Nelson Marchezan Jr, o exterminador do futuro
Na apresentação de sua obra “Robespierre, ou a divina violência do terror” (Zahar, 2008), o filósofo esloveno Slavoj Zizek refere-se, em termos filosóficos, a dimensão inumana que pode ser definida como aquela de um sujeito subtraído de qualquer subjetividade humana “Esta é a razão por que, na cultura popular de hoje, uma das figuras exemplares de um sujeito puro é um não-humano – alienígena, ciborgue – que mostra mais fidelidade à sua missão, à dignidade e à liberdade do que suas contrapartidas humanas, [como] da figura de Schwarzenegger em O exterminador do futuro” (Zizek, p. 16).
Para os servidores públicos municipais de Porto Alegre, o Prefeito Nelson Marchezan Jr (PSDB) é a encarnação do exterminador do futuro: exatamente como define Zizek, Marchezan dá sinais de ser o mais puro prefeito não humano, pois mostra mais fidelidade a sua missão, a de implementar medidas neoliberais na cidade de Porto Alegre, privatizar a máquina pública, como o DMAE e a Carris, e retirar os direitos conquistados pelos servidores municipais, como o personagem do filme de James Cameron. O que perturba os servidores é essa obsessão pelo cumprimento de sua missão, que despreza as contrapartidas humanas dadas pelos trabalhadores da prefeitura e que faz de Nelson Marchezan Jr a perfeita imagem especular do exterminador do futuro da capital.
A prova é a série de projetos de lei estão em tramitação na Câmara Municipal de Porto Alegre que exterminam direitos e instituições da cidade. O alvo são os servidores municipais, visados em ataques na Lei Orgânica Municipal e no Estatuto dos Servidores Públicos, além do Plano de Carreira. Os projetos atacam direitos conquistados pelo movimento dos servidores públicos ao longo de décadas e o primeiro ataque é aos direitos garantidos pelas conquistas na Lei Orgânica, objeto de desconstrução pelos Projetos de Lei Complementar do Executivo (PLCE) 07 e 08/2017.
Os projetos enviados, direitos que se quer retirar
O primeiro projeto de lei que tira o sono dos servidores é o PLCE 07/17, cujo art. 1º revoga o parágrafo único do artigo 37 e o caput do artigo 37-A da Lei Orgânica Municipal, revogando o direito à licença – prêmio dos servidores públicos, equivalente a 3 meses a cada 5 anos, restando somente, pelo caput, o direito a licença prêmio proporcional ao período já em andamento. O segundo, o PLCE 08/2017, já no artigo 1º altera o artigo 39 da Lei Orgânica, parágrafo primeiro, que trata da data de pagamento dos servidores municipais, que deixa de ser o 30º dia do mês e passa para o 5º dia útil do mês seguinte enquanto seu artigo 2º, altera o caput do artigo 40 do mesmo dispositivo legal, que transfere o pagamento do 13º salário, pago em dezembro, para o quinto dia subsequente, isto é, o servidor passa a receber a gratificação natalina…após o natal! Além disso, como já é feito pelo governador do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori (PMDB), que como o governador do Rio de Janeiro, Luis Fernando Pezão, já parcela o 13º salário dos servidores, no artigo 3º do projeto altera o caput do art. 41 da Lei Orgânica, ficando o Prefeito de Porto Alegre autorizado a parcelar o salário e o 13º dos servidores. Se Marchezan parece apenas o exterminador do futuro com esses projetos, assemelha-se também a Idak, o outro androide da série clássica Perdidos no Espaço surgido na segunda temporada no capítulo 24, que repetia, sempre que ia atacar, o bordão “Matar, esmagar, destruir”!.
