Negros artistas brasileiros dos séculos passados
Alguma vez já passou pela sua cabeça chamar Pablo Picasso de “Pablinho” Picasso? Ou chamar Pollock de “Jacksonzinho”? Jamais, acredito. Infelizmente não é o caso de outro artista brasileiro do pré-abolição, Miguel Arcanjo Benício de Assumpção Dutra. Com um nome tão bonito e pomposo, ficou conhecido como Miguelzinho Dutra, assim como Antônio Lisboa virou “Aleijadinho”.
Graças ao movimento negro – falado aqui no singular, mas completamente plural e diverso –, ao movimento quilombola e camponês, às políticas públicas de reparação histórica conquistadas ao longo do tempo, à institucionalização da data da Consciência Negra, à aprovação de leis específicas, ao pensamento acadêmico decolonial e outros fatores sociopolíticos, atualmente são vários os artistas negros brasileiros reconhecidos, aplaudidos e premiados, nacional e internacionalmente, apesar do racismo operante.
Rosana Paulino, Antônio Obá, Josafá Neves, Emanoel Araújo, Sanagê Cardoso, Genilson Soares, Rommulo Conceição, Maria Lídia Magliani, Edival Ramosa, Jaime Lauriano, Paulo Nazareth, Flávio Cerqueira, Sidney Amaral, Angélica Dass, Dalton Paula e tantos outros nomes de uma lista infinita, impossível de ser abarcada a contento por aqui. Justamente por serem incontáveis a quantidade e a qualidade desses artistas contemporâneos, peço desculpas por citar apenas alguns e me lanço no passado para mostrar que, apesar dos avanços dos nossos dias atuais, esses profissionais da poesia visual sempre estiveram presentes, inclusive em períodos prévios à abolição da escravização.
Se hoje restam enterrados seus nomes e suas experiências, a culpa é da nossa história construída sobre violências, mitos e hipocrisias. Narrativas até então desconhecidas, entretanto, estão sendo cada dia mais reveladas por pesquisadores de diversas áreas das humanidades, e o futuro que nos aguarda é negro – não é otimismo, é uma realidade feliz que já está posta, apesar das tentativas de retrocessos que o Brasil encara.
Antônio Francisco Lisboa
Como eu disse, foram muitos os negros artistas antes mesmo da abolição da escravização. Um deles, aliás, do século XVIII, é muito conhecido, muito falado, mas muito “branqueado” pelos discursos que ignoram a questão (1): Antônio Francisco Lisboa. Conhece? Se não, o nome mais famoso pode iluminar a memória, o péssimo apelido “Aleijadinho”. Escultor, arquiteto e engenheiro, construtor de igrejas e criador de obras do barroco brasileiro, Antônio Lisboa adoeceu nos anos finais de sua vida, depois de já ter conquistado fama. Com uma doença degenerativa, amputou os dedos e foi “rebatizado” pelas pessoas com um nome capacitista que também está associado à diminuição racial. Não era “aleijado”, era “menor”, era “aleijadinho”.

Lisboa era filho de uma mulher africana escravizada com um arquiteto português que mais tarde o reconheceu como filho. E antes que haja espaço para uma possível romantização dessa relação, já adianto que ele foi filho de um estupro e que a bondade dos colonizadores não passa de outro mito fundador da nossa história (2). Desde a década de 1940, com os escritos de Franz Fanon, já temos essa compreensão. Aqui no Brasil, Abdias e Lélia Gonzales abordaram questões similares de contestação da nossa história.
Nos idos dos séculos anteriores à fundação da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, primeira instituição oficial de artes que tinha como objetivo “educar” brasileiros nos moldes do projeto francês, a produção artística local era vista até então como artesanato e era atribuída a escravizados, a negros livres e a indígenas. O trabalho catequizante dos jesuítas, artifício fundamental para consolidação da dominação colonial, utilizou-se bastante da produção de estatuetas cristãs para evangelizar os povos originários e os africanos sequestrados para o Brasil. Essa prática violenta assassinou a riqueza artística dos povos indígenas e dos povos sobretudo iorubanos, trazidos em massa para sofrer tortura em troca de seus saberes milenares, apropriados e desprezados em seguida.
Das heranças além-mar
Recentemente eu posso me considerar uma sujeita de sorte pois tive o privilégio de ouvir um dos cursos sobre “Arte Africana” do professor Renato Araújo, na Caixa Cultural de Brasília. Coloco o termo entre aspas porque, como ele mesmo diz, a ideia de uma arte africana universal não é válida na realidade. Os países existentes, criados como são por colonizadores europeus que segmentaram um vasto e diverso território a seu bel prazer no início do século XX, não fazem jus às centenas de etnias ricas e soberanas que os habitavam.
Se a filosofia, a história e as ciências sociais foram usadas a favor de dominantes para registrar a falsa ideia de que na África nada existia além de pobreza e sofrimento, e justificar a invasão de povos europeus, hoje já sabemos da grande ficção que enganou boa parte da população mundial – exceto africanos.
Se pensarmos apenas os iorubanos habitantes da região onde hoje é a Nigéria e o Benim, onde portugueses sequestraram boa parte de pessoas para trazer para o Brasil ao longo de quase quatrocentos anos, percebemos quão rica era a produção artística. E olha que era uma arte tão avançada, tão próxima do conceito contemporâneo de arte, que pedia o toque, o envolvimento do espectador, que foi a partir dessas obras que o modernismo europeu se fez possível.
