Negação do racismo, preservação de seus símbolos
Numa recente conferência proferida na Universidade de Coimbra, o escritor Mário Lúcio, ex-Ministro da Cultura de Cabo Verde, chamou a atenção do público para o fato de que o pensamento racista também é uma forma de matar, também é uma violência
Acaba de ser publicada em Portugal, pelo jornal Expresso (17/10/2020), uma pesquisa de sondagem da discriminação racial no país. Os resultados demonstram que 23% dos portugueses acredita na existência de raças mais inteligentes que outras; 17% afirma que “A mistura de diferentes raças ou etnias pode enfraquecer a evolução biológica da espécie humana” e 15% sente algum incômodo “quando vê pessoas negras chegarem a posições de poder e influência”. Estamos falando de uma nação na qual a ampla maioria dos políticos de direita nega a existência do racismo entre as portuguesas e portugueses, negação sustentada também por vários membros da comunidade internacional, o que, até então, não supõe nenhuma novidade.
Contudo, é interessante notar que estes números aterradores surgem mais ou menos no mesmo momento em que muitas vozes se levantam, por exemplo, contra o movimento de destruição das estátuas – ou símbolos – coloniais pelo mundo. Justificando o injustificável, essas vozes argumentam que a saída para os muitos problemas de opressão social não está no derrubar da estátua, e sim no confrontar o sistema. Mas, afinal, qual é a diferença entre a estátua e o sistema, se ambas são produtos conjunturais daquela mesma ordem sócio-histórica que produz dispositivos de exclusão, de opressão e de hegemonia? Em que locus da existência está uma estátua colonial senão no plano ultra simbólico de seus significados biográfico e nacionalista subjacentes a esse ente chamado “sistema”, cujo representante singular desconhecemos? Qual é o sentido para a existência da estátua de um homem cuja memória evoca valores que não condizem, por exemplo, com a agenda para a paz no século XXI? Como produzir a paz sob os símbolos da opressão? Como pedir que os oprimidos construam a paz se são diariamente – e compulsoriamente – confrontados com os ícones que marcam e corroboram a guerra, a exclusão e a hierarquização das diferenças?
Qualquer forma de opressão é uma experiência da ruína e muitas são as ruínas que aqui poderíamos listar, não para o nosso deleite, mas, sim, para o nosso terror, já que, como recordou Brian Dillon, as listas têm uma função potencialmente aterradora na percepção humana da realidade. E a metáfora da ruína – com toda a sua potência de poiesis – vem a propósito de dar a entender o que é viver depois da linha da violência simbólica: sem perceber, o oprimido vive o ruir da própria existência, da própria liberdade, do próprio sentido de paz; em vez de coexistir, ele apenas saboreia a precariedade das horas e, assim, resiste para não morrer. Pelo direito de ser e viver, essas pessoas consomem a sua energia no gastar inevitável dos seus corpos e no bradar oportuno de suas vozes, na luta contra as muitas instituições e mecanismos que chegam a matar um negro com um joelho no pescoço, à luz do dia, como se isso não fosse um escândalo, como se fosse natural normalizar o absurdo e a barbárie.
O fato aqui incontestável é que somente os corpos que importam menos sentem que importam menos e, sentindo o quanto (não) valem, precisam enunciar essa agonia ao mesmo tempo subjetiva e coletiva. As formas – muitas vezes coléricas – de enunciar essa consciência da opressão, se colocadas no quadro do moralismo (cujas bases são, vale lembrar, as dicotomias ocidentais do certo e errado), acabam por lançar o debate no labirinto da hipocrisia, cuja saída é, como sempre foi, a relativização da violência. Mas atenção: aqueles que enxergam como mal o derrubar das estátuas – depositárias de uma identidade nacional meramente ilusória – trazem na verborreia da certeza um conceito fisiológico de violência que, sendo conveniente, não deixa de ser também perverso: para estes, a violência é o resultado direto da ação de um Outro nos campos visual e material – o derrubar de uma estátua, de um “herói”: eis o ato violento, bárbaro, ignorante.