Os projetos tem sido objeto de um caloroso debate. De acordo com o presidente da Associação dos Procuradores do Município de Porto Alegre (Ampa), Cesar Emílio Sulzbach, na reunião da Comissão Especial criada para analisar os projetos do governo que tratam de alterações na carreira dos servidores municipais no último dia 26 de outubro na Câmara Municipal, o corte de direitos segundo a análise feita por um grupo de trabalho formado por representantes das entidades dos servidores, terá um impacto negativo nos salários do funcionalismo, em média, de 20% a 40% dos vencimentos. Segundo notícia veiculada no site da Câmara Municipal, Sulzbach também ressaltou a importância do estudo elaborado pelo economista Cristiano Ghilles, que aponta uma perda a longo prazo de R$ 1 bilhão/ano do Produto Interno Bruto (PIB) da Capital com os PLs e a consequente repercussão na economia local, inclusive com a perda de arrecadação de impostos e aproximadamente 40 mil postos de trabalho exterminados.
O ataque do Prefeito aos direitos dos servidores é estratégico, não apenas através da Lei Orgânica, mas também através do Estatuto dos Servidores Públicos Municipais (Lei Complementar 133/85) pelo PLE 11/17 do Prefeito. O ataque é em relação aos regimes especiais de trabalho dos servidores (Regime de Tempo Integral (RTI), Regime de Dedicação Exclusiva (RDE), Regime Suplementar de Trabalho (RST) e Regime Complementar de Trabalho (RCT) e motivo de pânico para os servidores. Os regimes correspondem a formas diferentes de reajuste de remuneração por convocação extraordinária: o Regime de Tempo Integral (RTI) é dado para todos os cargos, exceto os de técnico em radiologia e técnico em artes plásticas; o Regime de Dedicação Exclusiva (RDE) é para os cargos de nível técnico ou superior, enquanto que os demais regimes, o Regime Suplementar de Trabalho (RST), são retribuições dadas a médicos especialistas e médicos clinico-gerais e o Regime Complementar de Trabalho (RCT), são retribuições dadas ao magistério e aos profissionais de educação. Todos constituem convocações ao servidor pelo prazo inicial de dois anos, e após, prorrogados automaticamente, salvo manifestação do funcionário. Agora, basta manifestação de um superior indicado pelo Prefeito. A ameaça é clara.
Pelos PLE 11/17, conforme seu artigo primeiro, é alterado o caput do Art. 37-A do Estatuto do Servidor Público Municipal, e seu parágrafo primeiro, alterando o RTI e RDE, que passam a ser por convocações por período de um ano, e o pior, prorrogável por critério da administração. Para Sulzbach, a proposta do Prefeito “ não estipula critérios, podendo ser retirando a qualquer tempo e motivação “. Para os servidores, o pior é o poder discricionário sobre vencimentos dado a representantes da administração e sobre os qual procuradores municipais tem manifestado posição contrária. Além disso, o artigo primeiro do PLCE 11/17 também altera o parágrafo 3º e 4º do Artigo 37-A do Estatuto do Servidor, estabelecendo a data de 1/11/2017 para os regimes passarem a serem validados pelo gestor e os valores percentuais que incidem na RTI e RDE por tempo de serviço serem transformados em parcela individual, e portanto, não reajustável. A intenção clara: desmontar o sistema de vantagens pecuniárias dos servidores públicos conquistados durante décadas a todo custo. Matar, esmagar, destruir, como diria Idak.
Procuradores contra projetos
As propostas contidas nos PLs do Prefeito não tem o aval de procuradores do município. O Procurador Municipal Edmilson Todeschini publicou um vídeo em que aponta que os projetos de Nelson Marchezan Jr trazem prejuízos à cidade porque afetam a autonomia técnica dos servidores da Prefeitura. O vídeo está disponível em http://bit.ly/2xO4mjg. Para o procurador, o projeto do prefeito altera os valores remuneratórios dos regimes de trabalho, e com isso, afeta a autonomia técnica dos servidores públicos. Porquê? Porque precariza seu regime de trabalho. Diz o procurador ”Em Porto Alegre, o servidor municipal presta concurso para o regime de 30 horas, e poderá ser convocado para 40 horas em regime de tempo integral ou de dedicação exclusiva. Na legislação atual, estatutária, após duas convocações, o servidor consolida o direito a manutenção do regime especial de trabalho. O que significa? Significa agregar mais 10 horas semanais de trabalho e agregar uma correspondente remuneração por essas dez horas adicionais Tudo dentro da legalidade, gerando expectativas de direito para o servidor”.
