No Afeganistão, o quebra-cabeça do sistema de saúde
Enquanto as tropas militares norte-americanas se preparam para deixar o país até o fim de 2014, o sistema de saúde afegão encontra-se em um estado mais deplorável do que nunca, com destaque para as dificuldades de acesso aos cuidados médicos de aproximadamente 450 mil deslocados internos pelo conflito armado
Um pequeno caminhão japonês, sobrecarregado com duas vezes a altura das laterais da carroceria, para a algumas centenas de metros dos primeiros abrigos improvisados. No final desta primavera [do Hemisfério Norte], a planície de Gull Butta, na periferia de Cabul, é varrida por um vento suave e poeirento, que obriga a proteger o rosto. Mal o veículo para, todos os ocupantes descem. Descobre-se então que o piso da carroceria é ocupado por gado. Cerca de uma dúzia de bezerros e vacas são empurrados para fora sem a menor cerimônia e imediatamente amarrados por mulheres a estacas de metal sólido que elas fincaram logo ao descer.
Durante esse tempo, as crianças cuidam das aves domésticas, enquanto os homens descarregam as indispensáveis bicicletas Phoenix e jogam ao chão pesadas trouxas. Os postes de madeira que serviram de assoalho para separar os seres humanos dos animais em breve se tornarão as armações de barracas rudimentares que vão se somar àquelas já instaladas.
Quatro famílias jogis1 estão viajando. Elas vêm de Surobi, distrito cuja segurança era até recentemente confiada ao Exército francês dentro da coalizão internacional no Afeganistão. Levaram quatro horas, empilhadas em cima do caminhão, para chegar a um dos acampamentos que circundam a capital afegã, chamados de Kabul Informal Settlements (KIS, Assentamentos Informais de Cabul). O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) listou cerca de cinquenta deles para uma população estimada em 35 mil pessoas. Nesse país, que conta em 2013 com mais de 450 mil deslocados2 (refugiados internos) e onde 75% dos moradores já experimentaram pelo menos um deslocamento forçado na vida, encontramos os mesmos fenômenos e o mesmo jargão em torno das grandes cidades afegãs: Herat e seus HIS, Mazar-e-Sharif e seus MIS…
Em Cabul, esses acampamentos ilegais podem chegar a algumas dezenas de pessoas, como em Puli Gozargah, ou a quase 5 mil, como em Charahi Qamber. Os mais antigos datam de 2002 e do início da operação militar da coalizão; os mais recentes, como Gull Butta, têm poucos meses de existência. Eles experimentaram uma forte expansão a partir de 2008, com uma significativa aceleração em 2011. Acolhem populações agora sedentarizadas, em trânsito, ou ainda famílias nômades que vão e vêm ao sabor dos rigores do inverno ou da intensidade da violência e da miséria. Outros voltaram após se refugiar no exterior, na maioria dos casos no Paquistão; estes representam 60% da população dos KIS.
Tanto entre os deslocados como entre os refugiados, a primeira causa da partida é a violência. Todos exibem em comum o fato de não terem auferido nenhum benefício com a presença da armada internacional nem com os bilhões de ajuda despejados. E de viver, em alguns casos há cerca de dez anos, em condições de extrema pobreza, em abrigos feitos de qualquer maneira, sem água, porque as autoridades, que querem fechar toda perspectiva de instalação definitiva, são contrárias à escavação de poços. A renda média nos campos é de R$ 0,61 por pessoa por dia.
Vinte e duas famílias ocupam Gull Butta. Elas estão divididas em dois pequenos conjuntos de barracas separadas por um aterro. Esse é o lugar onde foi parar o caminhão, que parece ter hesitado até o último momento entre os dois campos. Visitantes se aproximam: sorrisos, abraços, reencontros. Logo, eles ajudam os recém-chegados a transportar seus bens para o primeiro grupo de barracas.
