Necropolítica e agronegócio
Desde que assumiu o cargo, Ricardo Salles, um negacionista das mudanças climáticas, articulou o enfraquecimento dos órgãos ambientais dos quais é responsável
No dia 22 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro abriu a 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Esquivando-se das críticas recebidas desde o ano passado por sua gestão ambiental, considerada desastrosa, Bolsonaro afirmou que é alvo das “mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”[1]. Desde o seu primeiro ano de Governo, as queimadas na Amazônia só cresceram. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 89 mil focos de incêndios, número 30% maior que o ano anterior.
Em 2020 os focos de incêndios ampliam-se para outros biomas, como é o caso do Pantanal. As planícies alagáveis enfrentam as piores queimadas da sua história, crescimento de 210% no número de focos de incêndio, em relação ao ano anterior. Com o intuito de defender sua gestão, Bolsonaro reiteradamente afirma não existirem queimadas ou áreas desmatadas, no dia 22 de outubro chegou a convidar diplomatas estrangeiros para visitar a Amazônia e verem com seus próprios olhos a ausência da destruição.
O que motiva o presidente a negar a destruição dos biomas brasileiros relaciona-se diretamente com agenda central de seu Governo: a econômica, que por sinal não vai nada bem. Estima-se o recuo do PIB brasileiro em 5,4% para 2020; a dívida pública já se encontra em 4,526 trilhões de reais; em 8 meses o Brasil perdeu 15,2 bilhões de dólares de investimentos estrangeiros, a maior já registrada na história do país. Além disso, o desemprego atingiu 14% no mês de setembro. Mesmo nesse cenário caótico, o agronegócio brasileiro cresceu 10% em relação ao primeiro trimestre de 2019, e as exportações desse setor aumentaram 53,4% entre junho de 2019 e junho de 2020. É preciso lembrar que o agronegócio brasileiro é voltado ao mercado externo, dependendo pouco ou nada da economia interna, portanto, sem a lavoura e a pecuária a situação econômica brasileira seria mais delicada, afetando diretamente a nossa balança comercial.
Daí notamos o interesse do presidente em não romper com esse seguimento, apostando na política arcaica de grande lavoura exportadora e aliança estratégica com a “bancada ruralista”. Essa relação com a pecuária e a agricultura fica mais clara quando voltamos ao discurso de Bolsonaro na ONU. Em determinado momento ele afirmou que “no Brasil, apesar da crise mundial, a produção rural não parou. O homem do campo trabalhou como nunca, produziu, como sempre, alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas. O Brasil contribuiu para que o mundo continuasse alimentado”. Continuando, declarou que o Brasil assegura a segurança alimentar de um sexto da população mundial, “mesmo preservando 66% de nossa vegetação nativa e usando apenas 27% do nosso território para a pecuária e agricultura”. Assegurou que o Brasil está aberto para o mundo “naquilo que melhor temos para oferecer, nossos produtos do campo”. Ou seja, segundo a lógica de Bolsonaro, o Brasil é o celeiro do mundo. Enquanto tal, não devemos cessar a produção, afinal, o mundo estaria dependendo de nós, no que temos de melhor. O apelo para que esse modelo se sustente, segundo a maneira acima descrita, está em sensibilizar a nação com um pretenso orgulho nacional, como se o presidente dissesse nas entrelinhas “somos bons em algo, e por isso devemos manter esse algo”. Mas, como veremos, esse “algo”, chamado agronegócio, não tem trazidos tantos benefícios quanto se supõe. Assim, podemos dizer que essa lógica predatória de avanço do agronegócio em detrimento da destruição ambiental que caracteriza a necropolítica bolsonarista. Antes de avançarmos, definamos o que é necropolítica.
O filósofo camaronês Achille Mbembe conceituou necropolítica[2] como uma política institucionalizada, portanto orientada pelo Estado, de exercer a escolha de “matar ou deixar viver”, com intuito de demonstrar a soberania. Na ânsia de exercer a soberania e poder, a política orientar-se-ia pelo controle de quem deve viver ou quem deve morrer. A necropolítica firma-se na construção de mecanismos legais dentro de um Estado, como a edificações de legislações que são chanceladas por tribunais democraticamente constituídos. Esses mecanismos dão a feição de legalidade para a decisão política de “vida ou morte”. Ou seja, é um processo em que um Estado, através das leis, molda uma política de morte. Regimes autoritários são os exemplos mais evidentes da necropolítica em ação, dos quais os opositores perdem o direito à vida. Mbembe, ao conceituar necropolítica em 2003, atrelou a ideia de política e morte biológica humana. Eu gostaria de expandir essa ideia para a noção de morte biológica de biomas e ecossistemas, e, em meu parecer, essa necropolítica ambiental pode ser lida como o assassinato do futuro.