O procurador questiona: qual o efeito dessas alterações legais? A precarização da autonomia técnica, diz Todeschini. Porquê? Porque remuneração pelo tempo de trabalho organiza o universo do serviço público da capital. As remunerações e vantagens dos servidores foram produto histórico de suas lutas na busca da valorização profissional e foram determinados por Planos de Cargos e Salários aprovados legalmente que garantem remuneração igual para serviço igual e remuneração extraordinária para serviço extraordinário. “O trabalho, ação criadora essencial do ser humano, não foge ao império do tempo”, diz Sadi Dal Sasso em O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor (Boitempo, 2017). Para Sasso, o capitalismo de nosso tempo tem sido espetacular na construção de uma engenharia de dominação porque denomina “modernização” o que é “devastação”, exatamente o discurso que o Prefeito usa para embalar o seu projeto.
Afirma Todeschini: ”O projeto enviado à Câmara, entre várias alterações, torna precário por todo o tempo da vida funcional, a convocação para o regime especial de trabalho. Significa que a qualquer tempo, o Executivo Municipal, unilateralmente, poderá deixar de convocar o servidor para o regime especial de trabalho. Pensemos naquele servidor que está concursado para 30 horas, e que já foi convocado reiteradas vezes para trabalhar 40 horas, com uma correspondente remuneração para aquele período adicional. Se esse servidor passa a ter essa parcela precarizada, porque ela pode ser revogada a qualquer tempo, ele ficará ameaçado no exercício de sua autonomia técnica”, diz o procurador. Sulzbach é particularmente incisivo em relação as
As alterações propostas pelo PLCE 11/17, em seu artigo primeiro, para os parágrafos 3º e 4º do Art. 37-A do Estatuto dos Servidores, também são nocivos a remuneração dos servidores porque proíbem a majoração e introduzem a parcela autônoma. Diz Sulzbach “Os aumentos percentuais que incidem sobre as gratificações por regimes de trabalho, por tempo de serviço e percebido até 31.10.2017, serão pagas por meio de parcela individual e não mais reajustáveis, ou seja, serão congeladas para sempre, o que provocará uma redução salarial ao longo dos anos”.
Fim da autonomia do servidor
A formula que associa redução salarial com aumento do poder dos administradores de plantão assusta os servidores. Laércio de Oliveira e Silva Filho, em sua dissertação A autonomia do servidor público no Brasil, apresentada à Fundação Getúlio Vargas, afirma que “a autonomia pessoal do servidor público, em seu agir na Administração Pública, é um dos pressupostos para a eficaz implementação de ações de gestão do conhecimento. Ela também é um anseio do trabalhador, sempre defendido em manifestações das mais diversas associações de classe ”.
Estudando de forma interdisciplinar diversas fontes da autonomia técnica na literatura sociológica, administrativa, do direito e da filosofia, o autor vê que “a personalidade humana é apresentada como a fonte da autonomia, bem como sua justificação diante de doutrinas que a negam e atacam” e que ela pode ser de três dimensões: autonomia substantiva, técnica e objetiva”. Neste ponto, assinala Todeschini: “autonomia técnica nada mais é do que a defesa do interesse do ente público quando o interesse do ente público colide com o interesse do governo local”.