É conhecida a história da influência de máscaras africanas no trabalho de Pablo Picasso e na criação do cubismo. Enquanto os europeus ainda estavam fechados na preocupação da antiguidade greco-romana de imitação do real, iorubanos e outros povos estavam se lançando em produções com metais preciosos, com cerâmica, com madeira, pedras etc.
Partiu deles, inclusive, uma técnica de trabalho em bronze, chamada “cera perdida”, que permite talhar o bronze, algo que os artistas sabem ser quase impossível de fazer. Por não se importarem com as regras europeias de arte, de imitação do real e de produção de um “belo” de tez branca e olhos azuis, a produção artística de povos africanos, extremamente diversa, foi resumida e encaixada no conceito de “primitivo”. Mas quando é Pablo Picasso ou Paul Gauguin usando referências, torna-se vanguarda.
Dutra e Valentim
E por falar em Picasso, alguma vez já passou pela sua cabeça chamá-lo de “Pablinho” Picasso? Ou chamar Pollock de “Jacksonzinho”? Jamais, acredito. Infelizmente não é o caso de outro artista brasileiro do pré-abolição, Miguel Arcanjo Benício de Assumpção Dutra. Com um nome tão bonito e pomposo, ficou conhecido como Miguelzinho Dutra, assim como Antônio Lisboa virou “Aleijadinho”. Filho de um ourives negro no interior de São Paulo, desde cedo se fez artista e se dedicou ao registro iconográfico das paisagens paulistas. Suas aquarelas são tão relevantes quanto as de Debret, mas seu reconhecimento está muito aquém do francês, e isso nada tem a ver com qualidade artística ou capacidade técnica. As razões são racistas mesmo. “Mimimi” é argumento de quem nega.

Se até hoje a população negra é a que mais trabalha e menos recebe, nos anos de escravização a situação não era diferente. Mestre Valentim, por exemplo, bastante conhecido por suas estátuas de bronze, além de escultor, também foi arquiteto e urbanista. Assim como Antônio Lisboa, era filho de uma mulher escravizada com um português colonizador. Valentim da Fonseca Silva, como se chamava, foi um dos responsáveis pelo planejamento urbano do Rio de Janeiro em um momento crucial, em que a cidade prosperava sem delineamento. Foi ele quem assinou o projeto do passeio público da então capital brasileira, o primeiro parque do país.
Estevão Silva e seus contemporâneos
A primeira instituição de ensino sobre artes no Brasil foi inaugurada por franceses depois da vinda da família real. Com acesso gratuito, era uma possibilidade de ascensão social para as classes mais baixas que não podiam se dar ao luxo de estudar nas universidades estrangeiras ou nos recém-abertos cursos de medicina, direito ou engenharia, onerosos e prestigiados. As artes, desde sempre, foram mais democráticas e podemos citar alguns profissionais negros que fizeram parte da instituição.
Estevão Roberto da Silva é um deles, ingresso mais de 20 anos antes da Lei Áurea e protagonista de momentos de resistência e contestação do racismo da época. É conhecida a história quando, em 1879, recusou publicamente um prêmio de segundo lugar na Exposição Geral, dado pessoalmente pelo imperador D. Pedro II – todos esperavam que ele levaria o troféu principal. Ana Flávia Magalhães Pinto, que pesquisou a imprensa negra em seu doutorado, conseguiu associá-lo à luta abolicionista e à militância pela inclusão do negro no mercado de trabalho. Engana-se quem pensa que ele era uma exceção.
É possível encontrar referências históricas sobre Firmino Monteiro, Pinto Bandeira e Raphael Frederico, todos eles estudantes da Academia Imperial antes da abolição. E olha que, se expandirmos para outras regiões do país, encontramos Horácio Hora e Emmanoel Zamor. Os nomes que destaco aqui ainda são poucos perto da quantidade de negros artistas que de fato existiram, mas que aguardamos ansiosamente pela iluminação de histórias soterradas – algumas perdidas para sempre.
Essas vivências, registradas porém escassas, comprovam uma outra história sobre a construção da nação brasileira: se artistas, intelectuais, chefes políticos, profissionais liberais, líderes religiosos e tantas outras pessoas foram sequestradas de suas terras de origem e trazidos violentamente para o Brasil, forçados a exercer a função de escravos, a história da população negra nas Américas deve ser lembrada como resistência, como luta e também como exercícios de liberdade. Parodiando a grande Makota Valdina, não existe escravo, existem pessoas que foram escravizadas.
Diante de tantos silenciamentos e esquecimentos impostos na história do Brasil, o que me consola é a perspectiva futura. Como ouvi o ator baiano Leno Sacramento dizer recentemente em cima do palco: dias negros virão.
1. Durante um tempo era proibido comentar sobre raças e desigualdade, como parte do plano de se consolidar no Brasil o mito da democracia racial. Abdias do Nascimento, ele também artista, falou sobre isso no grande livro “O Genocídio do Negro Brasileiro”.
2. Abdias, que além de artista plástico era também fundador do Teatro Experimental do Negro, na década de 1960, comenta sobre diversos mitos-base da sociedade brasileira racista. O “senhor benevolente”, como ele chama, é uma dessas mentiras difíceis de serem apagadas.
Raisa Pina é jornalista, pesquisadora e crítica de arte. Publica pílulas sobre história da arte no Instagram, pelo seu perfil @raisarpina.