Nikolas e os trabalhadores
A novidade é ecoar que a extrema direita está, com todas as letras, reivindicando para si a categoria dos trabalhadores
O assunto da semana foi a normativa da Receita que dispunha sobre monitoramento de transações financeiras. Disso, houve uma onda poderosa de mentiras – que incluíam montagem fake de Fernando Haddad – depois da qual Nikolas Ferreira (PL/MG) gravou vídeo admitindo que o Pix não seria taxado, mas que o governo estaria voltando os dentes do leão para os trabalhadores de pequena e média renda. Isso todo mundo já sabe.
Mas quero destacar a citação repetida e expressa aos trabalhadores no famigerado vídeo do deputado. Menções a feirantes, motoristas de aplicativo, ambulantes, entregadores, pedreiros. O argumento é que o governo tiraria do bolso dessas pessoas, sem melhorias correspondentes nos serviços de saúde, educação e segurança.

Os grupos de direita começaram a ganhar projeção desde 2013 de forma bastante heterogênea, unidos pelo mote de combate à corrupção. Entre 2016 e 2017 foi o conservadorismo moral de tonalidade evangélica que hegemonizou o grande campo político – considero emblemático o momento em que o MBL (Movimento Brasil Livre), que seria libertário, endossou uma posição conservadora ao encampar a campanha contra a exposição Queer Museum. A agenda desempenhou papel chave na eleição de Bolsonaro em 2018. Esse fenômeno, que não é só brasileiro, pode ser sintetizado assim: aqueles desesperados e sem poder, após mais de 40 anos de neoliberalismo, se sentem abrigados pelo discurso moral, que passa a ser uma arma política.
Essa estrutura de moralismo, junto com o belicismo do Bolsonaro, parecia ser algo bem estável. Mas, nas últimas eleições a prefeito, outro elemento parece ter tido muito mais relevância: a ideologia do empreendedorismo. A qual, diga-se de passagem, não é antagônica às anteriores. Ao contrário, basta lembrar da Teologia da Prosperidade.
Porém, algo chamava atenção na extrema-direita brasileira (diferente da europeia, por exemplo): a falta de apelo direto ao trabalhador. Como eu disse, há apelos, mas indiretos: à mãe de família, ao medo da insegurança nos centros urbanos e a respectiva ideia de “prende e mata”, à religião… Mas a mobilização do trabalhador nesse termo preciso não é comum. Bolsonaro possivelmente só fez aceno a uma categoria de trabalhadores, os profissionais da segurança. Em um dos vídeos mais vistos da história da internet, Nikolas o mobilizou. Não só ele; o senador Cleitinho (Republicanos/MG), que também liderou a mobilização contra a Receita, foi no mesmo sentido.
Duas coalizões heterogêneas se formaram no Brasil em 2022, uma em apoio a Bolsonaro e outra em apoio a Lula. Dentre os grupos da “concertação” de Lula há a esquerda – que defende os direitos dos trabalhadores – e neoliberais democratas. Essa composição (ou, melhor dizendo, essa contradição) está no coração do governo.
Lula vive, portanto, entre um dilema: trair forças importantes da coalizão que o elegeu ou trair os pobres que são sua base social, na formulação de André Singer.
Como é próprio do lulismo, o presidente tenta mediar. Procurou, em seus discursos, enfrentar o mercado em 2024 e não entregou o corte de gastos no montante que os financistas queriam – o que lhe rendeu um ataque especulativo em dezembro.
Mas o governo – talvez contra a vontade de Lula – tenta entregar a redução em programas que beneficiam os miseráveis, os pobres e os remediados; não consegue bancar orçamento suficiente para as mais diversas políticas de redução de desigualdade; e tenta aumentar a arrecadação – ainda que com medidas como a da polêmica, as quais, ao fim e ao cabo, permitem fiscalização no varejo, e não no atacado, da sonegação. O equilíbrio parece, nas circunstâncias atuais, mais difícil para um lulismo sempre mediador.
Verdade seja dita, a Receita diminuiu o alcance da fiscalização, quando aumentou de dois para cinco o limite de movimentação mensal para o repasse de dados. Além disso, o compartilhamento de informações sobre o Pix foi instituído em 2022, durante o governo Bolsonaro. Mas, se já existia essa possibilidade, por que a Receita editou uma nova normativa? Parece no mínimo uma insensibilidade em relação ao mundo do trabalho, ao mundo dos remediados.
O resultado é que, quem capturou nesse momento a defesa dos trabalhadores não foi a esquerda, como seria o seu lugar político; foi a extrema-direita. Se a esquerda dialoga com o mundo do sindicalismo e Lula dialoga com o subproletariado, a extrema-direita talvez tenha mais sucesso em argumentar com os trabalhadores informais de toda ordem, para os quais as respostas imediatas (e simplistas) parecem fazer mais sentido do que as propostas estruturalistas, que são difíceis de concretizar particularmente em uma conjuntura que acossa o governo a todo tempo.
Uma ressalva importante. Não é novidade que a ideologia do “correr atrás”, do empreender, do se virar, esteja entre as camadas populares. Inclusive Bolsonaro teve, nas eleições, vantagem sobre Lula na camada remediada, entre dois e cinco salários mínimos de renda mensal, e nessa faixa de renda a popularidade de Lula presidente patina. A novidade é ecoar que a extrema direita está, com todas as letras, reivindicando para si a categoria dos trabalhadores.
A direita vive de espelhos invertidos, e tem tido sucesso nisso. Capturou em grande parte o sentido de rebeldia da juventude; capturou o desejo de protagonismo das massas; capturou o a defesa da liberdade; e está tentando captar a defesa dos oprimidos. Está agora em jogo o bastião da esquerda e do maior líder da história do Brasil: o coração dos trabalhadores.
Marina Basso Lacerda é pós-doutora e doutora em ciência política; autora do livro O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk), finalista do prêmio Jabuti de Ciências Sociais.