A autonomia técnica, segundo Silva Filho, está associada ao controle, por parte de profissional executante, o servidor público, do processo de produção e seu ritmo de execução “O crescente assédio do controle sobre a ação estatal, ainda que faça pesar sobre o agente público maior necessidade de prestação de contas (é afetada pela) coação que um controle impessoal e exacerbado exerce sobre o sujeito, frequentemente, desencorajando-o a tomar a melhor opção, assunto da maior importância”. É nesse ponto que situa-se a crítica de Todeschini: “É muito comum no âmbito do município, na vida de Porto Alegre ou de qualquer município ou de qualquer estado, seja do Rio Grande do Sul ou dos demais, ou da União, haver uma colisão entre o interesse público e o interesse do respectivo governo, e é nessas ocasiões que, um governo mal intencionado poderá ameaçar o servidor dizendo o seguinte: se tu exercitar tua autonomia técnica para defender o interesse do ente público, contrariando interesses do governo da ocasião, tu será punido com a consequente desconvocação do regime especial de trabalho e a consequente redução remuneratória.” Ou seja, o projeto, longe de ser uma forma de gestão “modernizadora”, é na realidade, a base para o estabelecimento de uma chantagem. É preciso “servidores dóceis” para o atendimento das necessidades do capital no interior do estado, exatamente no sentido dado por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir: assim como ”é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”, é dócil o servidor que pode ser submetido a coação pela autoridade de plantão. E aqui, salário do servidor é o instrumento para o capital obter esta… docilidade!
O PLCE 11/17 continua em mais três artigos o desmonte dos direitos estabelecidos pelo Estatuto dos Servidores Públicos. Em seu art. 3º altera o Art. 122, do caput do artigo aos parágrafos 2º, 4º, 5º e 6º do Estatuto modificando o regime de avanços. Avanços são acréscimos por tempo de serviço. O serviço público perde se necessita fazer concursos continuamente e requalificar seus servidores. Para isso estimula a permanência no serviço público porque o administrador reconheceu a importância do capital – experiência – acumulado pelo servidor. Agora o Prefeito limita a carreira dos servidores a conquista de 8 avanços de 3% a cada 5 anos. Isso representa uma perda salarial para os servidores, porque hoje os avanços são de acréscimos de 5% a cada 3 anos, num total de 10 avanços, mais 2 no final de carreira, finalizando em 13 avanços se completar 35 anos de dedicação ao serviço público, o trabalho de dedicação de uma vida, daí a humanidade contida nesta estratégia de valorização. O Prefeito, como bom exterminador do futuro, propõe também a extinção dos avanços para os cargos de CCs, inclusive quando ocupados por servidores efetivos, estabelecendo uma regra de transição: o servidor que tiver, em 31/10/2017, 50% do tempo para novo avanço, receberá quando completar o triênio, mas até só até o limite de 8 avanços. O servidor que prestar concurso de agora em diante, perde recursos em relação a seus colegas servidores que fazem o mesmo serviço. Isso é injusto.
Um servidor público sem futuro
O servidor da Prefeitura Municipal de Porto Alegre inicia sua carreira com salário baixo e tem a promessa do governante, consolidada no Plano de Carreira, que terá avanços sucessivos que lhe garantirão no futuro qualidade de vida. Ele não ficará rico, mas terá uma velhice digna. Ele faz um pacto com seu governo e por força da dedicação exclusiva, ele aceita o fato de que não pode ter outros empregos, não irã fazer carreira em outros órgãos em nome da estabilidade cuja garantia é a remuneração justa ao fim da carreira para o servidor que dedicou sua vida ao serviço público. Mas o Prefeito, nosso exterminador do futuro não pensa assim. No artigo 3º do referido projeto de lei, também altera dispositivos do Art. 122-A do Estatuto dos Servidores Públicos, em seu caput e parágrafos de 1 a 4. Esse é ponto exato onde ele retira o futuro da carreira do serviço público de Porto Alegre, pois os novos ingressantes da Prefeitura passarão a ter avanços reduzidos, conquistados num maior espaço de tempo e que não serão computados para fins de aumento de remuneração. Pior: o art. 4º do PL altera também o Art. 125 do Estatuto dos Servidores, extinguindo os adicionais de tempo de serviço de 15 e 25 anos, só permanecendo os adquiridos até 31/10/2017, estabelecendo regra de transição para aqueles servidores em vista de adquiri-lo e retirando qualquer incidência de vantagem sobre o salário final do servidor, agora, o qualquer cálculo remete o vencimento básico. Não bastasse tanta maldade, o prefeito eleito tem articulado nos bastidores, alianças com o PMDB, para uma possível reeleição, numa espécie de “Eu voltarei” (“I’ll be back”, em inglês), pronunciada por Arnold Schwarzenegger no primeiro filme da série Exterminador do Futuro. Imaginar um retorno é um pesadelo para os servidores.
