretamente com o conflito israelo-palestino e com a instabilidade regional”. E apressam a Casa branca e o Capitólio para que atendam ao pedido dos países “árabes sunitas moderados” para dar um empurrão genuíno nas negociações de paz eqüitativas, em troca de ajuda para acalmar as águas no
Iraque e redondezas.
No que concerne a Israel e ao Irã, democratas e republicanos são praticamente unânimes na opinião de levar adiante as operações secretas em solo iraniano, garantidas pela ameaça de um bloqueio econômico em grande escala ou de uma ação militar.
Evidentemente, o nó do problema imperial nunca foi George W. Bush, nem nunca será John McCain ou Barack Obama. O último parece ter confirmado o padrão de ambos os partidos majoritários quando declarou, em março de 2008, que sua “política externa é na verdade um retorno à política bipartidária tradicional e realista do primeiro George Bush, de John Kennedy e de Ronald Reagan, em alguma medida”.
É fato que nenhum dos candidatos à presidência propõe uma alternativa à estratégia imperial. exceto, talvez, abafar a retórica moralizante e messiânica dos estados, tornando assim cada vez mais contenciosas as relações com Irã, China e Índia emergentes, bem como com a Rússia – todos os quatro movidos por uma forma de capitalismo estatal globalizante, nacionalmente condicionado.
Nem McCain nem Obama estão dispostos a questionar o reforço dado pelo Pentágono às imensas bases militares em Guam e nas Filipinas. o intuito é sinalizar que o comprometimento dos estados Unidos com o oriente Médio não enfraquecerá sua resolução e habilidade em perseguir seus interesses na Ásia.
Em uma campanha que transcende as fronteiras nacionais e considera o mundo inteiro como campo de atuação, ambos os candidatos utilizam, de modo bem natural, capitais estrangeiras para atestar a Bonafides imperial e sua determinação.
Foi para sustentar essa política que Obama escolheu realizar o discurso de ratificação de candidatura não no Denver?s Pepsi Center, local da convenção do partido democrata, que pode receber em torno de 19 mil militantes, mas no Denver Broncos Invesco Football Arena, estádio de futebol americano que pode abrigar cerca de 75 mil espectadores. em uma estimativa grosseira, são 25 mil pessoas a mais do que o Coliseu romano.
A ruína inevitável
Pascal, em uma meditação famosa, imaginou que, se o nariz de Cleópatra fosse menor, “toda a face do mundo teria sido mudada”. Mas a queda de Marco Antônio pela rainha do Egito tem menos a ver com sua derrota na batalha de Actium (31 d.C.) do que com a força, tática e moral das forças naval e militar mobilizadas contra ele por otaviano. Exaltado como Imperador Augustus durante seu governo de 40 anos, Otaviano consolidou o estado e o exército imperial centralizados, que perduraram por várias centenas de anos. Seus sucessores seguiram suas pegadas e provavelmente o farão também os herdeiros do presumido imperador George W. Bush.
Ponderando sobre o futuro do império americano, parece sábio ter em mente a reflexão de Edward Gibbon, para quem, antes de nos perguntarmos “por que o antigo Império romano foi destruído, deveríamos nos surpreender com o fato de [ele] ter subsistido por tanto tempo”. Certamente os críticos e tribunos radicais de amanhã irão destacar
*Arno J. Mayer é professor emérito de História da Universidade Princeton.