Mas e os mecanismos de opressão? E os dispositivos de exclusão que operam silenciosamente? E os contos de fada que determinam papéis de gênero? E o homem que morreu sufocado na rua por um agente da polícia? E os salários mais baixos para mulheres e negros? E a comunidade LGTBI que morre diariamente? E o homicídio do pobre e do negro? E a mulher demitida logo após retornar da licença maternidade? E a mulher estuprada porque mereceu? E aquela outra que, por falar a verdade, foi assassinada por milicianos? E o favelado que precisa atravessar a cidade em transporte precário? E a etiqueta do produto cujo preço serve para filtrar e separar corpos negros e brancos, ricos e pobres? E o restaurante francês que tem empregados negros? E o professor agredido em sala de aula ou, no extremo da vida, decapitado?… Não… isto não é violência, porque ninguém vê, ninguém sente – exceto o branco que afirma sofrer racismo reverso ou o heterossexual que se queixa de heterofobia.
O movimento iconoclasta que temos presenciado precisa ser lido fenomenologicamente, pois ninguém criou um evento no Facebook para derrubar estátuas colonialistas pelo mundo… trata-se, com efeito, de um movimento autônomo em sua dor e encorajado pelo mal estar comum. Tal como aconteceu com a négritude de Césaire e Senghor, com o negrismo de Nicolás Guillén e Alejo Carpentier ou com a Black Renaissance de Du Bois, a iconoclasia anticolonial nasceu, antes de mais nada, do seu oposto: nasceu de uma iconofilia colonial secular, plasmada no inconsciente coletivo e cuja substância normalizou a barbárie da colonização, perpetrada ainda hoje, porém com novas roupagens; ela nasceu de um cansaço profundamente humano e coletivo, hoje mais e melhor projetado pela globalização digital e pela velocidade da informação.
Como a memória humana é lenta, curta e opera por conveniência, aquelas e aqueles que estão contra o denominado “vandalismo” histórico – que é, na verdade, uma potente prática de revisão e reescrita da história – não fazem o mínimo esforço para perceber que há pessoas vivendo no limiar da precariedade epistemológica, há pessoas sucumbindo à ruína existencial, há pessoas cuja rotina consiste em fazer gritar o corpo pelo direito de existir… e isto, não sendo relativizável, ilustra bem o incômodo de quem está do lado de lá da cultura.
Estamos, hoje, diante do dilema da reparação histórica. Trata-se de um impasse que, operando na dubiedade entre destruir e construir, evoca algumas questões cuja resposta, para muitos desavisados, ainda é tácita: quem destrói o quê? Ao destruir, quem constrói o quê e para quem? Este impasse não é nem moral nem imoral, nem ético nem antiético, e será compreendido somente quando conseguirmos, com sincera honestidade, relacionar o sujeito da opressão e o sujeito da luta – na medida em que estes sujeitos coincidam, entenderemos o que é o dilema da reparação; entenderemos, ainda, como o dilema fez-se fenômeno e, por fim, compreenderemos (assim espero!) o epifenômeno sustentador daquilo que, hoje chamado de barbárie e vandalismo, amanhã será nomeado pela História como luta, levante, insurreição ou, como é óbvio, reparação.
Numa recente conferência proferida na Universidade de Coimbra, o escritor Mário Lúcio, ex-Ministro da Cultura de Cabo Verde, chamou a atenção do público para o fato de que o pensamento racista também é uma forma de matar, também é uma violência. Esta afirmação, tão simples e cirúrgica, desmonta o discurso daquela parcela da sociedade que – criticando, ao mesmo tempo e sem dar-se conta, o sujeito da luta e o sujeito da opressão – entendeu as palavras violência e reparação como sinônimas. Ao contrário, a visualidade material de uma estátua secular derrubada por movimentos antifascistas e antirracistas pode ser agressiva, mas não violenta; já um movimento de reparação histórica, por sua vez, só se faz reparador na medida em que é a consequência extrema – e não a causa – de uma violência perene no tempo e no espaço. Uma história de opressão imparável, quando não reparada, gera – e continuará gerando – a violência diária contra os corpos minoritários e dissidentes, cujas existências não atravessam o campo de visão da ideologia burguesa e, por isso, não existem.
Como não podem encontrar o único responsável pela opressão que sofrem, aqueles e aquelas que habitam a ruína do próprio corpo físico e cultural buscam responsáveis simbólicos, encontrando-os nas avenidas, nos edifícios, na onomástica das instituições e na praça pública, o grande lugar da democracia…
Derrubar a estátua não apagará a História e os seus feitos, mas derrubar a História apagará, por bem ou por mal, as estátuas que erguem e sustentam a doxa de nossas doentias cavernas existenciais.
Paulo Geovane e Silva é pesquisador e doutorando em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade de Coimbra (Portugal), fundador do projeto Educação Humanizada, assessor educacional e escritor.