O Art. 5º do PLCE 11/2017 altera o Art. 129 – A do Estatuto em seu caput e parágrafos de 2 a 7. O resultado é reduzir a importância das Funções Gratificadas, que viram parcela individual, podendo ser congelado o seu valor, retirando o direito do servidor à incorporação após 10 anos, sendo incorporado, como parcela única, também congelada e proibindo qualquer vantagem. Os demais artigos (6º e 7º do PLCE 11/17) finalizam a redução salarial dos servidores quanto as gratificações de função, que poderão ser estabelecidas por categoria, via lei complementar, restabelecendo uma luta vista no passado responsável por dividir os servidores em sua luta por vantagens. Quer dizer, através dos PLs encaminhados, diversos direitos consagrados e históricos são revogados: incorporação de tempo de serviço externo, avanços de 15 e 25% do tempo de serviço, incorporação de FG aos dez anos. Pelo art. 9º do PL 11/17, o Prefeito prevê até que o Previmpa, o órgão de Previdencia dos Municipários, rejeite a incorporação de FG integral no momento da aposentadoria, alterando o art. 39 da Lei 478/02, que cria a Previdência. Nos termos do sociólogo Jean Baudrillard, é o “crime perfeito”, onde seu autor jamais seria revelado por completa ausência de marcas.
Para Sulzbach, a desconstrução dos direitos dos servidores municipais vai contra as boas regras da administração pública porque o “projeto não discute a questão da responsabilidade gerencial, é discussão meramente de redução salarial”, diz. Em um contexto de recessão, Sulzbach afirma que os servidores municipais já tem sido punidos a exaustão: primeiro porque eles não receberam no ano de 2017, que está prestes a encerrar, sequer a inflação anual, o reajuste obrigatório previsto por lei de 4,5%; segundo, porque uma lei aprovou na capital o aumento da alíquota previdenciária dos servidores municipais em 3% , o que significa que os servidores de Porto Alegre totalizam hoje 7,32% de perdas apenas este ano e finalmente, desconsidera que os servidores, com salários parcelados, estão tendo de pagar juros a bancos por empréstimos para compensar o fato de receber parcelado, situação idêntica de precarização vivida pelos servidores do estado do Rio Grande do Sul que tem seus salários parcelados pelo governador José Ivo Sartori. Os servidores municipais já acumulam perdas e o Prefeito quer…. ampliá-las!.
Um ponto importante da repercussão das perdas salariais dos servidores municipais foi apresentado na reunião da Comissão da Câmara Municipal onde foram dados exemplos de como ficarão os salários com os projetos. Isso pode ser visto na tabela abaixo:
TABELA 1 – PERDAS SALARIAIS COM OS PROJETOS DO PREFEITO
Os dados são relevantes. Segundo levantamento apresentado na Comissão Especial, a média de perdas varia entre 18% do salário bruto para o cargo de Procurador Municipal, no valor de R$ 4.622,00 à 41% do salário bruto para o cargo de Administrador Municipal, no total de R$ 4.932,00, considerando que tais trabalhadores chegaram a este valor por respectivamente 20 e 25 anos de serviço público. Cargos de nível fundamental, os de menor remuneração na Prefeitura, sofrem também perdas importantes. Para o cargo de monitor, que chega, em 7 anos de trabalho, a atingir um salário de 2.833,64, o desconto é importante, cerca de 27% do salário, chegando a RS 773,21. O cargo de nível médio de acesso geral, que possui um grande número de servidores, o de Assistente Administrativo, que após 20 anos de serviço público chega a 3.585,96 (equivalente ao salário mínimo proposto pelo DIEESE), tem uma perda de 28,63%, chegando a RS 1.086,22. Para o servidor, é uma perda muito grande.