A soberania
Desde que o presidente francês Emmanuel Macron, no encontro do G7 de 2019, afirmou que a Amazônia era um “bem comum” e pediu a mobilização das potências em defesa da floresta, Jair Bolsonaro arrola a noção de soberania nacional no que diz respeito ao manuseio dos biomas brasileiros. De lá para cá outros incidentes semelhantes tornaram-se oportunidades para o presidente reafirmar sua postura protonacionalista no que tange o tema do desmatamento.
Em agosto de 2019, Alemanha e Noruega bloquearam um repasse milionário para o Fundo Amazônia, fundo responsável por captar doações com o objetivo de investir em ações de prevenção, proteção, monitoramento e combate ao desmatamento, além de auxiliarem iniciativas que visam o uso sustentável da Amazônia. O bloqueio se deu por quebra de acordo do Governo Federal, após este interferir na administração do fundo, gerido de maneira independente pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Depois da suspensão, Bolsonaro, ironicamente sugeriu aos dois países europeus usarem o dinheiro para reflorestar a Alemanha.
Em setembro desse ano o recém-eleito presidente dos EUA, Joe Biden, propôs a criação de um fundo internacional de 20 bilhões de dólares para a preservação da Amazônia. Jair Bolsonaro ficou irritado com a proposta, recebendo a fala de Biden como uma tentativa de interferir na política brasileira e afirmando ser inegociável a soberania do Brasil. No dia 10 de novembro, Bolsonaro voltou a atacar a declaração de Biden, sugerindo que “quando acaba a saliva, tem que ter a pólvora”, ou seja, que caso os Estados Unidos intervissem na Amazônia, o Brasil recorreria ao uso da força.
Nas três situações citadas acima, o presidente mobiliza a seu favor, a ideia de Estado-nação soberano com direitos de escolher as ações a serem tomadas sobre biomas e ecossistemas, mesmo que estes tenham impacto a nível global. Ou seja, no entendimento de Bolsonaro, pouco importa se a destruição ambiental cause danos colaterais em outras nações, afinal, nesse caso, a vontade do Brasil deve prevalecer. O exemplo da Amazônia é bem ilustrativo a esse respeito. Graças a ela, a América do Sul possui um regime de chuvas constante, o que é fundamental para o abastecimento hídrico das cidades e das lavouras. Essa floresta é responsável pela evaporação, transpiração e evapotranspiração que auxiliam na garantia das chuvas, além de ser um grande depósito de carbono, molécula que, quando em excesso na atmosfera, funciona de retentor de calor (energia térmica), impedindo que esse mesmo calor transpasse para fora do planeta. Sem as florestas, as temperaturas da Terra aumentariam, as chuvas seriam mais escassas, os desertos mais amplos e a vida rarearia.
Dessa forma, embora grande parte da Amazônia esteja em território brasileiro, não quer dizer que sua destruição, que impacta outras nações tão soberanas quanto a nossa, deva ser defendida sob o signo da “soberania”.
Pode soar hipocrisia de países que há séculos destroem a natureza censurem o Brasil. Essa é uma hipocrisia aparente. É fato que os países europeus destruíram grande parte de seus ecossistemas e, durante quase 500 anos, eles foram responsáveis por uma ampla destruição humana e ambiental nas Américas, África e Ásia. Entretanto, ao tomarem consciência – tardia – dos danos globais, tiveram a iniciativa – também tardia – de preservar aquilo que ainda sobrevive e recuperar o que se perdeu. O exemplo mais que ilustra bem essa tomada de consciência é o protocolo de Kyoto, assinado por 192 países, em 1997, comprometendo-se em diminuir as emissões de gases estufa. Entre as estratégias, a mais barata e eficaz de diminuir as emissões de carbono é a preservação de florestas ainda intocadas. Isso não quer dizer que inexistam outros estratagemas. É o caso da aprovação pelo Parlamento Europeu, em Outubro desse ano, da meta de corte de 60% nas emissões de CO2 em toda União Europeia (UE) para os próximos 10 anos. Outro caso é o da Alemanha, o país registrou em 2019 o uso recorde de 40% de sua energia advindo de fontes renováveis, além do gradativo abandono do uso de carvão mineral na geração de energia do país.