Do outro lado do aterro, é Herwaz Ron que, na sua qualidade de ancião, nos acolhe. Lá, em cinco barracas, vivem cerca de vinte pessoas. Estes são kuchis, nômades que chegaram há algumas semanas de Jalalabad. “O calor do verão e a miséria nos fizeram deixar essa província na fronteira com o Paquistão na estrada para Peshawar”, explica o patriarca. “Esperamos que, na capital, venha a ser mais fácil encontrar pequenos trabalhos, alimentos e água.” Para falar de seu grupo, ele usa o termo Sheikh Mohammadi (“tribo nômade” de vendedores ambulantes e outros pequenos negócios), um subterfúgio a que os kuchis recorrem com frequência para afastar sua má reputação de ladrões, mendigos e prostituídos. Referindo-se a suas condições de vida, o homem queixa-se de nada receber da ajuda governamental modesta que chega a seu KIS e que o acampamento no lado oposto – jogi – não lhes permite desfrutar.
No complexo mosaico das tribos afegãs, os kuchis ocupam um lugar à parte. Sua vida é feita de erraticidade, pobreza e ostracismo. Essa situação levou o governo a propor que dez assentos lhes fossem reservados no Parlamento que deverá sair das próximas eleições, previstas para o final de 2014. Enquanto isso, aqui como nos outros acampamentos, são as ONGs, como a Solidarités International, presente em Gull Butta, que lhes fornecem o mínimo essencial de comida, água e cuidados.
As agendas de consultas dos ambulatórios e clínicas móveis denunciam as doenças da pobreza, cujo impacto é reforçado pela insalubridade dos locais. Entre as mais frequentes estão as infecções de ouvido, nariz e garganta, assim como as pulmonares, e, no verão, as diarreias de todo tipo, causa de uma alta mortalidade infantil. Os homens, que executam como podem trabalhos braçais em Cabul por um pouco mais de R$ 6 por dia, frequentemente sofrem de distúrbios osteoarticulares. Crianças e adultos estão expostos a infecções cutâneas, às carências e aos parasitas que deixam entrever a falta de higiene das pessoas entrevistadas. Metade das mulheres casa-se antes dos 15 anos. Entre as que estão grávidas ou amamentando, uma em cada cinco sofre de desnutrição moderada ou grave.3 O número de crianças vivas é de seis por família, em média.
Formar em medicina uma geração de mulheres
O sistema de saúde continua falho, ainda que as ONGs e o Ministério da Saúde estejam tentando levar a cabo uma oferta de cuidados primários: vacinação, luta contra a mortalidade no parto, contra a malária, contra o HIV-aids (ver boxe)… Para administrar eficazmente a saúde das mulheres, em um país onde elas só podem ser curadas por pessoas do mesmo sexo ou comparecer a uma consulta se estiverem acompanhadas por um parente do sexo masculino, a formação de toda uma geração de profissionais – agentes de saúde comunitária, enfermeiras, médicas, parteiras – é primordial. Mas os obstáculos são muitos: baixos níveis de escolarização e alfabetização, forte resistência das famílias a vê-las se afastar para receber educação…
Quando essa resistência é superada, a necessidade de gerenciar os marhams– acompanhantes masculinos designados pelas famílias, irmãos, cunhados ou primos, que devem acompanhar as mulheres a todos os lugares durante sua formação ou nos locais de seu exercício profissional – oferece um obstáculo inesperado. É preciso, portanto, também abrigá-los e alimentá-los e, para que uma mulher seja autorizada a ocupar um cargo, prever a presença do marhamou encontrar um emprego para ele. Consequentemente, o sistema de saúde encontra-se sobrecarregado por uma logística que o engessa e gera custos adicionais significativos, comprometendo suas capacidades financeiras futuras.
Em outras províncias, perto da fronteira com áreas tribais do Paquistão, as doenças transmissíveis, como a poliomielite, experimentaram um crescimento alarmante em 2012, em razão da falta de vacinas – uma consequência involuntária da… morte de Osama bin Laden. “O boato, alimentado pelo Talibã paquistanês que atua nessas províncias, afirma que vacinadores estariam associados, em Abbottabad, à localização do líder da Al-Qaeda”, explica um médico afegão. Isso também levou ao assassinato, há vários meses no Paquistão, de vacinadores da Unicef.4 “Apesar de nossas reuniões com comunidades rurais e do trabalho feito com a ajuda de mulás para acalmar a situação, o problema ainda não foi resolvido nas províncias orientais”, acrescenta o médico.