Perdas dos servidores, perda da cidade
As perdas dos servidores municipais não repercutem apenas para suas famílias, repercutem também para a cidade. É o que aponta o estudo de Cristiano Ponzoni Ghinis, economista e Mestre em Economia do Desenvolvimento, intitulado “Efeitos dos PLs do governo na economia de Porto Alegre: mais recessão, mais desemprego, menos serviços públicos” (disponível em http://bit.ly/2zCdDzF ) aponta que os Projetos de Lei do governo municipal impactam de modo prejudicial no conjunto da economia da capital gaúcha, produzindo mais recessão e mais desemprego. Para Ghinis “Porto Alegre é uma cidade com preponderância econômica dos setores de comércio e serviços. O consumo das famílias, neste sentido, é um vetor essencial tanto para o crescimento econômico como para a arrecadação tributária”. Segundo o estudo, as medidas, se aprovadas, representarão prejuízos para os setores do comércio e serviços, que sofrerão mais duramente, com a subtração de cerca de R$ 633,5 milhões da massa salarial do funcionalismo do circuito de consumo da cidade, causando, segundo o economista, recessão econômica, queda de 2,37% no PIB Municipal, eliminação de 38.795 empregos com carteira assinada e perdas de arrecadação municipal e estadual. E destaca Ghinis: ”A cada R$ 1,00 retirado do servidor municipal, há uma redução de R$ 2,40 do PIB Municipal, fator que naturalmente contribui para a piora dos indicadores econômicos do Rio Grande do Sul ”. Em vista disso, Ghinis estima que o comércio local sofreria perdas anuais de R$ 269 milhões, ao passo que o setor de serviços arcaria com perdas anuais superiores a R$ 238 milhões. Para o autor, a cada R$ 1 milhão de redução da remuneração dos funcionários municipais ocorre o fechamento de 75 empregos nos serviços e 66 postos de trabalho na atividade comercial. O efeito é desastroso para o economista: ”a Prefeitura sofrerá restrições orçamentárias de quase R$ 50 milhões ao ano, que poderão impedir a manutenção e a execução dos serviços públicos essenciais à população, prejudicando especialmente os segmentos mais necessitados. Esta cifra, por exemplo, seria suficiente custear os remédios das farmácias do SUS do Município por 1 ano”. Exterminio do salário do servidor, extermínio da economia local. E chamam isso de neoliberalismo.
As próximas semanas são decisivas. Enquanto este artigo é escrito, no dia 6 de novembro de 2017, milhares de servidores municipais pressionam os vereadores de Porto Alegre buscando a aprovação do parecer conjunto de comissões permanentes que possibilitará a rejeição dos projetos de alteração dos regimes proposto pelo Prefeito. Eles retornarão na quarta-feira (8/11) para a definição da votação: se os servidores perderem, o prefeito terá não apenas atacado os servidores, mas também a economia da cidade de Porto Alegre, contrariando, portanto, interesses das classes abastadas que o elegeram. Mas não se trata de direitos salariais apenas: será a derrota de um amplo movimento social que resultou na consolidação da LC 133/85, o Estatuto dos Servidores Públicos. Outrora a peça mais arrojada da época, que reuniu de forma democrática legislações esparsas do serviço público de Porto Alegre, foi lei parcimoniosamente gestada por acordos construídos de baixo para cima, com participação de todos os servidores e manifestando valorização, tanto pelo Prefeito, como dos vereadores, das prerrogativas e direitos funcionais. O que está ocorrendo está na contramão da história da democracia funcional da cidade: é um processo gestado de cima para baixo, de gabinete, com princípios de gestão baseados na ideia de lucratividade a qualquer custo das piores empresas privadas, com redução de direitos que atacam conquistas célebres do movimento de trabalhadores da Prefeitura. Mas engana-se quem pensa que é apenas um ataque no presente. Ele também é um ataque ao futuro. Para os servidores, que comparecem em massa ao legislativo, é uma chance única para derrotar um projeto que extermina não somente os direitos dos servidores do presente, mas também dos futuros servidores.