Os impactos da destruição ambiental são demais evidentes, afetando a todos, e, portanto, os crimes ambientais perpetrados por um país não dizem respeito apenas àquela nação, mas todo o planeta: o assassinato da fauna e da flora é responsabilidade da espécie humana.
Quando a meta é preservar o que ainda está intacto, é natural que os olhares se voltem para o Brasil, afinal, temos a maior floresta tropical do mundo. Ao recusar investimentos estrangeiros que visem proteger a floresta, sob a escaramuça ideológica nacionalista, permitindo a destruição dos ecossistemas e o avanço da agricultura, Bolsonaro não está sendo nacionalista, zelando pela vontade soberana brasileira, o que ele faz é alinhar-se a uma velha vertente política que impera no Brasil desde o período colonial: a da grande lavoura exportadora.
Alinhando-se a esse setor, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), também conhecida como “bancada ruralista”, Bolsonaro consegue fortalecer seu Governo no Legislativo, além de evitar mais desgastes econômicos. Diante da crise política e enfraquecimento de Bolsonaro, os ruralistas são peças importantes na articulação do presidente no Congresso. Por essa razão vemos 7 parlamentares ruralistas no alto escalão do governo, além da própria presidente da FPA, Tereza Cristina ter sido cotada como Ministra da Agricultura. Ao enaltecer os interesses soberanos do Brasil na Amazônia e permitir o avanço do agronegócio na região, Bolsonaro, na verdade, assinala lealdade aos congressistas aliados, ao mesmo tempo que tenta diminuir o declínio econômico do país. Para atingir esse objetivo ideológico, seu Governo tenta maquiar a destruição com “tinturas” de legalidade. E ao fazê-lo, institui a necropolítica ambiental, colocando em risco a sobrevivência do país e do mundo.
“Passar a boiada” como necropolítica
No dia 22 de abril, o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião ministerial, aconselhou o presidente a “ir passando a boiada, e mudando todo o regulamento [ambiental], e simplificando normas”. A fala do Ministro é o reflexo da política institucionalizada da morte, a necropolítica ambiental.
Desde que assumiu o cargo, Ricardo Salles, um negacionista das mudanças climáticas, articulou o enfraquecimento dos órgãos ambientais dos quais é responsável. A primeira das muitas medidas do ministro foi a demissão, no dia 02 de agosto de 2019, do diretor do Inpe, o físico Ricardo Galvão, após o órgão divulgar dados mostrando o avanço do desmatamento. Naquela ocasião, Bolsonaro acusou o diretor de estar à serviço de ONGs e contestou os dados, mesmo sem ter conhecimento técnico para tal. Obviamente, como sempre faz, o presidente só fez acusações, sem apresentações de provas. A demissão foi encarada na comunidade científica internacional com pesar, já que Galvão é uma figura respeitada dentro das ciências. O diretor do Laboratório de Ciências Biosféricas no Centro de Voos Espaciais da Nasa, Douglas Morton, afirmou que a demissão de Galvão foi “alarmante”.
Em maio desse ano, o Governo assinou um decreto que transferia do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura o poder de concessão das florestas nacionais, isso é, caberia ao Ministério da Agricultura o direito de escolher, dentro da iniciativa privada, quem poderia explorar as florestas. Porém, o decreto foi tornado inválido pelo juiz federal Henrique Jorge Dantas da Cruz, pois tal mudança só pode ser feita via Congresso Nacional e não por decretos.
Em abril de 2019 foi assinado um outro decreto que cria a necessidade de uma “audiência de conciliação” entre fiscais e infratores, em situações em que haja a aplicação de uma multa ambiental. Dos 7 mil processos a serem julgados desde 2019, somente 5 audiências foram realizadas, levando alguns partidos a levarem o decreto ao STF. Na prática as multas ambientais deixaram de existir.
