Necrossociedade
A máquina da necropolítica só pode funcionar quando há uma sociedade que a tolera
A julgar pela história ocidental, uma pandemia costuma ter duas facetas: uma social e outra propriamente sanitária. É difícil delimitar as fronteiras entre os acontecimentos, mas da segunda grande onda da peste bubônica, no século XIV, até a atual crise do novo coronavírus, a tendência é que a primeira acabe muito antes da segunda.
Enquanto a pandemia sanitária é a circulação e ação de uma “praga” (vírus, bactéria, doença, etc.), a social é a forma como as sociedades lidam com ela. No caso do coronavírus, a resposta global imediata foi colocar as pessoas em uma quarentena improvisada e esperar que a curva de contaminados diminuísse. Politicamente, isso aconteceu com mais rigor em países como a China e a França, que chegaram a criar multas para quem saísse nas ruas, mas permaneceu frouxo em alguns outros, como nos Estados Unidos. A Argentina e a Nova Zelândia parecem, até agora, países em que tanto a pandemia social quanto a sanitária foram levadas a sério – as pessoas não apenas aceitaram as medidas políticas de contenção de circulação como os seus governos tomaram medidas rigorosas para combater o vírus.
De acordo com historiadores ouvidos para uma reportagem publicada em maio pelo jornal New York Times, as epidemias (ou pandemias) costumam entrar em um espiral que começa por uma espécie de tensão psicológica – a do medo – que dura apenas o impacto da novidade e, em muitos casos, antecede a própria “praga”. Passam por um momento de incertezas existenciais e sociais até terminarem inevitavelmente misturadas ao cotidiano alheio. Então, em algum momento se estabelece um terreno conflituoso cuja luta é pela condição de decretar o fim social da epidemia – ainda que somente para alguns –, enquanto a crise sanitária se tornando lentamente mais um caso para o catálogo de doenças.
Não significa a erradicação da enfermidade, mas, ao contrário, é quando a potência da normalidade, da rotina e dos hábitos devora aquele temor que ela impunha e o perigo que representava. As sociedades voltam a funcionar como antes enquanto vão deixando pelo chão da história seus moribundos desassistidos, seus azarados miseráveis, seus pobres inconciliáveis e seus mortos revirados.
Esses, no entanto, não parecem ser os traços da pandemia brasileira – porque aqui a pandemia de covid-19 sempre foi principalmente sanitária (porque ela aconteceu de fato), mas desde o início muito pouco social. Vivemos a negação da nossa socialidade, da existência de um outro desconhecido, mas que também compartilha o espaço e é, assim, impactado por cada atitude individual. É negar a vida que se deve viver durante uma pandemia para viver a vida de antes, a de si mesmo, desconsiderando a possibilidade da morte que só existe por causa de mim.
É um paradoxo em que, se por um lado não se reconhece o elemento social contido em cada atitude individual (sair na rua sem usar a máscara, por exemplo), por outro ele é extremamente social ao ser justamente o ato que socializa a morte.
No Brasil, se já não se pode negar completamente a existência real do vírus, é possível diminui-lo a uma doença previsível (a “gripezinha”). Também dá para elaborar uma negação mais sofisticada, em que a vida social permanece exatamente a mesma, em que não há nenhuma perturbação do indivíduo em saber que carrega em si a morte do outro, em que os altos números sobre novos contaminados e mortos pelo vírus transmitidos pelos jornais vão deixando de romper com o conforto do dia, de impactar uma vida que até então seguia todos os padrões que se espera dela – consumir, trabalhar, consumir, reproduzir, etc.
É a adaptação a uma pandemia incerta e fatal que já se esperava de uma necrossociedade.
Nela, a novidade de agora está apenas na forma de morrer, não em uma epidemia que mata. Até porque aqui há muitas outras epidemias que, da mesma forma que o coronavírus, já estão completamente misturadas à vida de todo dia: a da violência policial nas periferias das cidades, a do contínuo genocídio indígena, a da miséria e da fome consequente, mesmo a epidemia do ódio cotidiano, da desconfiança permanente do outro, que não se realiza sem abrir suas valas, e tantas outras que se poderia mencionar. Todas as mortes vão, lentamente, se tornando comuns.
A necrossociedade é a máquina de aceitar mortos e suas várias possibilidades de morte que dá potência à máquina de fazer mortos da necropolítica.
Aceitação, aliás, é o termo que melhor descreve essa necrossociedade: ela é resultado de uma negociação anterior cujo termo final é admitir que mil outros morram vítimas do vírus desconhecido todos os dias desde que, em troca, a potência do cotidiano não diminua. Se negocia porque não se pode parar, pelo menos por algum tempo, de comprar coisas, de manter a definição do corpo, de ter experiências individuais de prazer, de ter o simulacro de circular por onde quiser e, assim, de colocar em marcha a incrível força do mesmo. O preço para continuar esse cotidiano é a morte daqueles demais que não se conhece – e que se perde no conceito vago de “social”. O objetivo é, no limite, que mesmo a pandemia se misture na rotina.
A necrossociedade é incapaz de renunciar a seu cotidiano, não apenas porque consegue conviver bem com suas epidemias – chega a justificá-las (por meio do racismo e da meritocracia, por exemplo) –, como porque, no limite, sequer se reconhece como uma sociedade, aquele ente coletivo que, nos cânones da sociologia, aparece por sobre os indivíduos. A necrossociedade está mais para um mundo em que um conjunto de pessoas dispersas entre si vivem duvidando, negando, inviabilizando e, claro, aceitando a morte de qualquer outro para continuar reforçando suas outras rotinas e rotinizando suas mortes.
Assim, tentando ir além do que bem escreveu o filósofo camaronês Achille Mbembe, se há uma política de morte, uma máquina de guerra, uma relação de inimizade que são próprios da necropolítica, elas existem também porque as próprias pessoas a levam a cabo.
Hoje, o que sobrou no Brasil é a curiosidade rotineira da pandemia sanitária. Tal como ver se vai chover no final de semana, a classificação do campeonato de futebol ou a última frase polêmica do presidente, em algum momento se busca saber a quantas andas a vacina, o que será do “novo normal” das empresas, mesmo o número de novos contaminados. Tudo como um adereço de um tempo pandêmico que, na verdade, nunca existiu – para os que sobreviveram.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social, mestrando do departamento de Sociologia da USP e professor do curso de Jornalismo da Universidade Paulista (UNIP).