O extermínio do direito dos futuros servidores
Da mesma forma que se tem consciência de que as gerações presentes, nas suas decisões, devem ter em conta as gerações futuras, os administradores devem, em relação as decisões sobre os servidores públicos, ter em conta os futuros servidores. Porquê? Porque um Prefeito ou Governador não pode sujeitar as gerações seguintes de servidores às suas leis. Isso se coloca porque é necessário aprofundar as discussões sobre os direitos das novas gerações, hoje tema emergente na literatura jurídica, especificando-os por grupos, e isso significa que o futuro servidor público já tem direitos em relação aos servidores atuais que o governante de hoje tem deveres, para com as gerações futuros servidores públicos, porque projetos de reformas como os apresentados por Machezam tratam do problema da justiça entre as gerações de servidores de uma cidade.
No prefácio à “O direito das gerações futuras: uma compreensão adequada ao constitucionalismo do século XXI”, de Luis Clóvis Machado da Rocha Júnior (Editora Metamorfose, 2017), Jorge Miranda diz que o artigo 28 da Constituição Francesa de 1793 afirma que “um povo tem sempre o direito de rever, de reformar ou de modificar a sua Constituição. Nenhuma geração pode sujeitar as gerações futuras as suas leis” (p. 6). O mesmo argumento é defendido por John Rawls, em sua obra “Uma teoria da Justiça” (Lisboa, Presença, 1993), para quem “cada geração deve não só preservar as conquistas da cultura e civilização, e manter intactas aquelas justas instituições que foram estabelecidas, como também reservar, em cada período de tempo, uma adequada quantidade de real capital acumulado”.
Aqui é importante entender que a poupança a que se refere Rawls, pode ser tanto máquinas, meios de produção ou investimentos, mas a ideia do autor é maior, trata-se daquilo que “existe para o bem de todas as gerações subsequentes”. Essa ideia é o argumento que falta para a defesa dos servidores públicos: quando se trata de estabelecer ou retirar vantagens e direitos dos servidores públicos, é preciso lembrar que foram conquistados por uma geração de servidores e que eles são a “poupança” que uma geração lega a seguinte, como se refere Rawls, pois as gerações futuras poderão se queixar se tais direitos forem retirados, ficando as gerações de futuros servidores autorizadas a incriminar os administradores do presente que contribuíram para retirar seus direitos futuros. É neste lugar que se coloca Marchezan com seus PLs, ele não tem o direito de retirar os direitos dos servidores porque os direitos financeiros adquiridos pelas gerações atuais devem ser preservados para as gerações futuras porque garantem a sustentabilidade financeira dos serviços sociais e do trabalho.
Miranda assinala que inúmeras constituições garantem em seu capítulo dos direitos fundamentais os concedidos as gerações futuras: a constituição japonesa, alemã, norueguesa, sul-africana, polonesa, portuguesa e brasileira. Em 1994, a Unesco aprovou a Declaração Universal dos Diretos Humanos das Gerações Futuras. Porque esta problemática importa para os PLs de Marchezan? Porque ela dá novo sentido as lutas de servidores atuais. Por todo o lugar, de instituições e servidores de nível federal, estadual e municipal estamos vendo uma galopada em direção a extinção de direitos. Da universidade pública passando por órgãos públicos estaduais e repartições municipais, servidores estão em luta contra o projeto neoliberal que recusam a perda de seus direitos no presente, mas eles também representam, a perda dos direitos dos servidores públicos do futuro: de uma forma maior, não estão em jogo no campo jurídico e das lutas pela posse e imposição de projetos no estado e do município apenas os direitos fundamentais; estão também sendo discutidos conquistas no plano do trabalho, no campo social e também nos estatutos dos servidores públicos, que é a sua lei máxima, equivalente de constituição. É neste sentido que, para mim, Nelson Marchezan é o exterminador do futuro, o exterminador do futuro do serviço público de Porto Alegre.