Outra medida de Salles e Bolsonaro, realizada no ano passado, foi a mudança na composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama, Trata-se de um órgão consultivo que assessora, ao mesmo tempo que estuda e propõe ao Governo, direcionamentos acerca de políticas governamentais para a exploração e preservação do meio ambiente e dos recursos naturais. Os membros são indicados pelos governos estaduais, federais e por ONGs, além de existirem representantes sem direito a voto oriundos do Ministérios Públicos dos Estados e pela Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados. Essas últimas cadeiras foram suprimidas e houve a redução de 96 para 23 membros no Conselho. Além dessa medida de controle do Conselho, o Governo Federal também ampliou sua influência no órgão consultor.
Através do desmanche do Conama, Ricardo Salles tentou afrouxar as regras de preservação da Mata Atlântica – bioma mais ameaçado do Brasil –, anulando a Lei da Mata Atlântica, de 2006, que prevê medidas mais restritivas de proteção. Salles acabou por voltar atrás depois que o Ministério Público Federal contestou a decisão. Outros dois ecossistemas entraram na mira do governo: manguezais e restingas. Salles aprovou a extinção da legislação que os protegia, com intuito de permitir o avanço imobiliário nas faixas litorâneas. A medida foi suspensa pela ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber.
Em abril Ricardo Salles exonerou o coordenador-geral da fiscalização ambiental do Ibama, Renê Luiz de Oliveira, o coordenador de operações de fiscalização, Hugo Ferreira Netto Loss e o diretor de Proteção Ambiental do órgão, Olivaldi Azevedo. As demissões ocorreram após o Ibama realizar operações contra garimpeiros ilegais em 4 terras indígenas no Pará. No período de 4 meses – entre janeiro e abril de 2020 – as operações tiveram grande êxito, incomodando o Governo, consequentemente, culminando na demissão dos diretores.
Não podemos nos esquecer que, em meio aos maiores incêndios florestais registrados no Brasil, o Governo determinou a retirada de brigadistas que atuavam na contenção dos incêndios em todo o Brasil. A alegação foi de falta de verbas.
Como podemos ver, esses são alguns exemplos das medidas assumidas pelo Governo Bolsonaro que visam, através de tentativas legais, permitir a destruição de biomas e ecossistemas. Além de desmanchar os órgãos de defesa e as legislações ambientais, outra estratégia do governo é recorrer às mentiras, criando uma confusão de narrativas sobre o tema, despertando a suspeita e a dúvida. Ao contrário do que Bolsonaro afirmou na ONU, os incêndios florestais não são causados por caboclos e índios. Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, disse à BBC Brasil que os “mapeamentos bastante rigorosos, feitos em 2020, tanto pelo Inpe quanto pela Nasa mostram que acima de 50% da área queimada na Amazônia é mata derrubada. É o famoso e tradicional processo de expansão da área de agropecuária. E quase tudo, acima de 80% dessa expansão, é feita por grandes propriedades, não é o pequeno agricultor ou o caboclo ou a roça indígena. O pequeno agricultor e o caboclo usam fogo, todos usam, mas o número de área queimada pela pequena agricultura é relativamente pequeno, a grande maioria é área queimada pela expansão de grandes propriedades”.
O Bolsonaro ainda diz existir exageros e calúnias sobre a situação da floresta – como apontamos no começo – e chegou a afirmar não haver “se quer um hectare de floresta devastada”. E, novamente, não é o que os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais mostram.
Recentemente a mentira mais esdrúxula defendida pelo Governo foi a do “boi bombeiro”. Para a Tereza Cristina e Ricardo Salles, o gado se comportaria como um agente amigo das florestas, pois, ao comer capim seco e inflamável, preveniria o avanço do fogo. Somado a isso, o Governo afirmou que a proibição da criação de gado solto na região e as restrições ao manejo do fogo em pastagens e em reservas ambientais, o chamado “fogo frio”, queimadas controladas, fizeram as queimadas aumentarem. Ainda nessa lógica, Salles afirma que por conta dessas restrições houve o acúmulo de matéria orgânica (mato, galhos e folhas secas), que serve de combustível para os incêndios. A tese do “boi bombeiro”, entretanto, é delirante. O Pantanal assistiu ao crescimento da pecuária, e não a diminuição, como mente o Governo, além do mais, os incêndios no Pantanal não começaram em área de preservação ambiental com “acúmulo de matéria orgânica”, mas em uma fazenda pecuarista. É fundamental não nos esquecermos que a característica dos domínios morfoclimáticos e fitogregráficos brasileiros é de predominância úmida, não sendo o incêndio espontâneo a causa das queimadas, mas sim a ação humana.