Outro flagelo: o consumo de ópio, do qual o Afeganistão é o maior produtor mundial. Hoje, existe cerca de 1 milhão de usuários, dos quais 150 mil se injetam com heroína, em práticas e condições de higiene desastrosas. Quando da partida dos soviéticos em 1989, a produção era de 1,2 mil toneladas por ano; em 2009, ela chegou a 6,9 mil toneladas. Com a retirada das tropas da coalizão, a produção experimentou uma nova aceleração: 7% somente em 2011.5 Uma pesquisa realizada no final de 2012 pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (Unodc) em 546 vilarejos revela um aumento de 30% na área plantada.6 As receitas decorrentes dessa cultura representam hoje cerca de 60% do PIB afegão.
Na cúpula de Tóquio, em julho de 2012 – tendo sido a primeira reunião realizada em 2002 para estabelecer as bases para a “reconstrução” após a derrota dos talibãs –, os países doadores e as organizações internacionais discutiram com o governo afegão a ajuda a ser dada. Em um país cujo PIB é estimado em US$ 17,24 bilhões (2010), um estudo recente do Banco Mundial7 assinala que a renda nacional não será capaz de cobrir as despesas do Estado durante anos. Se levarmos em conta os cânones dessa organização, o déficit orçamentário subiria para 21% em 2025, com um pico de 39% em 2014.
Para a população pobre – cerca de 15 milhões de pessoas entre os 30 milhões que o país abriga –, o futuro do sistema de saúde se apoiará a partir de 2014, mas sobretudo de 2017 em diante, na eficácia do Ministério da Saúde e de seu pessoal. Os financiamentos, concedidos pela União Europeia, pelo Banco Mundial e pela Agência de Cooperação dos Estados Unidos (Usaid) não irão mais para ONGs, como é o caso hoje, mas diretamente para o Estado, sem que no entanto os doadores tenham se outorgado meios verdadeiros de controle.
Entrevistada na cidadela hipersegura dos “Jardins”, um dos lugares de encontro da comunidade humanitária expatriada, a coordenadora de uma organização internacional manifesta sua preocupação: “Os riscos são de dois tipos: um deles, financeiro, seria uma rápida diminuição dos recursos ligada à corrupção maciça enfrentada pelo governo afegão; e o outro, político, que as estruturas agora oficialmente identificadas como ‘governamentais’ sejam alvo dos grupos armados de oposição”.
Analisando a situação nas quatro províncias – Cabul, Kapisa, Parwan e Panshir – já sob a exclusiva administração do Ministério da Saúde, um funcionário afegão, médico de uma ONG internacional, acredita que “os resultados dessa gestão direta deixam todos muito céticos quanto a uma generalização do sistema. As unidades distantes dos principais eixos rodoviários são negligenciadas; o dinheiro é desviado; exige-se dos pacientes bakchichs para atendimentos que deveriam ser gratuitos; há um forte absenteísmo dos cuidadores, assim como interrupções nos fornecimentos; a hierarquia falha em sua função de supervisão… Além disso, alguns médicos trabalham em paralelo em clínicas ou consultórios particulares, o que é parcialmente explicado por seu nível de remuneração: entre US$ 200 e US$ 550 por mês”. A responsável por outra ONG internacional acrescenta: “Para nós, é uma luta de todos os dias”.
E após a partida da coalizão?
Na cúpula de Tóquio, decidiu-se oferecer uma ajuda de US$ 16 bilhões daqui até 2017. O financiamento do sistema de saúde está incluído nesse pacote. No entanto, de acordo com uma responsável por uma ONG médica, “tudo dependerá da forma como o Ministério da Saúde vai enfrentar as deficiências já identificadas na operação atual, bem como da capacidade das ONGs de atuar nas margens, como é o caso nas KIS hoje, e de apontar as lacunas por todo o território afegão. Resta saber se as condições de segurança nos permitirão permanecer no local e continuar ativos…”.
A atitude dos talibãs em relação às ONGs internacionais permanece incerta. É fato que algumas tiveram uma atitude que claramente as posicionou como verdadeiras colaboradoras das forças armadas estrangeiras.8 Estas poderiam ser reduzidas a uma paralisia ou serem forçadas a fazer as malas nos meses vindouros, algumas na esteira de seus mentores da coalizão internacional.
Pierre Micheletti é professor adjunto do Instituto de Estudos Políticos (IEP) de Grenoble, ex-presidente dos Médicos do Mundo-França, autor de Humanitaire: s’adapter ou renoncer, Marabout, Paris, 2008.