O Estatuto dos Servidores Públicos Municipais é o documento que garante aos trabalhadores da prefeitura de Porto Alegre seus direitos fundamentais. A materialidade de seu conteúdo é a afirmação do município de promoção e proteção de seu trabalhador: por isso é importante a atenção a qualquer ato normativo que estabeleça limites aos direitos adquiridos, impostos por um governante ou projeto de reorganização que tome posse do estado, no caso, a política neoliberal. A luta que está acontecendo em Porto Alegre é similar as lutas de servidores públicos protagonizadas no Rio de Janeiro e São Paulo e, no Rio Grande do Sul, as lutas em defesa das fundações, objeto de projeto de extinção do governador do Estado José Ivo Sartori. Todas são lutas que fazem parte da resistência democrática as tentativas de implantação do estado mínimo do Brasil promovidas pelas políticas neoliberais. Nesse sentido, seguindo a argumentação de Miranda, em vez de direitos dos servidores públicos, o correto é falar em mandamentos de interpretação e ação do Estado em relação a direitos dos servidores para proteção dos direitos conquistados para as gerações futuras. O legislador deve observar princípios de precaução, do saldo da poupança e da não indisponibilidade dos interesses das gerações futuras de servidores. Essa imposição de tutela das gerações futuras aos governantes impõe deveres aos titulares atuais dos governos, sejam do estado ou município, de modo a conservar seus modos de vida social e seus direitos consagrados.
Assim, reformas como a proposta por Nelson Marchezan Jr em relação aos direitos dos trabalhadores da prefeitura não podem serem vistas sem considerar a relação político-jurídica entre o presente, o passado e o futuro dos servidores públicos. Trata-se, portanto, de verificar o quanto as propostas do atual prefeito comprometem pressupostos de justiça intergeracional ou os “direitos das gerações futuras de servidores públicos”. Assim, quando a doutrina dos direitos das futuras gerações é estendida aos servidores públicos, está se afirmando que o conjunto dos direitos jurídicos conquistados pelas gerações atuais são bens fundamentais das categorias à manutenção de seu modo de vida e modo de ser e como tal “deverá ser protegido ou preservado ou excluído de modificações ou alterações” (p.14). Por isso os PLs do Prefeito precisam ser derrotados. E continua Miranda: “Há, pois, uma ideia formal unificadora desta compreensão de direitos: a “preservação das condições de vida para o futuro” (idem), e, como afirma Rocha Jr, é uma concepção formal “que engloba vários espécimes”, incluindo-se aí os servidores públicos.
É que Rocha Jr assinala inúmeros direitos, no campo ambiental, que devem ser protegidos para as novas gerações, mas assinala que “o conceito não se limita as posturas bioéticas” buscando oferecer ao leitor a possibilidade de utilizar o argumento para a inclusão de novas categorias de sujeitos de direitos. Ora, do ponto de vista da dogmática jurídica, a luta em andamento em Porto Alegre impõe a criação de um novo paradigma de investigação sobre os direitos dos servidores públicos em sua relação com as gerações futuras. Qual o problema jurídico concreto que exige interpretação doutrinária? Os PLLs em discussão na Câmara Municipal de Porto Alegre colocam a questão de que se pode um Prefeito retirar direitos da geração futura de servidores públicos. Ora, a Prefeitura, como qualquer governo, também deve ser baseada em valores, e entre eles, está o da valorização e defesa da justa remuneração dos servidores públicos bem como a defesa de direitos conquistados: por isso é preciso defender sua vinculatividade, ou seja, que os direitos conquistados pelas atuais gerações se estendem as gerações futuras de servidores públicos. Esta discussão se insere no contexto dos imperativos de proteção – da sociedade aos seus servidores – que devem ser compartilhados pelas autoridades de plantão. Pois não se trata, como fazem os governantes atuais, de lutar para retirar aquilo que consideram “interesses corporativos”, pois eles não se confundem com “direitos dos servidores”. É sobre esta argumentação que devem ser tecidas as lutas dos servidores em geral contra governantes neoliberais em nosso pais. E esse processo está apenas no início.
*Jorge Barcellos é historiador, mestre e doutor em Educação. É licenciado e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1989) e Mestre e Doutor em Educação pela Faculdade de Educação/UFRGS(2013). Recebeu a Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica (2006) e o Troféu Expressão da FINEP (2006). É autor de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014) e O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017). Mantém a coluna Democracia e Politica do Jorna O Estado de Direito.