Em suma, o presidente Bolsonaro e seus ministros emparelharam o Estado brasileiro para a implementação de uma política de destruição ambiental, seja criando cortinas de fumaças através de mentiras, seja pelo esvaziamento de órgãos fiscalizadores ou até a supressão de leis de proteção ambiental. O objetivo dessa necropolítica ambiental é garantir o avanço sistemático do agronegócio, que “alimenta” o mundo, mas não os próprios brasileiros.

Fome e necropolítica
Voltemos ao ponto levantado por Bolsonaro sobre a importância da agricultura e pecuária brasileira como fonte de alimento mundial. De fato, o Brasil é um dos maiores – não o maior – produtores de alimento no mundo. Ficando só atrás da China e dos EUA, o Brasil é terceiro maior produtor de alimentos do planeta, exportando mais de 240 milhões de toneladas no ano passado, para 180 países, movimentando 34,1 bilhões de dólares. Apesar da agricultura estar a pleno vapor, o curioso é notar que a fome em território nacional aumentou. Segundo a o levantamento de 17 de setembro, feito pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, 10,3 milhões de brasileiros passavam fome durante o levantamento — um aumento de 3 milhões de em 5 anos, isso sem incluir pessoas em situação de rua. Ou seja, o Brasil alimenta o mundo, mas não alimenta seu próprio povo.
Além da crise econômica iniciada em 2014, geradora de um aumento significativo de desempregados, e ainda não superada, outros dois fatores podem ser apontados para esse fator, a desvalorização do real, o que faz os produtos brasileiros de exportação – o agronegócio – ser mais atrativo ao mercado internacional, levando a queda da produção da agricultura familiar. No primeiro caso, como já dito anteriormente, a agricultura e a pecuária brasileira são monoculturas exportadoras, portando o mercado nacional não tem poder de absorção dessa produção, cabendo à agricultura familiar desempenhar o papel de alimentar a nação. Segundo estudo do IBGE, 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros vêm da agricultura familiar. Eles são produzidos em pequenas propriedades, administradas por pessoas da mesma família que costumam vender o excedente produzido. Diferentemente das grandes monoculturas, o agronegócio familiar é orientado pela diversidade de alimentos. E nos últimos anos, o que vem acontecendo, é o desmanche das políticas públicas de combate à fome e de fomento à agricultura familiar. Como exemplo citemos a extinção, em 2019, do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), órgão colegiado de assessoramento da Presidência, no que diz respeito a estratégias a serem tomadas na questão da alimentação da nação; Cortes no PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), programa que visava promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar, chegando a ter orçamento de 1,2 bilhões em 2012 e caindo para 101 milhões em 2020. Enquanto isso, o agronegócio monocultor exportador mantêm o subsídio de 10 bilhões de reais.
Um último ponto que gostaria de levantar é o impacto mundial da destruição ambiental, e como políticas seguidas por Bolsonaro só pioram a situação. Segundo a Food and Agriculture Organization (FAO), da ONU, foi registrado 244 milhões de migrantes no mundo em 2015, um aumento de 40% em comparação ao número de 2000. As principais causas são guerras, fome e mudanças climáticas – três elementos que se relacionam. Em último estudo do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), as mudanças climáticas originadas pelos avanços predatórios em larga escala perpetrados pelos seres humanos podem levar ao impacto na produção de alimentos, afetando de forma drástica a espécie humana, já que nossa população só cresce. Podemos notar que isso já é presente no Brasil. Santa Catarina acumula perda de 4% na produção de milho, e o Rio Grande do Sul pode chegar a 30%.
Como vimos, Bolsonaro utiliza da ideia de soberania nacional para substituir as florestas por pastos e plantações. Ao fazê-lo, garante o apoio da “bancada ruralista” e evita um declínio maior na balança comercial. Para isso a ação predatória ter validade, lança mão de mentiras, além do desmanche dos órgãos de defesa, criando condições favoráveis para o avanço do agronegócio. A destruição com intuito ideológico vem causando sérios problemas ambientais e afetando a população de forma geral. Assim, sem receio, podemos afirmar que seu governo constitui uma necropolítica ambiental, uma orientação de Estado que está sentenciando o ecossistema brasileiro e o futuro do mundo à morte.
[1] O discurso na íntegra: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54252282
[2] MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, p. 123-151, dezembro 2016.